Postado em 06/09/2004
País ganha e perde com o potencial bioquímico das cobras peçonhentas
NILZA BELLINI
Há mais de um século, o médico sanitarista Vital Brazil Mineiro da Campanha, diretor do Instituto Serumtherápico, hoje Butantan, interessado em comprovar que os venenos das várias espécies de cobras brasileiras eram diferentes entre si, decidiu pesquisar detalhadamente a peçonha da Crotalus, a temida cascavel. O cientista havia notado que as vítimas dessa serpente apresentavam sintomas de analgesia no entorno da picada.
Seus estudos não foram concluídos naquela época, mas a idéia de que o veneno de cobra poderia servir como remédio continuou a estimular a curiosidade dos cientistas. Muitos anos se passaram até que, em 1948, procurando explicar como o veneno da jararaca mata ou paralisa suas vítimas, o pesquisador Gastão Rosenfeld levou para o laboratório do químico e farmacologista Maurício Rocha e Silva, no Instituto Biológico, em São Paulo, uma amostra da peçonha da Bothrops jararaca com o objetivo de estudar seus efeitos em cães. Após injetarem o veneno num animal, os pesquisadores puderam observar que sua reação com o plasma sangüíneo liberava uma substância que possuía intensa ação hipotensora, denominada bradicinina.
Entre os orientandos de Maurício Rocha e Silva na Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, já nos anos 1960, um jovem cientista chamado Sérgio Henrique Ferreira constatou que a hipotensão provocada pela liberação da bradicinina no sangue da vítima é potencializada pela ação de pequenas toxinas encontradas em grandes quantidades no veneno da jararaca. Essas pequenas toxinas, denominadas peptídeos potenciadores da bradicinina (BPPs), foram isoladas por Ferreira e colaboradores. Quando foi para a Inglaterra fazer seu pós-doutorado, no Imperial College de Londres, Ferreira levou o resultado de suas pesquisas, o que permitiu que um grupo de cientistas liderado pelo inglês John Vane (ganhador do Prêmio Nobel de Medicina) chegasse a um protótipo molecular dos BPPs.
Certos do potencial da pesquisa, Ferreira e Vane firmaram parceria com o laboratório americano Bristol-Myers Squibb, cedendo o protótipo em troca de financiamento para outras pesquisas. Foi assim que o laboratório registrou a patente do princípio ativo Captopril, medicamento utilizado por milhões de hipertensos. O mercado dessa substância gera um faturamento anual estimado em US$ 5 bilhões.
Essa história é a mais emblemática do potencial de drogas derivadas da peçonha de répteis, anfíbios e aracnídeos do Brasil. A demanda provocada pela indústria farmacêutica internacional estimulou o surgimento de uma atividade no país até esse período pouco explorada: a criação de cobras para exportação de venenos. Já não há mais dúvidas de que o veneno das cobras brasileiras é bioquimicamente riquíssimo, com componentes que apresentam efeitos anticoagulantes, miotóxicos (com ação sobre os músculos) ou ainda neurotóxicos (sobre as células nervosas), sem mencionar hipóteses ainda não comprovadas. A necessidade de laboratórios farmacêuticos do mundo inteiro de obter veneno multiplicou a estruturação de serpentários. O grama de veneno de cobras brasileiras, cristalizado e liofilizado, chegou a atingir no mercado exportador a cotação de US$ 3 mil. Atualmente, porém, estima-se que o valor gire em torno de US$ 100, embora os criadores, de maneira geral, se neguem a falar sobre o assunto.
A queda do preço foi tão grande, e tão brusca, que pequenos e médios serpentários particulares buscam agora saídas para se livrar do plantel, que em alguns casos chega a mais de 5 mil animais. Apenas o criadouro Pentapharm, o maior do Brasil, segundo o Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), resiste à crise. Localizado em Uberlândia (MG), o estabelecimento evita dar declarações à imprensa. Entre as alternativas para fugir dos prejuízos, outros criadores analisam a possibilidade da venda do couro, da carne ou de cobras vivas como bichos de estimação (pets), no caso de espécies não-peçonhentas, para o exterior.
O biólogo Isaías Reis, analista ambiental do Centro de Conservação e Manejo de Répteis e Anfíbios (RAN), órgão do Ibama, situado em Goiânia, não faz especulações sobre o valor do grama do veneno. "Isso varia muito, em função da espécie de serpente, e divulgar valores só serve para estimular a cobiça de pessoas mal-intencionadas, criando clima propício para o tráfico", diz. Mesmo sem discorrer sobre preços, Isaías destaca três fatores que limitam a atividade: a localização de possíveis compradores do veneno; os custos de implantação do serpentário e a dificuldade de formar o plantel, uma vez que o Ibama não autoriza - para estabelecimentos comerciais - a captura de cobras na natureza. A esses entraves ele acrescenta as exigências do órgão para a regularização do negócio, mas admite que há pequenos e médios criadouros que funcionam de forma clandestina, em número maior que os regulares. "Esse indício está baseado nas características dos serpentários regularizados: de início, boa parte deles já operava sem licença", diz.
Os proprietários de criadouros localizados em São Paulo, mesmo aqueles que mantêm sites na Internet para divulgar suas atividades, também se negam a discutir preços do veneno de cobra com a imprensa, ou a se identificar, embora permitam visitas a seus estabelecimentos. Um deles, construído no meio de um canavial, em Taquaral, na região de Araraquara, destaca-se por ser fiel depositário de 50 serpentes recolhidas pelo Ibama de um outro serpentário, este totalmente irregular.
A visita ao sítio de Taquaral não é agradável. Já no estacionamento, localizado a 30 metros de distância de uma pequena construção de cinco cômodos, é possível sentir um cheiro nauseante, proveniente do conjunto de 20 baias onde o plantel é mantido. O odor é originado das fezes e da urina das serpentes.
As baias são feitas de alvenaria, com uma parte sombreada e outra ensolarada. Algumas são gramadas, outras apresentam mato baixo. Todas incluem uma área cimentada e um pequeno tanque de água. Troncos ou telhas emborcadas ficam espalhados no solo e servem de refúgio para as cobras. Um dos cômodos da construção - onde também funcionam o escritório da empresa e o setor de extração de veneno - é forrado de prateleiras em que são guardadas caixas de plástico, revestidas de folhas de jornal, que abrigam filhotes das serpentes. Como sua finalidade é comercial (está regularizado no Ibama), o serpentário de Taquaral também tem uma liofilizadora (equipamento que transforma o veneno em pó). Mas, com a queda do preço do veneno, o proprietário tenta agora obter licença para vender a carne e o couro das cobras.
Quem já obteve autorização para diversificar suas atividades - no caso, exportar cobras vivas, não venenosas - foi o proprietário do Sítio Rodeio, onde funciona um dos maiores serpentários do país, instalado há cerca de cinco anos, no município de Candeias (MG). Veterinário especializado em animais silvestres, professor da disciplina de herpetologia veterinária (ramo da biologia que estuda répteis e anfíbios), da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Belo Horizonte, Carlos Eduardo Silveira Goulart é responsável técnico pela elaboração do projeto e faz o acompanhamento de cerca de 1,5 mil animais, na maioria viperídeas dos gêneros Bothrops e Crotalus. O gênero Bothrops, composto por mais de 30 variedades, com cores e desenhos diferentes pelo corpo, é o das jararacas, urutus, cotiaras, jararacuçus e jararacas-pintadas. Crotalus é o grupo das cascavéis.
Goulart conta que o projeto do criadouro é constituído por dois sistemas complementares: baias e intensivo (caixas individuais). Cada um deles é utilizado segundo a idade da cobra. De acordo com o veterinário, o Sítio Rodeio nasceu com o objetivo de comercializar venenos. Hoje, com esse mercado bastante prejudicado, o serpentário está ingressando no segmento de exportação da jibóia e da salamanta vivas para os Estados Unidos. A salamanta (Epicrates cenchria crassus) é conhecida em algumas regiões como jibóia-vermelha.
A instalação de um serpentário deve obedecer a uma série de especificações e, segundo Goulart, a principal dificuldade para sua manutenção está no manejo do biotério de camundongos, destinados à alimentação das cobras. Ali, a rotina diária é bastante trabalhosa: é preciso dar comida aos animais, separar os camundongos por idade, trocar a água duas vezes ao dia e preparar e limpar as camas.
As serpentes, por sua vez, dependendo da espécie ou da idade, são manejadas a cada quinzena ou a cada 28 dias, período mais adequado para a "ordenha" (extração do veneno). Goulart diz que os animais se habituam à presença humana e, se não forem provocados, são tolerantes. Mesmo assim, quem faz a limpeza das baias deve sempre usar botas de borracha de cano alto, calças jeans grossas e luvas.
Como as cobras peçonhentas são animais de hábitos noturnos ou crepusculares, normalmente durante o dia costumam se recolher para os abrigos (estruturas de cimento aquecidas) instalados no interior das baias e que, em geral, têm dimensões médias de 5 x 2,5 metros, espaço capaz de abrigar cerca de 15 serpentes. Entre os répteis, a época de procriação não é regular e depende da alimentação e das condições ambientais. A maturidade sexual se dá entre 2,5 e 3,5 anos. E o período gestacional pode ir de 6 a 11 meses, variando de acordo com a temperatura ambiente.
Uma das dificuldades para a criação, explica o veterinário, é manter plantéis saudáveis. Já existe consenso de que a biossegurança depende das condições do meio ambiente. Se o planejamento do serpentário for bem feito, diz ele, houver uma rotina de aplicação de vermífugos e os animais estiverem bem-nutridos e confortáveis, a incidência de problemas será baixa. As doenças que podem atingir as cobras são as parasitárias (carrapatos e vermes), as bacterianas e as viroses, que devem ser evitadas a todo custo, pois podem dizimar o plantel. O paramixovírus ofídico (OPMV), por exemplo, ataca sobretudo o sistema respiratório das cascavéis, e normalmente é fatal.
Goulart tem uma opinião política acerca da queda do preço de veneno de cobra para exportação. Ele considera que a Lei de Patentes Biológicas, por gerar altos impostos, favoreceu o desenvolvimento de sintéticos para a produção de medicamentos, antes obtidos a partir do veneno de cobras. A explicação de Isaías Reis, do Ibama, é outra. Para ele, as grandes indústrias farmacêuticas já detêm patentes de remédios produzidos com componentes oriundos do veneno de serpentes brasileiras, que, contrabandeadas, hoje são criadas, sem dificuldades, em outros países. De qualquer maneira, as pesquisas para a obtenção de medicamentos feitos com base no veneno de cobras continuam intensas, inclusive no Brasil.
Pesquisando os venenos
Os serpentários são enquadrados, perante o Ibama, nas modalidades comercial, científica e conservacionista. Os mais conhecidos da área científica, em termos de produção de soro, são os institutos Butantan, em São Paulo, Vital Brazil, no Rio de Janeiro, e Ezequiel Dias, em Minas Gerais.
Na Fundação Ezequiel Dias (Funed), a pesquisadora Thaís Viana estuda uma vacina que estimula a produção de anticorpos e imuniza o organismo contra o veneno. Seu trabalho, direcionado para o uso veterinário, em que a demanda é maior, de início estava focado exclusivamente na cascavel. Estima-se que cerca de 1 milhão de animais domésticos (bovinos, eqüinos e caprinos) morram todo ano no país por causa de picadas de cobras venenosas, uma vez que o soro não é utilizado devido ao alto custo. Agora, Thaís pretende abranger outras variedades de serpentes brasileiras, melhorar o método e baratear a produção.
Em São Paulo, o Centro de Toxinologia Aplicada (CAT) do Instituto Butantan já depositou no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) a patente do princípio ativo de um protótipo molecular que será utilizado na produção de um fármaco com propriedades anti-hipertensivas. Batizado com o nome genérico de Evasin (endogenous vasopeptidase inhibitor), o novo medicamento tem potencial para concorrer com o Captopril. A patente também está depositada nos Estados Unidos, no Japão e na União Européia. A expectativa é que o Evasin esteja disponível no mercado nos próximos anos. "Agora, é partir para os testes pré-clínicos e clínicos", anuncia Antonio Martins de Camargo, diretor do CAT.
Uma grande vantagem do Evasin sobre o Captopril (que é sintético) é que ele é um produto natural e tem efeito prolongado. Seu desenvolvimento é resultado da retomada por Camargo, também ex-aluno de Maurício Rocha e Silva em Ribeirão Preto, da tradição de pesquisas do Butantan para a produção de fármacos derivados de veneno de cobra, além do soro antiofídico.
Com o episódio do Captopril, os cientistas brasileiros ficaram atentos para a importância de registrar patentes, e avançam em suas pesquisas. Além do Evasin, o instituto já tem três patentes depositadas e outra, acerca de toxinas que atuam no sistema cardiovascular, em particular anti-hipertensivas, está sendo preparada. Também consta dos planos a obtenção de patentes de toxinas que interferem na percepção dolorosa (analgésicas) e no crescimento de tumores e metástases. Há indícios de que o veneno de cobra pode controlar alguns tipos de câncer.
A questão da venda do veneno de cobras brasileiras para o exterior é considerada um absurdo por Camargo. "É inaceitável exportar uma substância tão valiosa a preço de commodity", diz. De qualquer forma, admite ele, já contrabandearam do país tudo o que é essencial para o desenvolvimento de pesquisas medicamentosas. A biologia molecular pode reproduzir o veneno de cobra ou qualquer outra substância por meio de métodos recombinantes. Com apenas uma glândula de cobra é possível ter acesso ao banco de DNA da peçonha. Isso pode ser realizado em qualquer laboratório do mundo, sem restrições. Para exemplificar o que diz, o cientista conta uma história que viveu. Há cerca de três anos, com dificuldades para conseguir uma glândula de uma serpente brasileira, comentou o fato com cientistas suíços que o visitavam no Butantan. Um deles não vacilou em oferecer, como cortesia, a glândula da serpente que Camargo desejava para montar seu banco de DNA.
"Esse tipo de situação mostra o quanto é equivocada a política do Ibama", diz, acrescentando: "O que coloca realmente valor agregado no produto natural não é a diversidade biológica das moléculas, mas o cientista que olha para elas e as abordagens segmentais que faz. Por isso, o investimento maior do governo tem de ser feito na área científica".
Remédio nas plantas
Casos de envenenamento de humanos por picadas de cobras peçonhentas são numerosos no Brasil. Segundo o Instituto Butantan, há cerca de 20 mil vítimas por ano, com cem mortes. Desde o início do século 20, o tratamento para a picada é feito com o soro antiofídico, um preparado de células e anticorpos extraídos do sangue de cavalos que recebem doses moderadas de veneno. Como os venenos são compostos de proteínas, enzimas e peptídeos, a produção do soro é complexa. E sua utilização, muitas vezes, pode causar alergia. As tentativas de compreender o mecanismo de ação dessas toxinas e a busca de formas alternativas para o tratamento são alvo freqüente de diversos pesquisadores. E é no conhecimento popular que eles têm ido procurar subsídios para seus estudos.
Em Ribeirão Preto, Andreimar Soares, professor doutor do Departamento de Análises Clínicas, Toxicológicas e Bromatológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, desenvolve pesquisas na área de toxinas e antitoxinas desde 1992, com plantas utilizadas popularmente contra picadas de serpente. Em 2004, o trabalho "Plantas Medicinais Antiofídicas: As Drogas do Futuro como Tratamento Alternativo e Complementar à Soroterapia Tradicional", sob a coordenação de Andreimar, recebeu o Prêmio José Pedro de Araújo, destinado ao incentivo de pesquisas que envolvam a flora brasileira.
O cientista e seus orientandos pretenderam, com o trabalho, validar as propriedades antiofídicas de dez plantas nativas já conhecidas por diferentes aplicações medicinais, como carqueja, guaçatonga, maria-preta, purga-de-lagarto, jalapa, entre outras.
Por meio do isolamento e da caracterização de substâncias extraídas desses vegetais, os cientistas fizeram ensaios in vivo e in vitro, depois da incubação de venenos de oito serpentes dos gêneros Bothrops e Crotalus (jararacas e cascavéis). E conseguiram comprovar o alto potencial antiofídico tanto dos extratos de diferentes partes de plantas como de seus componentes isolados, com a neutralização dos efeitos tóxicos provocados pelo veneno de serpentes. O trabalho deverá servir, agora, para a produção de novos medicamentos contra picadas de cobras.