Postado em 01/10/1998
Se em épocas culturalmente históricas, como o período modernista ou os anos tropicalistas, ficou estabelecido que o Brasil seria o solo fértil para a semente híbrida da antropofagia (movimento em que interferências culturais externas interagem com nossas tradições resultando em algo novo e ousado), São Paulo hoje está consolidada como o espaço em que todas as culturas, daqui e de fora, florescem em novas maneiras de pensar os movimentos culturais. Como costuma-se dizer, o Brasil inteiro transita sob a garoa paulistana. Pretensa Nova York, musa inspiradora de poetas como Carlos Drummond de Andrade e músicos como Caetano Veloso. Túmulo do samba na zombaria dos cariocas, mas berço de sambistas como Adoniran Barbosa. Cidade devoradora ou, como preferem os artistas, antropofágica.
São Paulo das artes
Antropofagia também é o tema de um dos maiores acontecimentos das artes plásticas de São Paulo, a Bienal de Artes. Em sua 24ª edição, a Mostra, que começa em outubro, se propõe a olhar para trás e analisar os resultados de tanta mistura de tendências ao mesmo tempo que lança um olhar para o futuro. Sob a curadoria de Paulo Henkenhorf, a Bienal deste ano não virá sozinha. Eventos paralelos ajudarão a envolver a cidade nos braços da arte, convidando instituições culturais a realizar exposições complementares, palestras e espetáculos que, de alguma forma, cruzam o mesmo ponto, o tema da exposição. Entre essas instituições, estão o Instituto Cultural Itaú, o Paço das Artes e o Sesc, que apresenta uma dose tripla de eventos: a série de palestras Pensando a Bienal, o Sesc Pinheiros apresenta o projeto A Compreensão e o Prazer da Arte, que fará uma análise crítica da Bienal de São Paulo, no Sesc Vila Mariana, e o Fantasia Brasileira: O Balé do IV Centenário, marcando o início das atividades do Sesc Belenzinho. Os eventos do Sesc paralelos à Bienal começam na primeira semana de outubro e estendem-se até dezembro.
A unidade de Pinheiros usará o clima intimista que suas instalações oferecem para promover um ciclo de palestras com o tema da Mostra, antropofagia/densidade, como fio condutor. Bete Marinho, animadora cultural da unidade, explica que o objetivo das palestras é facilitar o entendimento da Bienal, sempre polêmica e ousada em suas obras e instalações. "A intenção é que haja uma interação entre o palestrante e o público", adianta. Em edições passadas, a unidade reuniu grupos de visita à exposição. Continua levando grupos ao espaço da Mostra, mas o público pode contar com uma bagagem prévia de conhecimento que facilita sua incursão no mundo das artes. "Com o ciclo, o Sesc Pinheiros pretende facilitar o processo de compreensão da Mostra, pressupondo a experiência de estranhamento causada pelas obras, instalações e outros canibalismos expostos", completa Bete Marinho.
Para isso, a unidade convidou renomadas figuras do cenário cultural e intelecutal, como Wally Salomão, escritor, poeta e compositor; Rogério Duarte, professor doutor da Universidade Nacional de Brasília e designer gráfico; Antonio Medina, professor de língua e literatura grega na USP; a historiadora Magda Celli e Luis Tenório, pisquiatra e piscanalista.
Entre os assuntos das palestras estão a questão da antropofagia, sua relação com a interpretação psicanalítica, o movimento tropicalista e sua conexão com as antropofagias oswaldiana e pós-moderna. Já a historiadora Magda Celli fará uma análise da vida e obra do mestre Van Gogh, cujas obras estarão na Bienal.
Preparando para a Bienal
Também em torno da grande Mostra, nem por isso se prendendo a ela, a unidade Sesc Vila Mariana oferece mais uma alternativa de entendimento e orientação sobre o universo artístico. O encontro Análise Crítica da Bienal de São Paulo acontece dentro da série A Compreensão e o Prazer da Arte, realizado pelo Sesc há um ano sob a coordenação de Ana Mae Barbosa, com assessoria de Lilian Amaral, ambas arte-educadoras. O próximo módulo de palestras discute toda a estrutura da Bienal e o modo como agita o cenário das artes plásticas na cidade. Muito mais que uma mera preparação para a exposição, as atividades têm o objetivo de melhorar a qualidade de percepção estética do público. "A Bienal é, com certeza, um foco aglutinador, mas também irradiador. Nós vamos muito além: discutiremos como atualmente contaminamos as outras culturas, assim como elas nos influenciaram no passado e continuam até hoje", esclarece Lilian Amaral. Na grade de palestrantes, estão nomes como Fernando Coquiarale, diretor dos Instituto Nacional de Artes Plásticas da Funarte, que vem para compartilhar toda sua noção de território nacional nas artes; Tadeu Chiarelli, professor de história da arte na USP e curador chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), está muito ligado à situação dos museus na cidade e tem uma vivência bastante intensa com artistas de todo o Brasil, e, por fim, Marcelo Coelho, articulista da Folha de S. Paulo, irá falar sobre a postura da imprensa como meio de promoção de reflexão na área cultural.
O público esperado para essas palestras é, como de costume, o mais variado possível. Professores, interessados em geral, monitores da própria Bienal, jornalistas. "Nós nos preocupamos em fornecer mais um referencial para os interessados em arte, fora o que a imprensa já faz, que, como tem que ser renovada diariamente, não tem se prestado a esse papel", analisa Lilian.
44 Anos Depois
Dos eventos paralelos e oficiais que dividirão o "palco" com a Bienal de São Paulo, o Fantasia Brasileira: O Balé do IV Centenário parece ser o que vai causar mais furor e por vários motivos. Com figurinos e cenografia de, entre outros, Lasar Segall e Di Cavalcanti, músicas de Mozart e Villa-Lobos e coreografias de Aurélio Milloss, diretor artístico austro-húngaro radicado na Itália, o balé foi importante na celebração do aniversário de 400 anos da cidade de São Paulo, e, 44 anos depois, a relevância ainda se mostra mais viva para a história de São Paulo.
A Bienal trouxe à tona o canibalismo de diversos movimentos culturais. O balé entra com o conteúdo histórico da cidade e o Sesc une todos esses elementos no melhor estilo antropofágico. "A exposição partiu do 4o Centenário e contextualiza todos os acontecimentos dessa época", explica Sonia Hamburguer, assessora da curadoria. "Mostra São Paulo dos anos de 1950, todo o ufanismo, a cidade que não pode parar de crescer, a cidade que mais cresce no mundo, a industrialização etc. O Balé tem um histórico bastante aproximado dessa idéia da antropofagia e da São Paulo da época".
A exposição é montada em cima de mostras de imagens fotográficas e cinematográficas da cidade nos anos de 1950 e documentos das comemorações dos 400 anos, com uma amostra de tudo o que foi produzido para as celebrações da época. Embora os painéis do cenário das apresentações tenham sido perdidos ao longo dos anos, serão expostos 42 dos 80 figurinos originais encontrados no Museu do Teatro Municipal de São Paulo. Os músicos do Balé também têm lugar garantido no evento, assim como as músicas criadas para as coreografias. Os documentos relacionados com o Balé, recolhidos de acervos institucionais, como a Fundação Bienal, do Arquivo Multimeios do Centro Cultural São Paulo, e de acervos particulares também fazem parte da Mostra. Além deles, também será exposto o programa de apresentações da época e uma vasta documentação dos bailarinos. "Foi uma experiência muito forte para eles, muitos deles se formaram, inclusive, como é o caso dos grandes nomes da dança atual Marika Gidali e Ismael Guiser". O Fantasia Brasileira reserva uma parte, chamada de A Memória, às pessoas que participaram do evento na época e as que o assistiram". Esse material, junto com a memória da cidade, estará registrado em vídeo, especialmente produzido para o evento por Mônica Teixeira e Antonio Agusto Calil.
Todo esse trabalho foi fruto de meses de pesquisa realizada pela equipe de Glaucia Amaral e que teve como ponto de partida, além do Balé, a construção do Parque Ibirapuera (cujo projeto é do escritório de Oscar Niemeyer e foi o principal presente de aniversário à cidade) e o contexto paulistano onde tudo começou. O evento também marca o início das atividades da nova unidade do Sesc em Belenzinho. "A nova unidade surge, assim, sob o emblema da modernidade", adianta Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo.
Mais um Sesc
O novo endereço do Sesc está em uma área de 55 mil metros quadrados na rua Álvaro Ramos, 991, no Belém, em São Paulo, no lugar de uma antiga fábrica das Tecelagens Santista. Em caráter provisório, a unidade irá iniciar suas atividades normais em janeiro, logo após o término das atividades do Fantasia Brasileira. "O objetivo é colocar mais um equipamento do Sesc funcionando na capital", explica Efre Rizzo, gerente do Sesc Carmo e responsável inicialmente pela futura unidade. "O espaço vai passar por um reforma completa. Está sendo elaborado um imenso projeto, dentro dos conceitos que o Sesc tem das unidades, como centro cultural e esportivo". Já há técnicos do Sesc fazendo o levantamento da necessidade de funcionários para a nova unidade, o trabalho com escolas e todo o mapa da região beneficiada pelo novo espaço cultural e esportivo. "Já estamos entrando em contato com escolas públicas, escolas de dança, enfim, tudo o que traz algum interesse", adianta Rizzo. "Isso inclui todas a comunidade, associações de amigos de bairro etc."
Com todo o agito para outubro, o Sesc, segundo o professor Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc, pretende dinamizar a vida sociocultural da região e aproximar as pessoas tanto do patrimônio quanto das práticas culturais. "Localizada em um bairro com bom comércio e bastante populoso, a nova unidade vai colocar à disposição do comerciário, de sua família e de toda população uma estrutura de lazer, esportes e cultura que possa contribuir para atenuar, nesses setores, a carência de espaços e programas", analisa Miranda.
Para o evento Fantasia Brasileira, apenas 20% da área foi adaptada. Mesmo assim, são 10 mil metros quadrados preparados especialmente para receber todos os elementos da exposição mais um teatro de 400 lugares para as apresentações de dança que "animarão" o evento.
São Paulo do IV Centenário
O clima de São Paulo na metade do século, período da grandiosa celebração de seu 4o centenário, remetia a tudo o que significasse progresso. Mesmo com toda a agitação de uma cidade em pleno desenvolvimento, aquele tempo é sempre lembrado como mais tranquilo pelas pessoas que nele viveram. Um "lugar melhor", de ar mais puro, regiões campestres, quase bucólicas, principalmente no caminho que levava às chácaras de Itaquera. A avenida Paulista, hoje centro comercial e financeiro de São Paulo, já era dos casarões em estilo mourisco, saídos da nostalgia dos emigrados sírios-libaneses que lá já haviam consolidado fortuna. Aliás, charme era a palavra para descrever a cidade na época. No teatro se falava em Cacilda Becker e, mais precisamente em 1954, na literatura surgiu o trio composto pelos irmãos Campos mais Décio Pignatari. A década viu nascer o Departamento de Cultura (mais tarde transformado em Secretaria), trouxe os festivais internacionais de cinema, talvez como reflexo da falência da industria brasileira de filmes, a Vera Cruz de Franco Zamparini, mas ainda assim a cultura permeava tudo. Bar do Museu, Mário de Andrade, Sergio Milliet...
Nas ruas, muitas ainda de terra, os bondes circulavam impávidos. Charmosos, também. Já no futebol o Corinthians, o Esquadrão Mosqueteiro (na época ainda não carregava o epíteto Timão, que hoje o consagraga) fazia a alegria dos amantes do futebol. Com sua lendária escalação, Gilmar, Olavo e Homero; Idário, Goiano e Roberto; Cláudio, Luisinho, o Pequeno Polegar; Baltazar, o Cabecinha de Ouro; Carbone e Mário, o homem dos 1.001 dribles, o time conquistou o título paulista mais almejado de todos os tempos: o Campeonato do Centenário. Na festa da conquista, o público ostentava milhares de charutos, símbolo consagrado pelo orgulhoso Alfredo Ignácio Trindade, o presidente do clube na época. Para homenagear o lendário esquadrão foi composta a marchinha "Gol de Baltazar", ainda muito conhecida hoje em dia.
Amada e odiada, São Paulo provoca inúmeras sensações em seus moradores, visitantes e imigrantes. Ou nas palavras definitivas do jornalista Claudio Willer, "uma cidade que ainda não parou de crescer e de transformar-se".
Dança canibal
O Balé do IV Centenário tem um histórico que o aproxima bastante da proposta atual levantada por Paulo Herhenhof para a Bienal das Artes de São Paulo. Para gerenciar as comemorações dos 400 anos da cidade, em 25 de janeiro de 1954, foi criada uma Comissão que, na voz de Titilo Matarazzo, convidou o diretor artístico e coreógrafo Aurélio Milloss a vir ao Brasil para montar um espetáculo de dança na cidade. Milloss trouxe da Itália oito coreografias e criou mais nove especialmente para o evento, participou da comissão que escolheu os bailarinos e acompanhou todo o trabalho de cenografia, figurino e música. Durante um ano e meio os bailarinos ensaiaram oito horas por dia. Além de aulas de danças, os bailarinos submeteram-se a aulas de interpretação e expressão, também supervisionadas por Milloss.
A parte estética do balé ficou nas mãos de verdadeiros mitos da artes plásticas no Brasil, como Lasar Segall, Flávio de Carvalho, Candido Portinari, Di Cavalcanti e Roberto Burle Marx, entre outros, responsáveis pelos figurinos e cenários, enquanto Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Souza Lima e Francisco Mignone tiveram a incumbência de criar peças inéditas para as coreografias.O clima do Balé IV Centenário foi influenciado pelo furacão modernista de 1922 e pelo Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade de 1928. Daí a ligação dialógica com a última edição da Bienal. "Todo o processo de montagem do balé e o próprio resultado das 17 coreografias, cenografia, figurinos, bailarinos, do Brasil e de fora, é claramente antropofágico", ressalta Sônia Hamburguer, assessora da curadoria. "É um exemplo da antropofagia nas artes cênicas. No caso, a dança." O Balé, hoje, é considerado decisivo para o desenvolvimento da dança no Brasil, de onde saíram nomes como Marika Gidali e Ismael Guiser.
A realização por parte do Sesc de um evento que remonta a todo esse período de efervescência cultural "propicia a recuperação de importante período da vida de São Paulo e estimula um vasto movimento de reflexão sobre a sociedade contemporânea", completa Danilo Santos de Miranda.