Postado em 01/03/2005
Evento mostra a ligação do dramaturgo Plínio Marcos com o samba, o futebol e o jornalismo
Se estivesse vivo, o dramaturgo Plínio Marcos completaria 70 anos em 2005. O autor entrou para história do teatro como “maldito” pelo conteúdo ácido e mordaz de seus textos que incomodavam a censura durante a ditadura militar, mas sempre atraíram crítica e público. Morto em novembro de 1999, Plínio soube retratar como ninguém o que há de vulnerável na condição humana e as fraquezas da sociedade. Basta pensar em peças como Dois Perdidos numa Noite Suja e Navalha na Carne. Porém, o lado maldito era apenas uma de suas facetas. A figura complexa traduzia-se também numa profunda ligação com a cultura popular e na paixão pelo samba, pelo Carnaval e pelo futebol. É esse lado mais extrovertido e menos conhecido do escritor que veio à tona no projeto Plínio de Outros Marcos: Prosa, Samba e Futebol, em cena no Sesc Santo André até 8 de fevereiro. Compondo a homenagem, shows de música, exposição de fotos, vídeos e até partidas de futebol [veja programação no Em Cartaz desta edição]. “Apesar de toda a nossa trajetória no teatro, uma das lembranças mais vivas que tenho dele são as partidas de futebol de várzea seguidas das feijoadas lá em casa”, conta o ator e amigo Carlos Costa, mas conhecido como Carlão. Também amante do samba, Carlão fundou com o dramaturgo a Banda Bandalha, que, na época do Carnaval, saía pelas ruas de São Paulo e reunia nomes como Leila Diniz, Odete Lara, Eva Wilma, Tony Ramos e Walderez de Barros, primeira mulher de Plínio Marcos. O grupo não durou muito, apenas dois anos (1972-73) e o estilo ácido do autor teve a ver com o fim precoce. “O Plínio não tinha um gênio muito fácil, era durão”, conta o amigo. Como o samba era a paixão maior de todos ali, em 1974, Carlão reuniu o pessoal do Teatro de Arena, na capital, e fundou a Banda Redonda. O nome era inspirado no boteco que havia em frente ao teatro, o Redondo, e também numa gíria da época que designava pessoas de mente aberta, as preferidas de Plínio. “Ele sempre escrevia sobre a banda no tempo em que trabalhava no jornal Última Hora, em São Paulo”, conta Carlão. O grupo de foliões percorre as ruas do centro de São Paulo até hoje, todo ano, poucos dias antes do Carnaval.
A análise do cotidiano, transformada em deliciosas crônicas, as entrevistas com personalidades de todas as tribos, de Leila Diniz a Jânio Quadros, e a língua ferina, que “vitimava” tanto cartolas de futebol como o governo militar, formou a porção jornalista de Plínio. “Éramos homens de teatro, mas, como tantos, nos dividíamos entre o palco e as redações para sobreviver”, lembra Oswaldo Mendes [veja depoimento na íntegra no boxe Generosidade e coerência], colega de redação no extinto Última Hora, que apresentou uma entrevista gravada com Plínio para a TV Educativa do Paraná durante o evento no Sesc Santo André. Plínio começou a escrever naquele jornal em 1968. E manteve a carreira até 1977, então como colaborador da Folha de S.Paulo. Como jornalista considerava-se “repórter de um tempo mau”, fazendo “a terra tremer várias vezes”. E, de fato, o fez. Após uma passagem pela Veja, em 1975, contratado por Mino Carta, Plínio ficou um ano impedido de escrever para a imprensa. Era a censura que não o perdoava.
Uma coletânea do material produzido nas redações de jornais virou o livro Plínio Marcos: a Crônica dos Que Não Têm Voz (Boitempo Editorial, 2002), organizado por Javier Contreras, Fred Maia e Vinícius Pinheiro. Os organizadores o conheceram em 1999 durante o trabalho de pesquisa, e conviveram com ele naquele ano, até sua morte. Para Javier, apesar da fama de desbocado e genioso, Plínio era na verdade um homem afável e tranqüilo. “Era, sim, um sujeito que discutia, mantinha suas idéias de pé até o fim, mas ao mesmo tempo era uma pessoa desprendida de todo bem material”, conta. “Ele se mostrou muito confiante na nossa proposta. Inclusive, deixou todo o seu material conosco, sem ao menos nos pedir um número de telefone.”
Passou pelas mais diversas profissões possíveis, incluindo funileiro, vendedor de livros sobre espiritismo e até palhaço. Em 1958, conheceu o grupo de intelectuais que cercava a escritora Patrícia Galvão, a Pagu, amigos que exerceram forte influência em sua formação. “Todos os domingos Pagu fazia o Geraldo Ferraz [marido dela] ler uma peça pra nós”, conta o autor em um dos textos de seu site oficial [www.pliniomarcos.com]. “Eram peças como Esperando Godot etc. Eu ficava ouvindo-a falar e aquilo me despertava para ler, para estudar.” Foi nesse ano que o dramaturgo escreveu a primeira peça, Barrela. O sucesso veio com Dois Perdidos numa Noite Suja, de 1966. Em plena ditadura militar, foi por essa época que Plínio começou a ter problemas com a censura. A tensão era tanta que na estréia de Navalha na Carne, no Rio de Janeiro, em 1967, o exército cercou o teatro e proibiu a apresentação. Foi a atriz Tônia Carrero quem conseguiu convencer o governo a liberar o texto um tempo depois. Foi preso em 1968, 1969, transferido para o Departamento de Ordem Política e Social (Deops) em São Paulo, e detido para interrogatório em várias ocasiões. Na década de 70, tornou-se símbolo de tudo que a censura perseguia. Em mais de 40 anos de carreira, Plínio transitou pelo cinema, pelo teatro e pela literatura e trabalhou como diretor e também como ator. “Com ele aprendi que o teatro é coisa séria, que o ator batalha por sua profissão, não quer só estrelato. Aprendi que o teatro diverte, mas também instrui”, conclui o amigo Carlão.
Nossa amizade começou quando Plínio foi a Marília (SP), onde eu morava, apresentar Dois Perdidos numa Noite Suja, e se estreitou no início dos anos 70, quando trabalhamos juntos no jornal Última Hora, com Samuel Wainer. As muitas histórias e amigos em comum nos fizeram tão próximos que eu tinha a impressão de sermos amigos de toda uma vida. E acho que a sensação era mútua. Conseguíamos discordar sem que isso arranhasse a amizade. No início de 80, ele criou O Bando, um grupo para dar trabalho a atores desempregados, e me chamou para dirigir sua peça Quando as Máquinas Param. Começamos a ensaiar e perto da estréia fizemos uma reunião. Eu e o elenco não concordamos com a proposta do Plínio para a temporada do espetáculo. “Não vai dar pra fazer às 9 horas da manhã na quadra de esportes das escolas?”, perguntou ele. Diante da nossa negativa, respondeu: “Então está bem. Assunto encerrado, nós continuamos todos amigos, sem as mesquinharias da vaidade que cercam as discordâncias no meio teatral ou em qualquer outro meio”. Assim era ele.
A generosidade é a marca do homem Plínio Marcos e de sua obra. São incontáveis os exemplos de seu espírito solidário, mas cito apenas um: sem alarde, no auge do sucesso de Navalha na Carne, ele dividiu o que recebeu de direitos autorais para ajudar no tratamento médico e na recuperação de um jovem ator, vítima de um aneurisma. Ao contrário dos tempos atuais, de solidariedade premiada, ele seguia o preceito de que a mão esquerda não deve saber o que a direita dá. Por isso também não digo nomes. Na obra teatral, a generosidade de Plínio Marcos se revela na visão dos excluídos e marginalizados, como a sua comovente Neusa Sueli de Navalha na Carne.
O maior legado que ele deixou, além de toda a sua obra, foi um grande exemplo de coerência. É comum dizer que, em geral, a obra é maior que seu autor. Um ser humano de qualidade ética discutível pode produzir uma grande obra. Os exemplos se multiplicam na literatura mundial. Em Plínio Marcos não há essa diferença entre o autor e a obra. Seu olhar generoso para os que “gritam na geral sem influir no resultado”, para usar uma metáfora futebolística bem ao seu gosto, reflete-se nas peças e nos personagens. E duas dessas peças, Navalha na Carne e Dois Perdidos numa Noite Suja, sintetizam bem o seu legado de coerência e de generosa compaixão com os que vivem à margem, nas quebradas do mundaréu.