Postado em 01/02/2005
O diretor, produtor e roteirista Ugo Giorgetti, de 58 anos, concluiu seu primeiro longa-metragem de ficção, Jogo Duro, em 1985. O filme ganhou menção honrosa de roteiro no Festival de Brasília e mais três prêmios no Festival de Fortaleza. Já Festa, de 1988, foi o grande vencedor do Festival de Gramado de 1989, nas categorias de melhor filme pelo júri e pela crítica. Em seguida, vieram Sábado (1994) e Boleiros (1997) – este recebeu o prêmio de melhor direção no Festival International du Film d’Amiens, na França. Todas as obras têm em comum a ambientação em São Paulo. Porém, segundo ele, isso não revela a busca por uma estética paulistana, mas sim o interesse pelas pessoas como temática: “Se você está em São Paulo, de alguma maneira você está influenciado pela cidade, não tem conversa. E eu sou daqui, então fica mais fácil para mim. Eu sou uma pessoa que precisa da cidade”. A seguir trechos da conversa do cineasta com a Revista E, na qual falou do sucesso de Boleiros, das leis de incentivos fiscais, das dificuldades de fazer cinema no Brasil, e do documentário que está preparando para a TV Cultura.
Agora estou preparando o Boleiros 2, para filmar no fim de março. Está começando a pré-produção, por isso que está meio corrido. E também estou terminando um documentário, falta filmar muito pouca coisa. É um documentário longo sobre pizza.
Em São Paulo. Para a televisão. Em produção com a TV Cultura. Na realidade a pizza é um pretexto. Você vai ver claramente a cidade, as tradições, a loucura, a conformidade social, psicológica. A gente vai a pizzarias em periferias da cidade, em Heliópolis, no Jardim Ângela, no Campo Limpo, em Higienópolis, na região dos Jardins e na Granja Viana. É possível ver que, enquanto no Jardim Ângela uma pizza de mussarela custa 6 reais na promoção, na Granja Viana custa 48 reais. E só com reserva. Você não pode chegar à pizzaria sem reservar mesa antes. É um grande retrato da cidade, contado por meio de uma comida que é muito comum. Ela está na favela, nos Jardins e na Granja Viana. Também há uma investigação sobre quem é essa gente que trabalha com pizza. Você tem desde o cara que é neto de quem abriu a pizzaria em 1927, no bairro do Brás e tal, até o pessoal que vem do Nordeste, quase todos na verdade. Interessaram-me muito também aqueles motoqueiros que entregam as pizzas, a gente ficou em cima deles. O ideal para denominar esse documentário seria dizer: “Pessoas que trabalham com pizza”. Mas isso é um título muito vago e pouco comercial. A idéia não foi falar na pizza, ir lá na pizzaria, mostrar receita... Não, não é isso. Claro, tem de mostrar o prato... Mas o importante são as pessoas que trabalham nesse ramo. Acho que vai ficar muito legal.
O pizzaiolo mesmo, hoje, é um cara do Nordeste que nunca comeu pizza lá na terra dele. Todos falam isso, que não sabiam o que era pizza. Teve um até que falou que a primeira vez que comeu pizza foi quando começou a trabalhar na pizzaria. Esse rapaz entrou para descascar batatas e foi evoluindo, até que hoje ele é o pizzaiolo.
Você acha que essa história de nordestinos aprendendo a fazer pizza é, de certa forma, a cara de São Paulo?
Isso aqui é uma cidade de imigração. O migrante nordestino é tão imigrante quanto o cara da pizzaria fundada pelo avô italiano. Então, é uma fusão de imigrações. Acho que é isso que explica um pouco o negócio.
Você teve sempre um recorte sobre São Paulo. É o que desperta seu interesse como temática?
Não. O que me interessa como temática são pessoas, personagens. Mas esses personagens estão em algum lugar no mundo. Se você está em São Paulo, de alguma maneira você está influenciado pela cidade, não tem conversa. A cidade é responsável por parte da sua personalidade. Disso não há dúvida nenhuma. Você sofre por uma cidade, qualquer que seja ela. Então, eu tenho de mostrar esses personagens em algum lugar. Isso é um lado. Outro lado é que eu sou daqui, então fica mais fácil para mim. Eu sou uma pessoa que precisa da cidade. Tem gente que não precisa. O sujeito vai para casa, mora num condomínio, depois, amanhã, pega o carro, sai da garagem, nem vê a cidade. Já eu ando pela cidade, sempre andei.
Não saberia dizer. Não tenho como detectar isso, não tenho meios. Confesso também que esse problema não passa muito pelo meu interesse. São Paulo tem sua estética, o Rio [de Janeiro] tem a sua. Olha, eu vou falar uma coisa que parece uma loucura e um sacrilégio – e eu não desejo mal a ninguém, pelo amor de Deus –, mas os melhores cineastas do Rio de Janeiro morreram. Se pensarmos bem, veremos que o Glauber Rocha, o Leon Hirszman, o Joaquim Pedro de Andrade, o Davi Neves, o Fernando Cony Campos, e mais outros, morreram. Os que ficaram, que estão aí em atividade até hoje, são pessoas que pensam o cinema de outra forma. Os remanescentes desse grande grupo do cinema carioca dos anos 60 e 70, por incrível que pareça, são uma coincidência muito grande. Os que ficaram são quase todos do mesmo jeito: cinema comercial, fácil e digestivo. É uma questão de mercado. Cinema do Rio de Janeiro é um cinema muito criativo, sempre foi. É claro que você tem o Ruy Guerra ainda, tem o Júlio Bressane e tal. É verdade. Mas esses estão um pouco soterrados por essa avalanche comandada por um pessoal que realmente pensa no cinema de outro jeito, muito mais fácil, para dizer o mínimo.
E, em termos de público, você sente que ele gostaria de privilegiar temas, digamos, mais complexos? Ou temos de simplesmente levar ao cinema uma idéia de continuação da novela das 8?
Eu acho que essa hipótese de continuação da novela não tem sentido por uma única razão: já existe a novela, para que outra? Na verdade o que se tenta fazer é que o público pague por uma coisa que ele já tem de graça. E o público, despreparado, paga. Evidentemente é difícil fazer um filme no Brasil que requeira do público um nível de informação um pouquinho maior. Disso não tenha dúvida nenhuma. É difícil, muito difícil. Se você fizer uma coisa com um pouco mais de exigência – e veja que nem estou falando de coisas experimentais –, já é uma complicação num certo sentido. Mas é necessário fazer, não há como não fazer. A vantagem desses filmes é que duram mais tempo que os outros. Há filmes que são um grande sucesso momentâneo e depois vão cair no esquecimento. E você tem filmes que depois de cinco ou seis anos continuam sendo requisitados, passam em mostras, passam em televisão, passam aqui e acolá e resistem. É o caso de Boleiros. Todo dia a gente recebe aqui um e-mail perguntando se não vai sair DVD de Boleiros. E é um filme que já tem sete anos. Eu fiz em 1997, saiu em 1998, e estamos em 2005. Acho que, se são bons, esses filmes que aparentemente não têm todos esses ingredientes do momento duram mais. E isso acaba sendo comercialmente importante também, pois vende coisas.
Com a constante menção de filmes brasileiros na lista de possíveis concorrentes ao Oscar de filme estrangeiro, ou mesmo concorrendo ao prêmio, você diria que o cinema brasileiro corre o risco de ficar, de certa forma, dependente de um grande esquema internacional de produção?
Há duas coisas aí. Há uma opinião que é objetiva, fria, racional: eu não vejo futuro nenhum nisso, eu acho isso um escândalo, acho que o cinema brasileiro atravessa uma fase negra, absurda, totalmente inconcebível em qualquer outro país sério do mundo. Eu não vou citar a França, nosso espelho maior, porque de lá, em termos de cinema, de legislação de cinema e de ordenação até jurídica da própria comunidade cinematográfica, nós estamos a centenas de anos-luz. Mas posso falar da Argentina, por exemplo, que é nosso “rival” – o Galvão Bueno vive incitando a gente a odiar os argentinos: na Argentina existe uma lei de cinema muito mais interessante, muito melhor. E melhor para quem? Para o cinema independente. Para quem ela é melhor? Para a comunidade independente. Aqui no Brasil, a situação é, na minha opinião, indecente. Indecente. Há gente fazendo cinema para agradar aos grandes estúdios de Hollywood, ou à TV Globo, ou há ainda o caso da pessoa que por alguma razão é amiga do dono de alguma empresa com quem vai cavalgar no fim de semana e ouve as hipóteses do empresário para você fazer um filme. O que a gente tem de entender, que é muito importante, é que nenhuma dessas empresas, nem a Warner, nem a Columbia, nem a Fox, nem ninguém trabalha com dinheiro próprio. Trabalha-se com dinheiro dos incentivos fiscais. Só que eles incentivam o contrário. Muitos negam isso com uma série de argumentos, tentam provar, por meio de um sofisma, que eles não trabalham com dinheiro público. Então eu faço uma simples pergunta: se eles não trabalham com dinheiro público, por que eles só começaram a trabalhar quando saíram as leis de incentivo? Antes disso – eu faço filme desde muito antes de haver a lei do audiovisual –, se você procurasse a Fox, não passava nem do porteiro. Você não era recebido nem pela secretária da secretária da secretária. Esse súbito acesso de brasilidade, de fazer filmes no Brasil, que acometeu essas multinacionais, se deu a partir do momento em que coincidentemente o governo falou que elas podem usar os impostos aqui. Na realidade, eu acho que a coincidência de datas é bastante reveladora. A Globo Filmes, por exemplo, não existia antes disso. Existia a Globo Vídeo. E a Globo também diz que não usa dinheiro público. No entanto, a Globo Filmes começa coincidentemente junto com os incentivos fiscais do governo. Olha, nós estamos numa arapuca. Houve uma tentativa agora de desarmar essa arapuca de alguma forma, por parte desse projeto da Ancinav [Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual] que foi liquidado. Não acredito que a troco de nada.
Era ordenar um pouco. Era fazer com que o dinheiro do cinema viesse do próprio cinema. Que é o que acontece na Argentina. O dinheiro do cinema, 10% de cada ingresso vai para o instituto de cinema da Argentina [Instituto Nacional do Cinema e Artes Audiovisuais, Incaa]. Ou seja, o dinheiro do cinema não vem da Nestlé. Não vem da Colgate-Palmolive, da Brahma etc., o que é ridículo. Um absurdo, uma coisa grotesca. Você ter de ir falar com um empresário, para ele te dar dinheiro para fazer um filme, quando ele faz cerveja, panetone e carro? O cara tem é de fazer panetones, carros e cervejas bons e baratos. Não filmes. O dinheiro para o cinema na Argentina vem do próprio cinema. E o projeto da Ancinav visava, entre outras coisas, que aqui fosse assim também. Como se faz isso? Por meio das taxas. Que taxas? Taxas cobradas dos exibidores, da televisão. Na Argentina, isso bastou.
Mas no meio disso começaram também a tentar controlar o conteúdo dos filmes.
É, mas isso foi rapidamente retirado. Não tinha, nunca foi explicitamente colocado assim, jamais. Havia uma ou duas tentativas nesse sentido. A tentativa de qualquer governo do mundo é controlar, é legítimo isso. Agora, a sociedade deixa ou não ele controlar. E houve uma reação e eles cederam. O resto não tinha nada a ver com isso. E é desse resto que eu estou falando, um procedimento puramente econômico e que não passava pelo conteúdo.
Eu vou dizer uma coisa que não tem nada a ver com a Ancinav, é uma opinião pessoal. Eu acho que está mais do que na hora – repito: mais do que na hora – de o governo entrar no conteúdo das televisões. A própria TV, na minha opinião, faz uma grande confusão na cabeça das pessoas, insinuando que se trata de um governo tirânico e que pretende dirigir a opinião pública como se houvesse uma ditadura. Primeiro, o governo é legitimamente eleito pelo povo. Portanto, seríamos nós que estaríamos intervindo, intervindo por via governamental, nós, a sociedade que elegeu este governo. Então, não há nada de ditatorial nisso. O que acontece é que o Executivo pode propor, vai para o Congresso Nacional, justamente para democratizar. Agora, está mais do que na hora de o governo entrar no conteúdo da TV. Porque o que acontece na televisão brasileira é um escândalo público. Nós praticamente não temos educação formal no Brasil, as escolas faliram todas. Quem transmite educação para a molecada, para as gerações brasileiras, é a televisão, isso que está aí. Agora, se você pegar a programação de televisão, é um crime o governo não interferir. Eu acho que todo presidente do Brasil futuramente vai ser responsabilizado por esse crime de deixar Silvio Santos e não sei mais quem, religião não sei de quem, instruir a população brasileira. Inclusive a TV Globo, que, no meio de alguma dramaturgia decente – Guel Arraes, Luiz Fernando Carvalho e Jorge Furtado, para citar alguns bons exemplos –, tem um lixo como o Faustão, a Xuxa, o diabo a quatro. E agora vai dizer que o Estado não pode interferir na opinião? Isso não é opinião, esse conteúdo é lesivo, é um absurdo, é uma coisa degradante.
Mas joga-se com a idéia da censura.
Claro. Porém, ditadura é quatro pessoas determinarem o que o povo brasileiro vai ver. Isso que é ditadura. Nós temos uma ditadura de quatro: Silvio Santos, a Record, a Bandeirantes e a Globo. A Rede TV! eu nem conto porque não sei o que é. Tudo bem, talvez cinco, se você quiser. São cinco pessoas que ninguém conhece, e quatro delas de um nível inacreditável. Por que a Globo é melhor? É muito simples, porque o Roberto Marinho era melhor. Era uma família de jornalistas, ele tinha um jornal, portanto ele tinha uma formação mais, digamos, civilizada; vamos chamar assim por falta de melhor palavra.
Eles gostam daquilo. É o fim do mundo. Televisão do jeito que ela existe no Brasil não existe em lugar nenhum. O poder que essa gente tem, de determinar até os valores. Você vê criança de 5 anos imitando pessoas da televisão. Eu não estou dizendo que você deve fazer uma televisão moralizante; imagine, não tem nada disso. Que se fizesse primeiro uma televisão inteligente, uma televisão que permitisse ao público optar. Para dar várias visões de cultura. Por que eles só apresentam um tipo de música? Por que só se apresenta um tipo de dramaturgia? Por que só um tipo de pensamento? Por que não outro? E o público opta. Na ditadura era melhor. E eu afirmo que era melhor. A Globo era melhor na ditadura. A Globo tinha um negócio chamado Globo Repórter que era muito bom. Eram documentários, em pleno horário nobre, 9 e meia da noite, alguns eram obras-primas, realmente, em plena ditadura, em 1975. Agora, é aquilo que a gente vê.
O projeto da Ancinav era um projeto suave. Se você pegar o que os caras fazem na França, você fala “não é possível”. Por exemplo, não pode ter comercial de filmes na França. Nenhum filme pode ter comercial. Não existe. Você não pode fazer publicidade de um filme de longa-metragem. Por quê? Porque eles acham que a Columbia, a Fox e não sei mais o que têm mais força que o produtor independente e que essas grandes ganhariam com isso. Então ninguém pode. E daí eu fui verificar algumas coisas, o Carrefour não pode fazer publicidade na televisão francesa. Não há comercial do Carrefour. Porque mata o pequeno peixeiro. Imagine você falar aqui no Brasil que o Pão de Açúcar não pode fazer propaganda na televisão. Naquela época, quando ainda existia mercearia. Agora não há mais nenhuma, tudo bem. E veja que são países governados pela centro-direita. O Jacques Chirac é um homem de centro-direita.
Paris não tem shopping, por exemplo. Ou eles são afastados.
E é um governo de centro-direita! O Chirac é um homem de centro-direita, nem de centro-esquerda ele é... Daí se fala: “Mas, meu Deus do céu, se aquilo é centro-direita, o que a gente é?” Eu acho que aqui não há ideologia, é um grande histerismo mesmo. É outra coisa. É duro, mas, enfim...
Muito complicado. Vamos continuar fazendo, a gente tem de fazer, tem de resistir. Vamos embora.
Mal e porcamente.
Não há outro jeito. Mas aí você pega um pouco da Petrobrás, umas estatais que fazem concursos públicos, que é uma coisa mais honesta, você não precisa rastejar diante do Bradesco, entendeu? E aí você vai levar muito tempo e fazer com muito pouco. Mas, tudo bem, vamos fazer com muito pouco, não há problema nenhum.
Olha, no fim, no frigir, ele não vai custar nem 2 milhões de reais.
Parece barato para um filme.
É o que eu tenho! Não é nem optar pelo muito barato. Eu queria ter 4 milhões. Mas não tenho.
Boleiros foi no começo da lei do audiovisual, tava todo mundo achando que ia ganhar muito dinheiro, as empresas também achando que iriam ganhar muito dinheiro, era aquela euforia, ele custou um pouco mais. Ele custou uns 3 milhões de reais.
Eu não sei se isso vai mudar. Mas eu nunca vi ator no Brasil discutir dinheiro. Se ele gosta do projeto, gosta do roteiro e do diretor, ele faz. Logo no começo da minha carreira, acho que no primeiro longa que eu fiz de ficção, eu fui falar com o Antônio Fagundes – um cara de quem eu gosto muito, conheço há muito tempo e tal – e quando eu ofereci a grana ele falou: “Tá bom. Eu faço esse filme. Mas você vai me prometer nunca contar para ninguém quanto você está me dando”. Era uma quantia ridícula. Ou seja, você vai fazendo assim, você vai trabalhando com seu prestígio, vai trabalhando com técnicos que acreditam no projeto, gente de publicidade etc. Há uma coisa um pouco perdulária do cinema brasileiro, qualquer coisa custa 5 milhões de reais. Eu não posso esquecer uma frase do Roger Corman, que era um grande diretor e produtor americano, sobretudo de filmes B, que numa época disse: “Com um valor de até 2 milhões de dólares, eu sei dizer se o dinheiro está na tela porque eu olho para o filme e consigo dizer. Agora, acima disso eu não tenho a menor idéia de onde está o dinheiro”. E é verdade. Existem umas cifras que você começa a falar: “Será? É possível? Não sei. Talvez”. Só que, meu amigo, é dinheiro de imposto. Não é dinheiro de ninguém. Aliás, é teu, é meu, é nosso.