Postado em 16/05/2004
Construção do rodoanel esbarra em sérias questões ambientais
JULIANA BORGES
Pedestres no anel: alto risco / Foto: Juliana Borges
Na sexta-feira, 10 de dezembro de 2004, às 19 horas, a Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET) registrou o maior congestionamento do ano na capital paulista. A marca chegou aos impressionantes 197 quilômetros, o equivalente à distância entre São Paulo e São Sebastião, ou 93 quilômetros a mais que a média diária para o horário.
Em 1990, as vias da metrópole apresentavam aproximadamente 50 quilômetros de lentidão todos os dias, o que deixava claro que a maior cidade brasileira já não tinha mais condições de absorver sua frota de veículos, que hoje é de 3,5 milhões de unidades.
Devido aos problemas que os extensos congestionamentos trazem não apenas para a população, mas também para o setor de transporte de cargas, o governo do estado decidiu investir num projeto para interligar as dez rodovias que passam pela Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e permitir que a metrópole seja transposta sem a necessidade de atravessá-la. Trata-se de uma via com acesso restrito (possível apenas pelas próprias rodovias e por algumas outras poucas entradas previstas), cujo traçado dista de 20 a 40 quilômetros do centro da cidade e que está dividida em quatro trechos: norte, sul, leste e oeste.
Segundo o projeto, a obra, batizada de Rodoanel Mário Covas, é um meio de diminuir os engarrafamentos na capital paulista e baratear os custos com transporte de cargas no estado, além de colaborar para a preservação ambiental e melhorar a qualidade de vida da população. Porém, para representantes do movimento ambientalista, especialistas em transportes, urbanistas, associações de bairro e moradores vizinhos ao trecho oeste, o único já inaugurado, as conseqüências para a RMSP são muito diferentes daquelas estampadas no material promocional do empreendimento.
Um olhar mais cuidadoso sobre a questão mostra que as desvantagens do anel viário são minimizadas pelo governo, assim como os impactos sociais e ambientais. "A postura do poder público não está sendo séria. Só posso acreditar que a motivação seja eleitoral", afirma João Sette Whitaker, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e da FAU Mackenzie.
Questão de prioridade
A idéia de uma via perimetral que circundasse o núcleo central da RMSP é antiga. Data da segunda década do século passado, uma época em que a falta de mobilidade ainda não afetava a região. Mas foi somente no final dos anos 80 que um anel viário semelhante ao atual foi projetado, durante o governo de Orestes Quércia: a Via Perimetral Metropolitana (VPM). O trajeto proposto cortaria o coração da serra da Cantareira e diversas áreas de mananciais da cidade. O estado tentou conseguir empréstimos em bancos internacionais e chegou a abrir licitações públicas para selecionar as empreiteiras que executariam a obra. No entanto, uma ampla campanha de mobilização da sociedade civil, encabeçada pelo movimento SOS Cantareira, mudou os planos governamentais. "Fizemos um abaixo-assinado com 150 mil adesões condenando o anel viário e pedindo a criação da reserva da biosfera do cinturão verde da cidade", relata Yuca Maekawa, uma das coordenadoras da campanha. O esforço deu resultado: a execução do empreendimento foi cancelada e, em 1994, o cinturão verde ganhou da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) o título de reserva da biosfera.
Da época em que a VPM foi idealizada para os dias de hoje, pouca coisa mudou na gestão do sistema viário metropolitano. São anos de investimentos minguados em transporte coletivo, em favor de projetos rodoviários e de políticas de incentivo do uso do carro, com o agravante de que a frota de veículos apresenta um ritmo de crescimento cada vez maior. Essa postura, na verdade, não se restringiu aos governantes de São Paulo, já que a maioria das metrópoles brasileiras também sofre com o problema.
"O automóvel é o meio de transporte mais insustentável que existe, o grande devorador de espaço e um ícone do desperdício na cidade", afirma Nazareno Stanislau Affonso, da Comissão de Circulação e Urbanismo da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), e um dos criadores da organização não-governamental (ONG) Rua Viva. "Hoje, não é possível pensar em solução para o trânsito na RMSP com tantos carros em circulação", completa ele. Ou seja, não adianta estimular o modelo de transporte que já vigora na cidade e tentar criar modos de minimizar suas conseqüências negativas.
Em operação desde outubro de 2002, o trecho oeste do rodoanel, que tem 32 quilômetros e interliga as rodovias Régis Bittencourt, Raposo Tavares, Castelo Branco, Bandeirantes e Anhangüera, custou R$ 1,1 bilhão (dois terços provenientes dos cofres do governo do estado e um terço, da União). No trecho sul, cujas obras devem ter início no segundo semestre deste ano, a previsão é de que serão consumidos outros R$ 2,6 bilhões. Isso significa que, quando ele também estiver em operação, terão sido gastos R$ 3,7 bilhões para implementar uma solução que privilegia o transporte individual, uma vez que no anel viário não é permitida a circulação de ônibus urbanos ou vans. Com esse dinheiro, seria possível, por exemplo, implantar cerca de 17 quilômetros de linhas de metrô (com toda a infra-estrutura e equipamentos instalados), o que representaria um acréscimo de 31% na rede metroviária de São Paulo.
"As políticas públicas para os transportes não devem se voltar para modalidades específicas em detrimento das demais, mas, sim, buscar a integração entre todas elas", defende o secretário adjunto dos Transportes do governo do estado e responsável pelo rodoanel, Paulo Tromboni. Segundo ele, a obra é, acima de tudo, uma solução destinada ao setor de cargas e, por isso, o orçamento é diferente daquele que é destinado ao transporte público, que inclui o metrô.
Independentemente de onde vêm os recursos, o fato é que o rodoanel acaba servindo também como via de circulação de carros dentro da RMSP, mesmo não sendo esse seu objetivo. Tanto é que, dos 250 mil veículos que todos os dias passam pelo trecho oeste, 78% são de passeio, de acordo com a Dersa, empresa de economia mista, subordinada à Secretaria dos Transportes do Estado de São Paulo, responsável pela obra. E, segundo Nazareno Affonso, da ANTP, a tendência é que o rodoanel se torne uma via engarrafada em médio e longo prazo, da mesma forma que aconteceu com as marginais, projetadas para ser vias expressas. "Numa malha viária saturada, sempre que se cria uma nova alternativa de acesso, a propensão é que ela também se congestione", diz Affonso. O professor Whitaker concorda: "Esse é um impacto impossível de ser controlado", garante.
Tromboni, no entanto, argumenta: "É incorreto fazer essa comparação com as marginais, que têm acessos a aproximadamente cada 100 metros. O trecho oeste do rodoanel tem um entroncamento a cada 4,5 quilômetros, por meio de um enorme trevo".
Indiscutivelmente, o setor mais beneficiado com a construção do rodoanel é o de transporte rodoviário de cargas. De acordo com a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) do rodoanel, apresentada pela Dersa (ver texto abaixo), 50% de tudo o que é transportado no estado passa pela RMSP. Em 2010, com os trechos oeste e sul em operação, a melhoria na fluidez do tráfego local significaria 20% a menos de caminhões nas ruas. No entanto, é importante frisar que essa diminuição praticamente não terá impactos positivos no trânsito da RMSP, já que os veículos de passagem representam apenas 6% do total do fluxo.
"Hoje, temos problemas sérios de perda de produtividade para atravessar São Paulo. Um caminhão que vem de Campinas, por exemplo, gasta uma hora e meia na estrada e, às vezes, leva duas ou três só para cruzar a cidade", conta Flávio Benatti, presidente da Federação das Empresas de Transporte de Cargas do Estado de São Paulo (Fetcesp). "Somos uma das partes interessadas no rodoanel e estamos satisfeitos com o fato de que o segundo trecho da obra finalmente vai sair", afirma.
Colapso ambiental
Em 13 anos (de 1986 a 1999), o município de São Paulo perdeu 30% do seu já escasso tecido verde, de acordo com levantamento da Secretaria do Meio Ambiente. "Numa cidade que hoje tem menos de 5% do seu capital natural, preservar não é mais apenas uma questão ambiental, mas de sobrevivência da população", alerta o engenheiro florestal Mauro Victor, co-autor de um estudo preparado para a Unesco sobre a importância da reserva da biosfera do cinturão verde para a capital paulista, publicado no livro Urban Biosphere and Society (Biosfera Urbana e Sociedade), da Academia de Ciências de Nova York. De acordo com o engenheiro, se o estado não mudar radicalmente sua forma de atuação, em 2015 a RMSP terá boa parte do seu cinturão verde destruída, a qualidade de vida deteriorada em 76 dos 96 bairros da capital e temperaturas superiores a 40ºC, por causa das ilhas de calor, entre outras conseqüências perigosas. "Não dá para falar em planejamento urbano sem ter em mente esse cenário. É dentro desse contexto que a construção do rodoanel é ameaçadora", diz Victor. A obra, de acordo com o estudo da Unesco, "oferece um novo vetor de penetração e destruição do cinturão verde, que trará prejuízos à cidade da ordem de US$ 2,7 bilhões".
No entanto, em todo o material de divulgação, a Dersa faz questão de exaltar o aspecto ecologicamente correto do rodoanel, especialmente no trecho sul, o próximo a ser construído. Ironicamente, essa parte da obra só não está em execução ainda porque a empresa vem enfrentando dificuldades para conseguir o licenciamento ambiental, já que o trajeto previsto corta parte dos mananciais das represas Billings e Guarapiranga. Juntas, as duas fornecem água a cerca de 4 milhões dos quase 18 milhões de habitantes da RMSP, e uma intervenção mal dimensionada nessas áreas pode causar um colapso no sistema de abastecimento.
Segundo a Dersa, porém, isso não irá acontecer. Em um folheto promocional, a empresa afirma que "realizará uma série de ações que visam preservar os mananciais e as matas já existentes e recuperar as áreas que estão sendo degradadas, que poderão ser mais bem controladas". Outro material impresso diz que o anel viário "funcionará como elemento de bloqueio da ocupação desordenada no entorno da RMSP".
"Isso é um absurdo. A expansão da mancha urbana sobre as áreas de mananciais será agravada com a construção do rodoanel, se sua implantação não for precedida de propostas para conter tal processo. Mas, hoje, não temos garantias do governo quanto a isso", contesta Marussia Whately, coordenadora do Programa de Mananciais do Instituto Socioambiental (ISA). No final de 2004, a entidade elaborou um dossiê sobre o empreendimento, em que manifesta sua opinião sobre o projeto. "Somos contrários à maneira como a Dersa conduz as obras. Primeiro, porque a empresa não abre espaço para a discussão pública. Segundo, porque as bases de dados e os cálculos usados para comprovar seus benefícios são muito parciais e, por isso, a análise crítica fica comprometida", afirma Marussia.
De acordo com os estudos oficiais, a região sul continuará a crescer de maneira desordenada nos próximos anos e, em 2020, terá um acréscimo populacional de 2,3 milhões de pessoas. E, como mostra a AAE, esse número independe da construção do rodoanel: o acréscimo populacional na área com o anel viário em operação seria 1% menor, daqui a quinze anos, do que se ele não fosse construído. Para o professor Whitaker, esse dado não condiz com a realidade. "Qualquer rodovia induz ao adensamento populacional, isso é consenso", afirma. O secretário adjunto dos Transportes, por sua vez, diz que há vários fatores que garantem que o anel viário não trará adensamento populacional no seu entorno. "O rodoanel é uma via perimetral, que não dá acesso aos bairros lindeiros e, por isso, não facilita o acesso das populações ao centro da cidade (onde estão os empregos), nem permite a circulação de ônibus urbanos, utilizados pela maioria dos habitantes de assentamentos irregulares."
Carlos Bocuhy, um dos representantes da bancada ambientalista no Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), órgão vinculado à Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (SMA) e composto por membros do governo e da sociedade civil, é outro que também vê a obra como uma ameaça aos mananciais da região sul. "Infelizmente, o rodoanel é refém da ausência de políticas públicas que por anos possibilitou a degradação de nossas nascentes e cursos de água. Agora, não dá para pensar nele sem levar em conta os impactos nessa região", diz. O ecologista, que preside o Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), alerta que a represa Billings, por causa do assoreamento e da destruição de seus mananciais, já perdeu 22% do volume de água, o que significa prejuízos anuais da ordem de US$ 368 milhões. E, se nada for feito, Bocuhy acredita que ela se transformará num charco em 60 anos. "O rodoanel pode acirrar esse processo de destruição", acrescenta.
Os mananciais da região sul não serão os únicos afetados pelo anel viário. "O sistema Cantareira, que abastece metade da população da RMSP, também ficaria ameaçado pelo traçado do trecho norte", alerta o arquiteto e urbanista Ary Albano, membro dos movimentos SOS Cantareira e Defenda São Paulo. Segundo ele, se essa reserva entrar em colapso, o fornecimento de água para a capital terá de ser obtido no vale do Ribeira, na região sul do estado. A construção da infra-estrutura necessária para isso irá custar US$ 10 bilhões aos cofres públicos. "Mais uma vez, quem paga a conta somos todos nós", diz Albano.
No final de 2002, o Instituto Florestal, órgão vinculado à SMA, publicou um parecer sobre o rodoanel. Entre outras críticas que são feitas ao projeto estão a falta de consistência nos estudos de impacto ambiental, a ineficácia da obra para resolver os problemas propostos e o risco de um colapso ambiental na reserva da biosfera do cinturão verde. "O estado de São Paulo e o Brasil assumiram (...) o solene compromisso de que tais áreas seriam respeitadas." O texto salienta que este não seria o momento oportuno para faltar a essa obrigação, "mesmo porque isso poderá ensejar a revisão de acordos e empréstimos externos". Depois de estudar o problema, técnicos do Instituto Florestal chegaram à conclusão de que, "de forma geral, o comitê não possui, até a presente data, elementos de convicção para endossar a proposta do rodoanel".
Pendenga jurídica
Depois de inaugurar a parte oeste, em 2002, a Dersa apresentou os estudos de impacto ambiental dos outros três trechos, para poder dar prosseguimento à obra. O documento, porém, foi bastante criticado pela sociedade civil, especialmente pelos movimentos ligados à preservação da região da serra da Cantareira, no norte da capital paulista. "Comparecemos às audiências públicas de todos os trechos e não foi difícil mostrar que os relatórios estavam incompletos", diz Yuca, do SOS Cantareira. Devido aos protestos da sociedade civil, o Ministério Público Federal entrou com uma ação judicial que paralisou o licenciamento e determinou a participação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no processo. "Como se trata de uma obra que terá impactos nacionais (por interferir na Mata Atlântica), entendemos que a entidade deva participar", informa a procuradora Ana Cristina Bandeira Lins. Na prática, essa decisão teve o seguinte resultado: para sair do papel, os outros trechos do rodoanel precisarão de dupla autorização ambiental: uma do Ibama e outra da SMA.
No segundo semestre de 2003, a Dersa apresentou um Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) exclusivo do eixo sul. Como, porém, o documento não foi considerado suficiente pelo Consema para a concessão da licença ambiental, o governo do estado divulgou no início de 2004 a AAE do Projeto Rodoanel.
Só que, como a Dersa estava desrespeitando a decisão judicial de submeter o processo ao Ibama, o Ministério Público Federal interveio novamente. No final de fevereiro deste ano, depois de negociar com as partes envolvidas, o órgão federal homologou um acordo judicial inédito: "A SMA cuidará de todo o processo de licenciamento ambiental, mas o Ibama dará seu parecer", afirma a procuradora Ana Bandeira Lins. Segundo ela, com isso o governo terá de apresentar outro EIA/Rima e realizar novas audiências públicas, pois as que já haviam sido feitas foram canceladas.
O acordo estabelecido pelo Ministério Público incluiu também outra condicionante: a Dersa só poderá dar seqüência às obras do rodoanel quando os passivos ambientais do trecho oeste estiverem sanados, o que, após dois anos e meio, ainda não aconteceu. "Se eles não resolveram o problema da parte que já existe, que garantias teremos de que com o eixo sul será diferente?", indaga Marussia.
"O anel viário trouxe muitos problemas ambientais para a região, como o assoreamento do córrego Carapicuíba e o completo desaparecimento de um lago próximo à Raposo Tavares", denuncia César Pegoraro, educador ambiental do projeto Rede das Águas, da SOS Mata Atlântica, ONG que acompanha de perto as conseqüências da implantação do rodoanel.
Periodicamente, o Departamento de Avaliação de Impacto Ambiental (Daia) da SMA realiza vistorias no trecho oeste, a fim de verificar se os compromissos assumidos pela Dersa no EIA/Rima estão sendo cumpridos. Em 26 de março do ano passado, o órgão emitiu um parecer técnico afirmando que a empresa "não atendeu a diversas exigências ambientais para renovação da Licença Ambiental de Operação". Entre elas estavam o programa de monitoramento de ruídos lindeiros, o reassentamento habitacional, a recuperação de áreas de apoio utilizadas na obra e a canalização do córrego Carapicuíba. Em decorrência dessas lacunas, a Dersa só conseguiu a renovação da Licença Ambiental de Operação com a condição de dar solução a uma lista de 12 itens ainda pendentes.
Mau exemplo
"Minha vida virou um inferno." Essa afirmação, de uma moradora que tem sua casa a 100 metros do rodoanel, caberia na boca de muitas outras pessoas que, assim como ela, passaram a ter uma estrada no quintal. Há dez anos, Aparecida Napolitano mora no residencial Tamboré 1, um condomínio de classe média alta na região de Alphaville. Há dois e meio, ela e sua família não dormem direito. "De dia ou à noite, o barulho aqui é ininterrupto, não há quem agüente. Por causa dele, já tive uma crise de estresse, e meus filhos passaram a ir mal na escola. Tive de colocá-los num colégio de período integral", queixa-se. A moradora, que é a representante da Sociedade Fazenda Tamboré para os assuntos relacionados ao rodoanel, conta que a associação de moradores entrou com uma ação civil pública, no início de 2003, solicitando à Dersa a construção de barreiras acústicas, assim como estava previsto no EIA/Rima do trecho. Mas, até agora, nada foi feito. "Eu morro, mas não abro mão dessa luta", afirma Aparecida, que afirma já ter sido ameaçada de morte numa das audiências públicas do trecho sul e, por isso, preferiu não ser fotografada.
Em julho de 2004, uma empresa contratada pela Dersa realizou a medição de ruídos nas áreas vizinhas ao anel viário. O laudo de avaliação confirma as declarações de Aparecida Napolitano: o barulho está muito acima da média permitida. O estudo mostra que, bem em frente à casa da moradora, o nível chega a 86 decibéis, 72% a mais do que o volume máximo permitido (50 decibéis). "Isso porque a medição foi feita em julho, período de férias escolares, às 11 horas da manhã", diz. A pressão para que a Dersa cumpra seus compromissos aumentou no dia 19 de fevereiro, quando a 1ª Vara Cível de Barueri publicou uma sentença que obriga a empresa a construir muros anti-ruído perto da casa da moradora e em outros locais ao longo da rodovia. "Mas só acredito vendo", diz ela.
Além de servir de referência para avaliar como os impactos ambientais foram tratados pela Dersa, o trecho oeste pode ser usado também para entender uma outra questão importante: o adensamento populacional. Hoje, é possível notar que, aos poucos, as margens da rodovia estão sendo usadas pelos moradores locais. Servem de calçada para pedestres e de pista para ciclistas. Várias pequenas entradas clandestinas foram abertas, uma das quais foi feita com as placas de concreto dos muros de contenção instalados pelo governo. Hoje, esses caminhos são usados apenas por motos, pedestres e bicicletas. Mas quem garante que, no país da informalidade, não se tornarão um acesso estabelecido, mesmo que clandestino?
Vale a pena correr o risco?
A falta de mecanismos para garantir que o Projeto Rodoanel não se descaracterize ao longo dos anos e, conseqüentemente, estimule o adensamento populacional no seu entorno é uma das principais preocupações daqueles que criticam o empreendimento. Segundo o secretário adjunto dos Transportes, há várias garantias de que isso não acontecerá. "Para estabelecer um novo acesso ao anel viário, é preciso conseguir uma licença ambiental para modificar o EIA/Rima, que é fortemente fiscalizado pela Justiça", afirma Paulo Tromboni. Porém, o educador da SOS Mata Atlântica César Pegoraro levanta uma questão importante: "Como é possível afirmar que o rodoanel não induz ao adensamento populacional, se quem cuida das leis de uso e ocupação do solo são as prefeituras, e elas não estão envolvidas no processo?"
O problema que a obra pretende atacar é legítimo, isso é inquestionável. A circulação de cargas dentro da malha urbana da RMSP representa, de fato, um ônus para toda a sociedade. Só que isso não encerra a questão. Em uma metrópole ambientalmente comprometida como São Paulo e tão carente de investimentos sociais, será que vale a pena gastar bilhões de reais em um projeto grandioso, mas que beneficia poucas pessoas, e ainda por cima coloca em risco o abastecimento de água da população? E mais: com esse dinheiro, não seria possível atacar a questão da mobilidade no espaço urbano de uma maneira mais democrática? Para o professor João Whitaker, a concepção e a realização do anel viário em São Paulo lembram outra famosa obra brasileira, inaugurada na década de 70. "O rodoanel é a Transamazônica paulista."
Estudo incompleto
No primeiro semestre de 2004, a Dersa apresentou ao Consema um documento denominado Avaliação Ambiental Estratégica (AAE). Trata-se de um tipo de estudo que vem sendo adotado por diversos países e organismos internacionais para analisar a viabilidade de megaempreendimentos. "Os EIA/Rimas, que se limitam a abordar os impactos ambientais de uma determinada obra, mostraram-se insuficientes para avaliar projetos de grande abrangência", explica Marussia Whately, do Instituto Socioambiental. E como a AAE se propõe a fazer uma análise mais completa, que inclui a avaliação dos impactos cumulativos, o passivo ambiental preexistente e o custo/benefício frente a outras alternativas, o instrumento passou a ganhar espaço no cenário mundial. Por enquanto, sua adoção ainda não está regulamentada no Brasil, e é uma ferramenta que poucos conhecem.
Novidade ou não, o fato é que o documento apresentado pela Dersa, apesar de ter sido chamado de AAE, não se encaixa na definição do termo. "Um estudo desse tipo precisa ter alternativas ao empreendimento que é objeto de estudo, e isso não foi feito", justifica a procuradora Ana Cristina Bandeira Lins. O que a Dersa se limitou a fazer foi comparar como será a situação da RMSP com e sem a construção do rodoanel, usando, para isso, projeções e fórmulas matemáticas. Para Marussia Whately, a Dersa usa a AAE como ferramenta para justificar a obra. "Há uma série de cenários que não estão contemplados, apenas aqueles que são interessantes à empresa."
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