Postado em 06/06/2005
Áreas contaminadas por empresas desafiam poder público
MAURÍCIO MONTEIRO FILHO
Instalações da Carbocloro: esforço para remediação / Foto: Maurício Monteiro Filho
Apesar de ter sido um dos locais onde o atual presidente da República morou, não foi por isso que a região da Vila Carioca, zona sul da capital paulista, ganhou notoriedade. "Lula viveu lá. Jogava bola, bebia água e tomava banho", relembra César Pereira, diretor do Sipetrol (Sindicato dos Trabalhadores no Comércio de Minérios e Derivados de Petróleo). Em 2002, a área, próxima do bairro do Ipiranga, ganhou as páginas da imprensa por ter sido palco de grave caso de contaminação ambiental, protagonizado pela Shell, uma das maiores empresas do mundo no setor petrolífero. Na época, após denúncias do sindicato, foram detectados vazamentos numa base de armazenamento de agrotóxicos e combustíveis, que contaminaram a mesma água que Lula e outras cerca de 30 mil pessoas num raio de 1 quilômetro utilizavam. Entre as substâncias encontradas no solo, havia metais pesados, benzeno, xileno, tolueno, todos altamente nocivos à saúde humana, além dos chamados "drins" - aldrin, dieldrin e isodrin - identificados pela Organização das Nações Unidas (ONU) como cancerígenos e geradores de alterações nos sistemas reprodutor, endócrino e imunológico humanos.
Dois anos antes, as mesmas páginas já tinham sido manchadas pelo nome da Shell, que assumia seu envolvimento em outro escândalo ambiental e social: o da contaminação do condomínio Recanto dos Pássaros e arredores, em Paulínia, a cerca de 120 quilômetros de São Paulo. O caso também envolvia poluição por "drins" e acabou gerando a determinação da Justiça de Paulínia de que a empresa arcasse com os custos de remoção das famílias moradoras de 66 lotes do condomínio.
A Shell, porém, não foi a única a ocupar as manchetes dos noticiários devido a problemas ambientais. Nas últimas décadas, compartilharam dessa lamentável espécie de notoriedade grupos do porte da multinacional Rhodia, da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), da Carbocloro e da Petrobras, entre muitas outras. Em comum, além de estarem entre as líderes de mercado em seus segmentos de atuação, o fato de terem acumulado, ao longo de décadas de total descontrole das políticas de segurança química, passivos ambientais vultosos.
O relatório de áreas contaminadas (ACs) do estado de São Paulo, publicado em novembro de 2004 pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), identifica 1.336 locais que apresentam níveis inaceitáveis de contaminação de solo e águas subterrâneas e que necessitam de alguma forma de remediação - isto é, a volta da área a condições de uso seguro, uma vez que, segundo Alfredo Rocca, gerente da Divisão de Áreas Contaminadas da Cetesb, já não é economicamente viável falar em recuperação.
Ao mesmo tempo em que alerta para um problema ambiental grave, entretanto, o relatório revela a distância em que se encontram as iniciativas públicas e privadas de uma solução definitiva da questão. Tanto é que, na época de sua publicação, da totalidade das ACs cadastradas, 710, ou 54%, não apresentavam sequer uma proposta de remediação, enquanto em apenas 36% dos locais esses processos encontravam-se em andamento.
Dívidas
Em tempos de combate cerrado à inadimplência econômica, pouca atenção tem sido dispensada ao acúmulo de dívidas com que a atividade industrial no estado de São Paulo tem onerado o meio ambiente e, portanto, a sociedade. Afinal, a própria expressão "passivo ambiental" toma de empréstimo uma noção da área econômica. O professor Luis Sanchez, do Departamento de Engenharia de Minas e de Petróleo da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), explica que ela designa o "valor monetário necessário para reparar os danos ambientais".
Segundo Alfredo Rocca, no mercado internacional há obrigatoriedade de "incluir passivos ambientais nos relatórios que balizam as bolsas de valores". No Brasil, como não existe essa determinação, são raras as empresas que tornam pública sua "contabilidade ambiental". Dessa forma, seus passivos só se tornam conhecidos no momento em que a contaminação atinge um grau intolerável e é denunciada pela imprensa. Como não há nenhuma exigência pública de prestação de contas dos passivos do setor secundário, quem perde é a sociedade, que permanece desinformada, além das próprias empresas.
Foi o que aconteceu com a Rhodia, multinacional franco-alemã, responsável por um dos maiores passivos ambientais brasileiros. Em 1976, quando a empresa comprou a fábrica da Clorogil, de produtos para tratamento de madeira, herdou 11 lixões clandestinos, além de depósitos irregulares na própria planta, onde se dispunham organoclorados, resíduos altamente tóxicos, entre os quais o pentaclorofenol, conhecido como pó-da-china. O caso veio a público em 1984 e culminou, em 1993, com a interdição da unidade da empresa em Cubatão, além de diversas ações tanto do Ministério Público Federal quanto do Estadual (MPF/MPE) contra a multinacional pela contaminação não só de solo e de rios, como também de funcionários. Ainda hoje, cerca de 33 mil toneladas de resíduos da Rhodia permanecem na estação de espera de Samaritá, em São Vicente.
Um inventário completo dos passivos existentes é uma questão ainda mais complexa, pois a própria Cetesb assume que o número de ACs já localizadas é irrisório se comparado ao total de sítios potencialmente contaminados. "Foram identificadas 1.336 ACs no estado, mas há um sem-número não descoberto. Esses locais são os que me preocupam", afirma Daniel Fink, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Urbanismo e Meio Ambiente (CAO-UMA), vinculado ao MPE de São Paulo.
De acordo com Fink, foi criado um grupo interinstitucional, formado por MPE, Cetesb, prefeitura paulista, Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e entidades ligadas à construção civil para reverter essa situação. O objetivo é promover estratégias de identificação das ACs ainda não descobertas. "Estamos cruzando uma lista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de atividades potencialmente poluidoras e das empresas que as exerceram nos últimos dez anos com um cadastro geral de áreas suspeitas da Cetesb. A hipótese é de que cheguemos a 120 mil locais. Nem a Cetesb nem o MPF ou o MPE têm capacidade de fiscalizar esse número", admite ele. Quanto às ACs já comprovadas, o CAO-UMA fez um pedido à Corregedoria Geral de Justiça para que dê publicidade à contaminação, registrando-a na escritura das propriedades.
Eixo deslocado
Apesar de não englobar a totalidade das áreas comprometidas pela poluição no estado, o relatório da Cetesb revela alguns outros dados sobre o perfil da contaminação e sua distribuição geográfica.
Segundo o documento, os postos de combustíveis são responsáveis pelo maior número de passivos ambientais, totalizando 931 ocorrências, ou 69% das ACs de São Paulo. Na maioria dos casos, o problema é resultado de vazamentos dos tanques de armazenagem, enterrados inadequadamente e sem impermeabilização.
Alfredo Rocca admite, no entanto, que esse dado distorce a realidade da poluição de solo e águas subterrâneas do estado. "Uma determinação recente do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) - resolução nº 273, de 2000 - exige o licenciamento dos postos. Por isso, foi tão alto o número de estabelecimentos desse tipo entre as ACs identificadas", afirma ele. Assim, tudo indica que a atividade mais impactante do ponto de vista ambiental - com 237 áreas arroladas no relatório - continue sendo o setor secundário.
Um indício de que a indústria é a maior contribuinte na geração de dívidas ambientais é que a ocorrência de ACs coincide com os locais de atividade mais intensa e antiga. "Foram praticamente 50 anos de industrialização sem gestão ambiental. Ainda estamos em processo de identificação dos passivos gerados e devemos esperar alguns anos para descobrir os maiores vilões", declara Rocca.
Em termos de poluição por esse ramo de atividade, o interior lidera, com 75 ocorrências, seguido pela região metropolitana de São Paulo, que apresenta 70 casos, pela capital, com 42 áreas, litoral, principalmente a Baixada Santista, com 32, e vale do Paraíba, com 18.
Esses dados permitem identificar que o eixo das áreas prioritárias para a criação de políticas públicas mais eficazes de gestão e controle ambiental foi deslocado. A região de Cubatão, na Baixada Santista, que foi foco de atenção e apresentou sensível melhora a partir da década de 80, pouco a pouco vai deixando para trás o estigma de "Vale da Morte". Os maiores passivos ambientais ainda estão no local, alguns ainda sem nenhuma remediação eficaz, como é o caso da Rhodia, mas pode-se dizer que, no conjunto, a área evoluiu em direção a uma gestão ambiental responsável.
Infelizmente, entretanto, enquanto os holofotes voltavam-se para o litoral, o casamento entre a inércia da agência ambiental e a atuação irresponsável das empresas tornou outra região de São Paulo, mais especificamente a cidade de Piracicaba e municípios próximos - Limeira, Americana e Paulínia - o berço dos passivos ambientais mais graves do estado. "O interior apresenta, atualmente, as contaminações mais importantes. A poluição da bacia do rio Piracicaba é, hoje, mais séria que a do Tietê", afirma Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).
Iniciativas positivas
Em contraposição à realidade dramática do vale do Piracicaba, marcada pelo descaso público e privado, as indústrias da Baixada Santista, principalmente as do pólo de Cubatão, travam uma luta de quase duas décadas contra os estigmas que pesaram sobre elas devido à contaminação da região.
"Antigamente, uma chaminé emitindo fumaça era sinal de orgulho", conta Ademar Salgosa Jr., gerente de suporte industrial da Carbocloro, empresa produtora de cloro, soda cáustica e EDC, matéria-prima do PVC.
A fala de Salgosa simboliza o descontrole ambiental que marcou o início da industrialização de Cubatão. "Só se atentou para as virtudes da região [durante a implantação do pólo]: acesso fácil a estradas, energia e água. Ninguém se lembrou da serra do Mar, um paredão de 700 metros, que dificulta a dispersão de poluentes", explica ele. Além disso, segundo Salgosa, Cubatão é uma região de solo muito instável, que cede com facilidade, o que explica em parte o elevado número de infiltrações de produtos químicos.
De 1955 a 1975, instalaram-se na área 18 empresas. "Não havia legislação ambiental nem tecnologia de controle", conta Élio Lopes, engenheiro e ex-gerente da Cetesb. Só em 1976 surge a lei 997, que dispõe sobre a poluição no estado de São Paulo. E apenas cerca de dez anos atrás foram feitos os primeiros estudos hidrogeológicos, que constataram a extensão da contaminação na área.
Pela detecção relativamente precoce da poluição, em comparação com outras regiões do estado, as indústrias de Cubatão também foram pioneiras na implantação de sistemas de gestão ambiental. Já no início da década de 70, a Carbocloro começou a investir no setor. Hoje, a planta da empresa alterna células de eletrólise e tanques de evaporação de soda com árvores frutíferas, lago com peixes, viveiros de pássaros e outros animais silvestres. Além disso, desde 1991, a fábrica conserva uma reserva particular do patrimônio natural (RPPN), contígua à área produtiva da indústria.
Ainda assim, a empresa figura no relatório da Cetesb por poluição do solo e das águas subterrâneas, dentro e fora da planta, por metais pesados e solventes halogenados. Além disso, é atualmente alvo de ação do MPF e do MPE em função da contaminação por mercúrio, substância utilizada em seu processo produtivo. Hoje, a Carbocloro, detentora do certificado ISO 14001 de excelência ambiental, gasta US$ 2 milhões ao ano para manter em funcionamento seus equipamentos de controle de poluentes, cuja aquisição já totaliza um investimento de US$ 37,7 milhões.
Outro exemplo de companhia que busca um gerenciamento responsável mas que ainda possui passivos significativos é a Cosipa, uma verdadeira cidade-siderúrgica de 12 milhões de metros quadrados e mais de 12 mil funcionários. "A implantação de sistemas de gestão ambiental não quer dizer que não haja problemas, mas que eles existem e são enfrentados. Não é uma questão de marketing, mas de inteligência", declara Benito Gonzalez, superintendente de meio ambiente da empresa.
Segundo ele, um dos principais passivos da Cosipa se referia ao destino dado ao ascarel, óleo utilizado para refrigeração que apresenta potencial cancerígeno. A solução foi enviar o poluente para a única planta de incineração da substância no Brasil, localizada em Maceió (AL), o que foi feito através da assinatura de um termo de ajustamento de conduta (TAC) - uma medida extrajudicial - com o MPE e a Cetesb, em 2002. "Passivo não significa crime, mas a necessidade de adaptação a uma nova lei", afirma Gonzalez.
A Cosipa é outra empresa do pólo de Cubatão que, apesar de também possuir o ISO 14001, permanece no relatório de ACs da Cetesb. Segundo o documento, a planta apresenta poluição de solo e de águas subterrâneas, com presença de metais pesados, solventes aromáticos e fenóis halogenados, entre outros. "Nosso estudos até hoje não acusaram contaminação das águas subterrâneas", argumenta Gonzalez. Mas ele admite que "é provável que exista uma contribuição da Cosipa no que se refere a metais pesados".
Soluções distantes
Apesar dos exemplos da Carbocloro e da Cosipa, que tentam começar a reverter seus passivos, não se pode dizer que haja a mesma disposição por parte da maioria das empresas.
Os processos decorrentes de acidentes como os da Rhodia em Cubatão e os da Shell em Paulínia e na Vila Carioca tramitam na Justiça há anos. No caso da multinacional franco-alemã, existe a suspeita de que os resíduos estocados na estação de espera e na planta desativada continuem a gerar contaminação. "Estamos fazendo uma releitura do caso Rhodia, que segue repercutindo porque não foi solucionado. Ainda há depósitos inadequados com poluentes, e a Cetesb não garante que tenha encontrado tudo", alerta o procurador Antonio Daloia, do MPF em Santos. Segundo ele, o Ministério da Saúde já foi acionado para investigar a extensão dos danos causados.
Segundo o assessor de imprensa da Rhodia, Roberto Custódio, na década de 80 a empresa providenciou análises químicas e começou o processo de remediação ambiental, com a criação de estações de tratamento de águas subterrâneas. Em outra iniciativa, "o Instituto de Botânica, em convênio com a Rhodia, conduz pesquisas no campo da biorremediação, ou seja, destruição dos resíduos organoclorados por fungos nativos da região. Essa poderá ser uma alternativa para acelerar a remediação dos solos", afirma Custódio.
No entanto, Élio Lopes, que também atuou como perito do MP e hoje é consultor do Ministério da Saúde, é descrente quanto à recuperação da área. "A descontaminação das águas subterrâneas não é completa. Além disso, quando os efluentes das estações de tratamento são lançados, comprometem a qualidade de rios que até então não apresentavam poluição", explica Lopes.
Essa estratégia, atacada por Lopes, será a mesma utilizada pela Shell no caso de Paulínia. Segundo Luciano Frucht, assessor de imprensa da empresa, na Vila Carioca "os trabalhos de remediação ambiental na base de distribuição e armazenamento de combustíveis da Shell continuam a ser desenvolvidos". De acordo com ele, "em dezembro de 2004, a empresa assinou com o Ministério Público do Trabalho um TAC com providências destinadas a garantir a tranqüilidade de seus trabalhadores e ex-empregados no que se refere a questões de saúde". Mesmo assim, ainda não houve nenhuma forma de compensação aos habitantes do entorno da unidade.
Segundo Carlos Bocuhy, que é também um dos seis representantes do Coletivo de Entidades Ambientalistas no Conselho Estadual do Meio Ambiente, os órgãos públicos não contam com um verdadeiro sistema de informações sobre resíduos tóxicos. Isso tem contribuído para a persistência das pendências ambientais que foram acumuladas pelas indústrias ao longo dos anos em que não havia leis ou tecnologia adequada à atividade produtiva sustentável.
A solução seria realizar um cadastro dos poluentes e georreferenciá-los, de forma a rastrear suas origens e destinos. Enquanto isso não ocorre, a Cetesb dependerá das próprias empresas para a identificação de seus passivos ambientais, através de estudos hidrogeológicos complexos e demorados.
Outro problema apontado é que a atividade da agência ambiental, que deveria ser de prevenção, tem sido desviada de seu propósito original. "Pela própria incapacidade, a Cetesb acaba agindo apenas como corpo de bombeiros", lamenta Bocuhy. "A inércia é muito grande, falta coragem. Eles apenas gerenciam a desgraça", completa Lopes.