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À sombra do Real

Postado em 01/09/1997

Economistas analisam o país que se livrou da inflação mas ainda não encontrou o caminho do crescimento

Depois de um longo período em que os números da inflação resistiram bravamente a diversos planos econômicos, nos últimos três anos, finalmente, o Brasil conquistou uma relativa estabilidade. O real, a nova moeda criada em 1994, conseguiu manter-se forte e foi assimilado rapidamente pela população, desacostumada a utilizar dinheiro que não se desmanchasse no bolso da noite para o dia.

Nem tudo, porém, são flores. Há problemas, e muitos. A inflação foi realmente contida, mas há outros fatores que estão aí a exigir providências. É o caso das reformas, unanimemente reconhecidas como necessárias, mas que o governo não consegue aprovar no Congresso. Assim, enquanto não ocorrer uma remodelação tributária e fiscal, enquanto não se oxigenar completamente o funcionalismo da União, estados e municípios, enquanto não se instalar no país um novo sistema previdenciário moderno e autofinanciável, enquanto continuarmos prisioneiros de um número incrivelmente alto de leis, normas, portarias, instruções, decretos, medidas e parafernália do gênero, a estabilidade corre perigo. Sem esses acertos, não há como ampliar as exportações, reduzindo o desequilíbrio cada vez maior da balança comercial. Impossível também será manter o interesse dos investidores internacionais que por enquanto acreditam no país, desovando aqui bilhões de dólares, responsáveis pelas reservas de que o governo tanto se orgulha. Sem essas providências, enfim, o futuro é incerto.

Este assunto foi debatido no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, a partir de depoimentos dos economistas Ruben Almonacid, Robert Appy, Josef Barat e Cláudio Contador. Publicamos abaixo a íntegra desse debate.

Trajetória insustentável

RUBEN DARIO ALMONACID - Logo após a introdução do Real, em 1994, fui convidado a fazer uma avaliação sobre o plano. Naquela ocasião, eu disse que o Real em si era um truque, uma forma de introduzir uma nova moeda que não representava nenhuma mudança no sistema econômico. Disse também que, a menos que fosse acompanhado por mudanças significativas nas áreas fiscal, previdenciária e das estatais, o plano não teria sucesso.

Meu erro foi desconsiderar dois fatores. Primeiro: os processos econômicos em geral são muito demorados. São necessários muitos anos para que alguns desses processos se completem. Segundo: havia disponibilidade de recursos externos em volumes elevados e uma predisposição da comunidade internacional de emprestar não só ao Brasil mas ao mundo todo, em função do excesso de liquidez. É exatamente esse excesso de liquidez que torna a trajetória do processo dinâmico diferente do que seria em condições normais. Hoje eu reitero aquele pensamento de três anos atrás. Acho que na substância não havia nenhuma diferença entre o Plano Real e o Cruzado. Ambos são artifícios para inicialmente reduzir a expectativa inflacionária e uma forma transitória de assegurar a oferta agregada. Se isso for acompanhado de uma contenção da demanda agregada, o processo se sustentará e será possível restabelecer o equilíbrio. Se isso não acontecer, poderemos voltar à situação que vivemos no Plano Cruzado, quando o Brasil não tinha acesso a recursos externos em volumes significativos. O excesso de demanda se traduziu em carência de bens, desaparecimento de produtos, mercado negro e também um pouco de desequilíbrio externo.

Na circunstância atual, manifesta-se o mesmo fenômeno, com desequilíbrio externo. O saldo da balança comercial é deficitário e o Brasil está gastando mais do que gera como renda. O fenômeno é igual nos dois casos. No primeiro se manifestou por mercado negro e preços distorcidos, e agora pelo desequilíbrio externo. Um desequilíbrio, como eu disse, que demora para acontecer. Mas ele é reflexo de uma mudança nos preços relativos que o Brasil conseguiu realizar ao longo destes últimos anos, quando ajustou os preços domésticos a um ritmo superior ao da evolução dos preços internacionais.

A experiência brasileira tem semelhanças com dois processos recentes, o da Argentina e o do México. A lógica é a mesma, os mecanismos econômicos por trás dessas três experiências de estabilização são semelhantes e os resultados deverão ser semelhantes, se é que a teoria econômica é de fato uma ciência que explica o comportamento das economias e se as variáveis inerentes a esses processos tiverem o mesmo encaminhamento. No caso do México, já sabemos o que aconteceu. Esse país sofreu uma crise em 1994. Foi forçado a desvalorizar a moeda e, aparentemente, com isso conseguiu corrigir o déficit na balança comercial. Hoje o setor externo está razoavelmente equilibrado.

A Argentina está tentando uma solução diferente. Para ela a saída é dizer: "Não vamos modificar os preços. Vamos deixar que a economia ajuste os preços internos para que, com uma deflação suficiente, o país se torne competitivo de novo". Conceitualmente, isso é perfeitamente lógico. O que importa são os preços, os domésticos em relação aos internacionais. Esse equilíbrio pode ser obtido tanto com um aumento dos preços internacionais como com a redução dos preços internos. O preço relativo se modifica, teoricamente, por uma mudança do numerador ou do denominador. Mas essa teoria, na prática, não funciona assim. Temos uma infinidade de experiências que documentam que os preços tendem a ser inflexíveis para baixo.

Vim para esta reunião de táxi, e o motorista me deu uma lição de economia que talvez nos ajude a entender por que os preços tendem a ser mais inflexíveis para baixo. Perguntei a ele como estava a tarifa e se ele gostaria de mexer no preço da corrida de táxi. Ele disse: "Não. Está bom assim". Tentei aprofundar o assunto: "Você não quer mudar de jeito nenhum, nem para cima?" "Não. Se mudar para cima, vai diminuir a freguesia." "E para baixo, você mudaria?" "Para baixo, talvez mudasse, 15% ou 20%." Recentemente, estive na Argentina e lá já começam a aparecer táxis que no lugar do letreiro "táxi" escrevem: "20%", "10%", "15%". É o desconto que estão oferecendo para captar clientes. Por que o nosso motorista não faz isso? Ele me respondeu: "Se eu fizer isso, na primeira esquina vão arrebentar meu carro. O sindicato é forte, os colegas vão achar que não estou sendo companheiro, que estou sabotando, ou tirando fregueses deles". O que ele estava dizendo, em última instância, é que há restrições, há uma série de processos que impedem a redução dos preços. Ainda que o agente econômico tenha consciência de que seu preço está desajustado, não tem condições de praticar o que ele acha que seria mais sensato. Por que o taxista argentino conseguiu reduzir o preço? A Argentina já está há alguns anos em um processo recessivo. Ou seja, um mecanismo é a mudança no câmbio e o outro é apertar a demanda, controlar o consumo, se necessário criar uma recessão, criar desemprego, até que as pessoas se convençam de que a saída é reduzir os preços. Quando existe tensão relativamente forte, essa dificuldade de abaixar os preços desaparece, e as pessoas aceitam que cada um invente seu próprio mecanismo de captar demanda.

Mas se de fato a deflação resolve o problema, é melhor verificar o que ela significa. Em quanto tempo a Argentina conseguiria o ajuste por esse mecanismo? Seria uma trajetória palatável, socialmente aceita? Analisei uma experiência semelhante aos três casos citados aqui, que aconteceu na Inglaterra em 1925. A Europa saía da Primeira Guerra Mundial, todos os países tinham sofrido mudanças significativas, alguns passaram por processos hiperinflacionários piores do que o que vivemos em passado recente, quase todos vinham de um sistema baseado no padrão-ouro, um sistema de conversibilidade fixo, como é o da Argentina hoje, parecido com o do Brasil (no Brasil o câmbio não é fixo, não há uma lei de conversibilidade, como na Argentina, mas na essência o sistema é muito similar, pois o Banco Central controla a desvalorização cambial e impõe um ritmo que não tem nada a ver com ajustes ou desajustes externos da economia).

No caso da Inglaterra de 1925, o país adotou uma paridade que aparentemente estava errada. Na avaliação de Keynes, que naquela época escreveu um artigo relevante a esse respeito, a moeda da Inglaterra estava sobrevalorizada em 10% a 12% acima da de seus principais parceiros, que eram os países da Europa continental e os Estados Unidos. Keynes lançou um alerta nesse artigo, e Winston Churchill, que era ministro da Fazenda naquele momento, não acreditou, ou não entendeu. Preferiu confiar em seus economistas e não modificou nada. O fato é que a Inglaterra entrou num processo recessivo, que perdurou por muitos anos. Entendo que essa foi em parte a origem da grande depressão de 1929, que a Inglaterra sofreu alguns anos antes em conseqüência dessa política cambial equivocada.

Cavallo versus Real

Vejamos o que aconteceu na Argentina e no Brasil nas experiências do Plano Real e do Plano Cavallo. Ambos os países seguiram uma trajetória semelhante. A Argentina saiu um pouquinho na frente, mas as trajetórias de preços são semelhantes. No gráfico abaixo temos uma comparação entre os preços relativos na Argentina e no Brasil. Faz três anos que a Argentina segue uma política recessiva com o objetivo de corrigir os preços relativos que perdeu quando o Plano Cavallo não conseguiu controlar a demanda agregada. Nesses três anos, em que houve uma queda significativa da renda, um processo de desindustrialização bastante considerável, e criou-se um nível de desemprego que ultimamente chegou a 18% e está mais ou menos estabilizado, a Argentina conseguiu produzir uma mudança de preços relativos da ordem de 3%. Nossa estimativa é de um desequilíbrio máximo da ordem de 25%, tanto para a Argentina como para o Brasil. A Argentina hoje está com mais ou menos 22% a 23% de desequilíbrio. E o Brasil está com bons resultados porque, pela primeira vez, o Índice de Preços ao Consumidor cresceu menos que o Índice de Preços de Atacado. O Brasil acaba de inaugurar formalmente o processo de ajuste para retornar ao equilíbrio entre preços relativos de bens domésticos e bens internacionais.

Mas o mecanismo econômico que o mercado cria para fazer esse ajuste é um processo extremamente demorado. Depois de três anos a Argentina chegou a 3% a 4% de ajuste. Nesse ritmo, serão provavelmente mais dez anos de sofrimento, de recessão, de desemprego, de desequilíbrio externo, de endividamento maciço e de uma série de outras implicações.

No meu ponto de vista, o mecanismo de correção via preços relativos, via deflação, via recessão, apesar de logicamente coerente, na prática não funciona, é demorado, não é recomendável. O custo imposto à sociedade é muito grande em comparação com os benefícios que oferece. Diante desse desequilíbrio, o que esperar em termos de balança comercial? No ano passado, o déficit brasileiro, estimado em novembro, era de US$ 4,5 bilhões. Fizemos uma projeção usando esses preços relativos, para estimar qual seria o déficit neste ano, e chegamos a US$ 14 bilhões. No ano passado acabou sendo de US$ 5,5 bilhões, mas para este ano já se espera um déficit de US$ 12 bilhões. A economia está chegando lentamente àquele nível que as estimativas de relação preços-balança comercial estavam indicando. Fizemos algumas simulações sobre o que vai acontecer com a dívida externa e com a dívida interna, na hipótese de o governo continuar nessa trajetória e na hipótese de o mercado internacional aceitar essa situação. Supondo isso, o déficit da balança comercial e a necessidade de recursos rapidamente crescem a níveis insustentáveis. E a dívida explode.

Diante disso, penso que a trajetória que o governo está impondo à economia, a médio e longo prazo, não é sustentável, e provavelmente antes ou após o novo governo seremos forçados a uma mudança de rumo. Lamentavelmente, quanto mais durar esse processo, mais custoso será. Maior será o endividamento acumulado e maiores serão os desajustes de preços relativos, com o conseqüente sucateamento de algumas indústrias e o prejuízo para toda a economia.

ISAAC JARDANOVSKI - Você propõe um ajuste cambial imediato?

ALMONACID - Todos sabemos que um ajuste cambial tem inúmeras conseqüências e aspectos negativos. Imagine um paciente em que se detectou um tumor maligno. A dúvida é fazer ou não a cirurgia. Se o paciente for operado, correrá riscos de ter uma parada cardíaca e outras complicações. Mas se não for operado, o efeito poderá ser pior mais para a frente.

Ajuste fiscal ou fracasso

ROBERT APPY - O mais importante a dizer, quando se analisa o Real, é que, se não houver ajuste fiscal simultâneo à estabilização, o plano fracassará. Não sou eu quem afirma: Gustavo Franco escreveu isso em 1994 e publicou em 1995. Houve ajuste fiscal? Não houve. Vejamos 1994, que talvez tenha sido o melhor ano fiscal. Em 1994 o resultado operacional teve superávit de 34% do PIB, enquanto em 91 foi de apenas 1,41% do PIB. Em 95, porém, tivemos déficit de 3,85%, taxa que continuou negativa em 96 (4,78%). Em 97, somente até março, o déficit chegou a 3,61%. Pior do que isso foi o resultado primário: até 95 houve um superávit, agora temos déficit.

Nesse déficit, os juros reais representavam 1,56% do PIB em 91. Em 95, eram 5,14%; 3,79% em 96 e, até março de 97, 3,26%. O governo está anunciando uma melhora para este ano. Acredito que seja uma melhora relativa, não absoluta. São números que assustam. Vejamos outros dados: despesa de pessoal em relação ao PIB, em 91, 3,99%; em 92, 4,06%; em 93, 4,52%; em 94, 4,97%; em 95, 5,51%; em 96, 5,42%. Somente os inativos representavam 0,96% do PIB em 91 e em 96 chegaram a 2,26%. Essa evolução também acontece quando se examinam os benefícios previdenciários. Em 91, eram 3,53% do PIB; em 96, chegaram a 5,41%.

Isso revela a dificuldade de um ajuste fiscal, que exige sempre um aumento da dívida interna. E quando há aumento da dívida interna, cresce conseqüentemente a taxa de juros, que na minha opinião está no centro da questão.

Qual o caminho para melhorar a situação das contas públicas? Reforma administrativa. Privatização. Reajuste do funcionalismo inferior à inflação. Devo dizer que o governo até agora mostrou coragem ao evitar o aumento do funcionalismo público, desde janeiro de 95. Mas um dia vai chegar a hora da verdade, não pensem que escaparemos disso. Queda de taxa de juros? Vamos deixar isso para quando analisarmos a situação cambial. Reforma da previdência? Vamos rezar. Sabemos que não haverá reforma da previdência este ano. O Senado talvez vote, mas o assunto tem que voltar à Câmara dos Deputados e, ao que consta, na Câmara é mais difícil obter aprovação do que no Senado.

Voltando à frase de Gustavo Franco, não será fácil manter o Plano Real nessas condições. Quando o México atingiu déficit em contas correntes de 8% em relação ao PIB, houve a crise. A Tailândia recentemente chegou ao mesmo valor e iniciou uma crise que foi evitada graças ao Japão, assim como o México foi salvo pelo vizinho. O Brasil não tem vizinho forte. Isso me assusta. Este ano, certamente, vamos ultrapassar os 4% de déficit em contas correntes. Dizem que esse déficit é facilmente coberto pela entrada de capitais. Ruben Almonacid tem razão: o capitalismo estrangeiro é muito generoso. Sem dúvida, os investimentos diretos são atraídos pela privatização, embora ainda se discuta se nas telecomunicações temos que limitar esses investimentos.

A captação externa de recursos de fato é fabulosa. Bônus emitidos pelo governo chegaram a receber oferta de US$ 18 bilhões, quando não se esperava mais do que US$ 3 bilhões. O rendimento é de quase 11%. Um título com esse rendimento por 30 anos realmente é uma tentação. Não se trata de confiança total no Brasil. Trata-se da possibilidade de pelo menos recuperar rapidamente o que se colocou no país. Mas quando se verifica que no mundo a taxa de juros tende a cair, e oferecemos um rendimento de 11% ao ano, temos que meditar. Será bom ter uma dívida de 30 anos? Ao contrário do que diz Gustavo Franco, em termos econômicos a vantagem não foi tão grande, se é que ela existiu.

A balança comercial tem um grande peso nesse déficit. Em parte, isso se deve à abertura comercial, que é um dos fundamentos do Plano Real, já que é assim que estamos contendo preços. Por isso a abertura vai continuar. O problema maior está nas exportações. Pela primeira vez, este ano estamos verificando uma redução das exportações de produtos manufaturados. Não vamos eliminar tão cedo o déficit da balança comercial. Ela será deficitária por muito tempo. Espero apenas que, com medidas de estímulo às exportações, possamos reduzir um pouquinho nosso déficit, mas isso não vai acontecer antes de quatro ou cinco anos. Uma das causas são as despesas nas viagens internacionais. O brasileiro, depois do japonês, é o que mais compra no exterior, mas com uma renda per capita muito inferior. E temos um fato novo. Sempre fui favorável ao capital estrangeiro, pois a remessa de lucros era muito reduzida. Mas agora estou verificando que as remessas ficaram maiores e começaram a pesar mais até no estoque de capital externo. Finalmente, eu diria que os investimentos de portfolio são assustadores. O estoque de capital externo nas bolsas é de US$ 40 bilhões. Nossas reservas são de US$ 55 bilhões. Essas famosas reservas, que tanto nos distinguem dos outros países em crise, será que existem de fato?

Desvalorizar ou não? Enquanto não conseguirmos equilibrar as contas públicas, uma desvalorização seria totalmente inútil. Além disso, a desvalorização, para ser efetiva, teria que ser muito forte, e isso acabaria com o controle de preços feito pela taxa cambial e com a abertura. Mais: perderíamos os atrativos que hoje oferecemos com a taxa de juros. Como o endividamento externo do país nos últimos anos foi muito grande, uma desvalorização forte hoje poderia ter conseqüências graves.

Para terminar, acho que o objetivo da política econômica deve ser o crescimento. Até agora não optamos por uma recessão para atingir o equilíbrio. Discute-se se a economia está superaquecida ou não. Eu digo que a questão de superaquecimento não interessa. Precisamos saber se nosso consumo é compatível com o equilíbrio da balança comercial. Pode não existir superaquecimento, mas a demanda atual é incompatível com o equilíbrio da balança comercial. Essa demanda precisa ser reduzida para podermos melhorar. Em outras palavras, é preciso controlar o crescimento das importações. Temos que estimular nossos industriais a exportar. Eu sei que a margem de lucro é menor, mas temos que forçá-los. Mas sem desvalorização cambial, que, no meu ponto de vista, hoje não é desejável, embora a longo prazo seja indispensável.

Será que temos a capacidade de não voltar à mentalidade da correção monetária? É essa a minha pergunta. Eu acho que, infelizmente, no setor público a cultura indexadora continua existindo, e temo que volte no setor privado.

Riscos a longo prazo

JOSEF BARAT - Vou falar sobre a questão do desenvolvimento. Se considerarmos que o plano de estabilização da moeda é condição necessária mas não suficiente para que o país retome um ciclo de desenvolvimento sustentado, o que nos deixa apreensivos é o longo prazo. Embora sempre se cite aquela frase de Stephen Kanitz de que a longo prazo todos estaremos mortos, o pior é morrer no curto prazo e não ter sequer visualizado a perspectiva do longo prazo. Esse é um problema sério para um país como o Brasil, e talvez seja o grande risco que se esteja impondo à população.

Vou citar um número que, se estiver errado, deve ser por pouco. Chamou-me a atenção um estudo recente que mostra que, entre 1900 e 1980, o PIB brasileiro cresceu à taxa média anual de 5,7%. A renda per capita cresceu quase 3% ao ano. Foi uma das economias cujo PIB teve maior crescimento anual neste século. Esse aumento foi mais acentuado ainda depois da Segunda Guerra, até o final dos anos 70. Mas de 1980 até agora, são 17 anos em que a economia praticamente estagnou. O crescimento da renda per capita é insignificante, em torno de 0,1%. Como um país com a dimensão territorial do Brasil, com uma população jovem, pode se manter por tanto tempo estagnado? Como a sociedade brasileira pode ser refém de planos que na verdade nada mais são do que táticas de stop-and-go (e mais stop do que go), sem uma estratégia de desenvolvimento?

O que causa apreensão também é ver como um país em que a sociedade sempre foi dependente do Estado, sempre sujeita a planos e medidas autoritárias, de repente acredita que pode prescindir do Estado. De um extremo passamos para o outro, quando sabemos que, mesmo nas economias mais liberais, o Estado desempenha uma função importante, ao definir pelo menos as estratégias e os rumos da sociedade.

Quando se fala, como Ruben Almonacid fez, em alternativas - ou se mexe na taxa de juros ou no ajuste interno de preços -, estamos discutindo a forma de superar o impasse de curto prazo. Mas a partir do momento em que ele for superado, como poderemos dar ensejo a um ciclo de desenvolvimento, e que ciclo será esse? Lembremos que houve um ciclo na economia brasileira que durou mais ou menos 50 anos, quando o Brasil foi exportador de produtos primários e, conseqüentemente, teve um crescimento considerável, tornando-se depois um país em fase de industrialização pela substituição de importações. O primeiro foi substituído pelo segundo, mas o segundo, que também durou 50 anos, há 17 anos não tem alternativa.

Tentando resumir o que Almonacid colocou, e também Appy, a curto prazo temos três grandes blocos de problemas. O primeiro é relacionado com juros e com suas conseqüências em termos de endividamento, considerando os débitos dos estados e suas finanças calamitosas. Como recuperar um modelo que entrou em colapso, em que o governo não só era avalista de si mesmo, como avalizava empréstimos e operações dos estados?

O segundo bloco refere-se ao câmbio, à balança de pagamentos e às importações, assunto já explorado anteriormente. E o terceiro são as reformas. Reformas como medidas de curto prazo, destinadas a criar uma base de desenvolvimento mais sólida para o futuro. Mas as reformas, da forma como são apresentadas até pelo governo, que reclama do Congresso que não as aprova, são muito pobres e não mexem na essência dos problemas. A reforma da previdência não sai porque não vai sair mesmo, pois os interesses corporativos são muito fortes e vão impedir que ela saia. A administrativa também não mexe no âmago da questão do funcionalismo. Quando a União tenta estabelecer um limite para os gastos com pessoal, os políticos reagem porque os estados não querem esse limite. Assim, todas as reformas são colocadas de uma forma superficial, limitada, mais voltada para resolver problemas imediatos do que propriamente para estabelecer uma base de sustentação mais sólida para o futuro. Se somarmos a isso as dificuldades criadas pela própria Constituição de 88, que até agora não foram superadas, as coisas ficam mais complicadas.

O Brasil necessita de uma política industrial, de uma política de desenvolvimento tecnológico, de uma política de emprego. Temos que atender a essa população jovem, marginalizada por antecipação, e as pessoas que estão sofrendo todo o processo de reciclagem econômica. Mas essas coisas todas estão fora de moda, não fica bem falar disso hoje em dia. Falar de planejamento então é um horror, porque planejamento não existe mais. Quando se fala em política industrial, política de desenvolvimento tecnológico, de emprego e principalmente política de recuperação e ampliação das infra-estruturas, isso faz sentido? São questões que coloco para debate.

Punição para quem produz

CLÁUDIO CONTADOR - O governo está comemorando o terceiro ano do Plano Real. A inflação continua baixa, e esse é o grande sucesso. Mas as reformas não ocorreram, e o país continua com os dois sintomas existentes na época da implantação do plano, que são o desarranjo das contas públicas e o desequilíbrio do balanço de pagamentos. São esses problemas que perduram até hoje, e mais agravados, o que nos faz concluir que há muito pouco a ser comemorado. As reformas simplesmente não ocorreram no ritmo que a sociedade exigia.

Fico muito impressionado quando o governo diz que não consegue avançar porque o Congresso não deixa. O fato é que existem muitas medidas que são razoavelmente simples, não precisam passar pelo Congresso e não exigem mudanças constitucionais. Por exemplo, a questão fiscal, mencionada por Robert Appy. O que mais nosso país tem feito é punir tanto o trabalho como o capital. Hoje, quem produz no Brasil continua sendo tão punido quanto algum tempo atrás. No período de 1966 a 1978, a alíquota marginal de imposto de renda sobre pessoa jurídica era de 30%, e a taxa de juros no mercado financeiro era extremamente baixa. Havia então interesse das empresas em investir. De 1979 a 1982, essa mesma alíquota (sempre a marginal) passou para 40%, e em 87 estava batendo em 45%. Em 88, ano da promulgação da Constituição, chegou a 52,2%; em 94 já estava em 56% e a partir de 95, com os penduricalhos e todos os adicionais, essa alíquota marginal atingiu 64%. O que significam 64%? Significam que, para quem está investindo, sobram apenas 36% sobre o retorno bruto. Um investimento com taxa de retorno de cerca de 20% nos anos 60 deixava para o governo algo próximo a 6%, sobrando para o investidor 14%, uma taxa excelente, considerando a baixa rentabilidade no mercado financeiro. Em 95, um investimento com 20% estaria deixando para o governo 13%, ou seja, sobraria para quem assumisse o risco apenas 7%. E o governo não entende por que os empresários não investem.

Outro ponto importante tem a ver com a incerteza gerada pelos sucessivos planos. O melhor retrato disso está na taxa de formação de investimento. A cada plano, a taxa de formação de capital aumenta e, à medida que o plano se esvai e as esperanças desaparecem, volta a cair. No gráfico da página ao lado vemos a evolução da taxa de investimento em relação ao PIB. Observa-se, pelo menos em termos de tendência, que a cada plano a formação de capital aumenta um pouco, talvez para atender a certa pressão de demanda, e logo depois diminui. O relevante é que, a partir do final de 1992, a taxa de formação de capital no Brasil voltou a crescer. Trata-se de um fato importante, e esperamos que essa taxa não volte a cair.

Como as reformas não ocorreram, temos que nos contentar com os financiamentos externos. O Brasil está entre os países que têm sido mais contemplados (perto de US$ 35 bilhões), entre os receptores desse tipo de recursos. Na Argentina, somando fluxo de investimento direto mais portfolio, temos algo em torno de US$ 6 bilhões. O fato é que a equipe econômica parece estar pretendendo que o Brasil capte grande parte desses recursos.

No final da segunda semana de maio, houve uma reunião no Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), em que se discutiu o futuro do plano. Não vou citar o nome da pessoa, mas nesse encontro um economista brilhante de Brasília colocou três verdades. Primeira: a inflação efetivamente caiu e está praticamente domada. Segunda: o Brasil está sendo, como ele disse, a bola da vez. O fluxo de recursos é tão intenso que não há nada com que se preocupar nos próximos anos. Alguns dias depois, aconteceu o desastre da Tailândia. Não sei se essa pessoa continua pensando da mesma forma. Provavelmente sim. Terceira verdade: as reformas estão caminhando muito bem.

Confesso que saí dessa reunião um pouco preocupado, porque não estava entendendo como alguém que está muito próximo da realidade pudesse acreditar efetivamente que não há nenhum problema de recursos para o Brasil, que a inflação está totalmente domada (não sei se 6% pode ser considerado inflação civilizada no Brasil, mas estamos longe desse número) e que a situação está resolvida.

Mas o que talvez me angustie mais do que eventuais números desagradáveis seja a sensação de perda de oportunidade que o país está vivendo. Por exemplo, a reforma da previdência, que poderia transformá-la em um grande ativo e trazer um reforço à capitalização de empresas, o chamado capitalismo popular, ainda está presa ao debate sobre uma questão de direitos adquiridos. O governo não consegue fazer a transição entre a chamada previdência tradicional e o modelo que cuida da própria capitalização. Essa troca não precisa passar por nenhuma reforma constitucional. Basta ter habilidade, colocar bons argumentos, e ela poderá ser feita. Ninguém será prejudicado. No entanto, o governo insiste em ferir direitos adquiridos, e então perde. E vai perder sempre.

Outra questão, também ligada a isso, é a privatização. Desde 1992, já no final do governo Collor, o Instituto Atlântico do Rio de Janeiro vem insistindo na idéia de que o Fundo de Garantia, que é um fundo que desapareceu (não sabemos onde andam esses recursos dos trabalhadores), possa ser usado para a privatização*. Essa idéia foi apresentada ao então ministro Fernando Henrique Cardoso, que a considerou extremamente interessante, fantástica, nunca ninguém tinha pensado nisso, etc. Depois da privatização da Vale do Rio Doce, o ministro Antonio Kandir recebeu um trabalho nosso, achou a proposta interessante e disse que ia pensar. Ou seja, depois daquela privatização, que foi talvez uma das mais tumultuadas, o governo descobre (é óbvio que já sabia disso) que poderia ter resolvido toda a situação perante os trabalhadores - não digo perante o corporativismo -, oferecendo algo muito interessante. Daqui para a frente, parece que o governo vai tentar usar recursos do Fundo de Garantia para a privatização. Mas boa parte do filão já passou, e agora as coisas começam a ficar um pouco mais complicadas.

Nota da Redação - Esta palestra foi proferida em 12 de junho de 1997. Nos últimos dias de agosto foi aprovada a utilização parcial do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço nos planos de investimento destinados à privatização.


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