Postado em 01/10/1998
Em matéria de guardar nomes sou um verdadeiro desastre. De maneira que, quando me telefonam, não consigo ligar de imediato o nome à pessoa e recorro a um expediente velho, de anos e anos, que, às vezes, nem sempre, e cada vez menos, serve para me avivar a memória. Por exemplo, telefonam-me e quem quer falar comigo "é o Francisco". Pergunto-me: "Que Francisco? No momento, não conheço nenhum Francisco, estou em falta em matéria de Francisco". Mas em vez de simplesmente dizer: "Francisco? Que Francisco?", recorro ao expediente: "Como vai, comandante? O sargento Silveira em posição de sentido e aguardando ordens".
Foi o que aconteceu dias atrás. O telefone tocou:
- É o Joel?
- O próprio.
- Aqui é o Osmundo.
Que Osmundo? No caso, não é que no momento eu esteja em falta em matéria de Osmundos, não disponho de nenhum deles. A verdade é que jamais conheci um Osmundo em toda minha vida. Ou conheci?
- Comandante Osmundo, que é que manda?
Osmundo não mandava em nada, queria apenas pedir desculpas. Disse:
- Desde aquela discussão na casa da Zauleika que penso em lhe telefonar e pedir desculpas pelo... como direi... minha extremada veemência.
A coisa começava a embolar. Zuleika? Que Zuleika? Eu tinha absoluta certeza de que no meu caderninho de telefone que já tive, em todos, dezenas deles, jamais constou alguma Zuleika, quer como figura de destaque ou mera coadjuvante. Lembro-me vagamente de uma Zenaide, e, mais vagamente ainda, de Zilda. Não, definitivamente jamais existiu uma Zuleika na minha vida, sacra ou profana... Falei:
- Pois é, a Zuleika...Como vai ela?
- Desde aquela noite nunca mais a vi. Acho que, como ela, fui ainda mais desastrado...
Como eu sentia que Osmundo estava realmente descontente com ele mesmo, e pelas "extremas veemências" cometidas na casa de Zuleika, procurei minimizar o tal desastre.
- Você está exagerando. Foi apenas uma discussão tola... eu nem me lembrava mais.
E Osmundo:
- Pois eu estava certo de que havia ficado chateado. Aquela sua retirada intempestiva, sem ao menos despedir-se da Zuleika... E além do mais, desde aquela noite, você nunca mais me telefonou.
A embolação era cada vez maior. Osmundo, discussão, Zuleika, extrema veemência, retirada intempestiva de minha parte... Era como se o goleiro estivesse jogando na ponta esquerda e o ponta esquerda na defesa. Disse, quero dizer, inventei:
- Não saí intempestivamente de forma alguma... É que eu já estava pelas tabelas, morrendo de cansaço e, por que não dizer, já bem bebido. Não sei se lhe disse, mas antes de chegar ao apartamento...
- À casa.
- Pois é, casa! É uma assim que eu queria para mim.
Osmundo, do outro lado, deve ter arregalado os olhos, já que a voz era de espanto.
- Uma casa como a de Zuleika, toda apertadinha, mais parecendo uma quitinete? E naquela rua que mais parece um beco? É, você devia estar mesmo bem "uiscado".
- E estava mesmo. É como eu ia lhe dizendo. Antes de chegar à... bem... casa de Zuleika eu tinha passado antes no apartamento de Jacqueline...você sabe quem é...
- Jacqueline? Não, acho que não conheço nenhuma Jacqueline.
"Nem eu", tive vontade de dizer. Mas continuei:
- Claro que conhece. Aquela francesinha simpática, prestativa, que sempre foi amiga de todos nós, jornalistas. Pois, na época, ela estava indo para Paris, foi transferida para Madri...E o Osmundo (que naturalmente também estava agora todo enrolado):
- Não, não conheço. Amiga ela é ou foi de vocês, jornalistas, o que não é o meu caso. Continuo a ser mero chefe de seção da Prefeitura...
- Bem, mas isso não tem importância. O que quero dizer - aliás, já disse - é que quando cheguei à casa de Zuleika já estava um tanto embriagado... Só fui porque gosto muito da Zuleika.Osmundo:
- E desde quando você começou a gostar de...da Zuleika? Não tem um ano que você me confessou que não a suportava. Chegou mesmo a dizer, lembro-me bem: "Não pode existir nada mais intrigável do que bofe intelectual".
- Eu disse isto? Pois me arrependo muito. A Zuleika é boa pessoa...
Osmundo espumejou, era pura indignação:
- Zuleika, boa pessoa? Você já esqueceu do que ela fez com o Osvaldo?
- Bem...
- Uma serpente!
Que teria feito Zuleika, a serpente, contra o pobre do Osvaldo? A embolação estava virando um nó cego. Eu disse:
- Pois é... Mas não é melhor esquecer tudo isso? Foi uma noite abilolada, com todo mundo falando ao mesmo tempo e todo o tempo... E o pior é que depois dos vinhos franceses no apartamento da Jacqueline ainda emborquei uns quatros uísques na casa da Zuleika. Quase apaguei...
Osmundo faz uma pausa e perguntou:
- Quer dizer que a nossa amizade continua intacta, que você não guardou nenhum ressentimento?
- Claro que continua. E não lhe telefonei mais porque perdi o meu caderninho de telefone. Como o telefone é um dos meios instrumentos de trabalho, você já pode calcular.
Osmundo estava realmente feliz, desafogado, eu sentia pela voz.
- Você não sabe como foi bom telefonar para você e esclarecer tudo. Vamos nos encontrar qualquer dia destes.
- Quando quiser, no lugar que quiser.
- Telefono depois.
- Fico esperando.
- Então, um abraço.
- Outro, comandante. E o sargento Silveira pede licença para despedir-se.
A licença foi concedida, despedi-me.
Joel Silveira é jornalista e escritor, autor de Viagem com o Presidente, entre outros.