Postado em 29/09/2005
Em depoimento exclusivo, a professora de literatura brasileira Tania Rösing relembra a trajetória da Jornada de Literatura de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e comenta a complicada relação do Brasil com a leitura
Em 1981, Tania Rösing, professora de literatura brasileira da Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, alimentava um sonho: levar à sua cidade escritores brasileiros para debater a obra com o público. Só que não bastava levá-los. A idéia era que o trabalho começasse antes do encontro, com a leitura das obras nas escolas e universidades que participariam do evento. Vinte e quatro anos após a 1ª Jornada Rio-Sul-Grandense de Literatura, que reunia somente escritores gaúchos e contou com 750 participantes, o encontro alçou vôo internacional. A 11ª Jornada Nacional de Literatura, realizada em agosto, reuniu cerca de 20 mil pessoas entre participantes e organizadores, e contou com a presença de escritores estrangeiros, como a checa Ludmila Zeman, autora da trilogia A Epopéia de Gilgamesh, traduzida por Sérgio Capparelli, e de Sinbad – Uma História das Mil e Uma Noites, este com tradução de Ana Maria Machado, também participante do evento. Além dela, outras estrelas da literatura nacional, como Ariano Suassuna e Ignácio de Loyola Brandão, que acompanha a jornada desde 1988, passaram por lá. O encontro marcou, ainda, a realização da terceira edição da “Jornadinha”, dedicada exclusivamente às crianças. A seguir os principais trechos de seu depoimento:
Tudo começou em 1981, quando fui visitar um primo que estava recebendo Josué Guimarães, um grande jornalista e escritor gaúcho. Foi ele a primeira pessoa a me incentivar a criar o evento. Sempre pensei em reunir um grupo de escritores de Porto Alegre lá em Passo Fundo, mas naquela época a distância entre a cidade e a capital, 300 quilômetros, dificultava muito a empreitada. Eu queria organizar um evento em que alunos, professores e participantes pudessem ler as obras dos autores convidados para então discuti-las durante a jornada. Eis, aliás, o nosso diferencial até hoje em relação a outros eventos dessa natureza. Mas meu temor era que os escritores não nos conheciam. Josué prometeu ajudar, desde que desenvolvêssemos a metodologia proposta. E assim foi. Organizamos, então, uma pré-jornada da qual participaram 250 professores. Convidamos Moacyr Scliar, Carlos Nejar, hoje ambos na Academia Brasileira de Letras, Antônio Carlos Resende, que era jornalista na época, Sérgio Capparelli, Armindo Trevisan e Mario Quintana, então com 75 anos. Os escritores não só compareceram como Moacyr Scliar até chegou antes do previsto – ele confundiu as datas, fiquei com medo de que não voltasse, mas voltou. O encontro chamou-se Jornada Sul-Rio-Grandense de Literatura e teve um clima de celebração da leitura, um grande entrosamento entre participantes e autores. Sem o ranço da academia e daquele rigor que a crítica literária impõe e professores e pesquisadores mantêm dentro da universidade.
Em 1983, realizamos a 1ª Jornada Nacional de Literatura. Dessa vez convidamos Fernando Sabino, Millôr Fernandes, Antônio Callado, Otto Lara Resende, Luis Fernando Verissimo, Lya Luft e Orígenes Lessa. A partir daí, com a presença de escritores do Brasil inteiro, a jornada passava de um sonho a uma realidade. Neste ano, a 11ª Jornada Nacional de Literatura já tinha 4.500 vagas preenchidas 40 minutos depois de abertas as inscrições na internet. Dias depois, abrimos as inscrições para a Jornadinha, com 12 mil vagas para as crianças. Foi a mesma coisa: 40 minutos depois, as vagas estavam todas preenchidas. Além de pessoas de todas as regiões do Brasil, inscreveram-se até estudantes da Polônia.
A questão da educação tem de ser trabalhada em sintonia com a cultura. Para isso, temos de considerar inicialmente quem é o professor brasileiro que está nas escolas públicas. Geralmente ele vem de classes sociais mais pobres, tanto econômica quanto culturalmente. Portanto, são pessoas que vão pouco ao cinema, ao museu, a exposições de arte ou a shows de música. Esse é o perfil do professor desde os anos 70, época em que houve abertura da universidade às classes mais pobres. Foi quando ocorreu um processo de democratização do ensino superior. Esse grupo que espontaneamente não lê começou a ingressar especialmente nos cursos de licenciatura. Se não conseguirmos transformar os professores, com o desenvolvimento de processos de imersão cultural, que prevê o afastamento deles da escola por alguns períodos para participar de outras atividades, não teremos leitores. Por isso a pré-jornada é tão importante quanto o próprio evento, é a época em que nos reunimos com os professores para que eles possam levar os livros aos alunos. Essa etapa do processo dura quatro meses e nossa contribuição é a de levar a notícia. Nós vamos às escolas de vários estados e nos reunimos com os professores. Também já realizamos esse encontro em algumas unidades do Sesc São Paulo. Em 2003 chegamos a atingir 150 mil pessoas nessa fase. É o primeiro estímulo para que os educadores possam, como arautos, dar a notícia dos livros aos seus alunos. Trata-se de um processo de convencimento mesmo, pois encontramos professores pelo País afora, muito tristes, desmotivados e muito mal remunerados. Mas infelizmente o problema não é só dinheiro. Se os professores que ganham 500 reais hoje, passarem a ganhar 5 mil, continuarão não lendo, porque, antes de outros problemas, se trata de uma questão cultural. A leitura não faz parte de nossa cultura, diferentemente da televisão, que atinge igualmente pobres e ricos.
Já temos um projeto físico que é a construção do Portal das Linguagens, um local que abrigará 6 mil pessoas e terá salas modulares para cursos e atividades culturais. Também pretendemos atender a deficientes visuais, a pessoas que ainda não são alfabetizadas, e para desenvolver iniciativas de educação à distância. A idéia é que consigamos recursos para fazer isso já para a próxima edição, que acontece em 2007. Independentemente de mudanças que tenhamos no projeto, o essencial é manter a metodologia da Jornada Literária, que começa bem antes de o evento realmente acontecer, com a pré-jornada, quando o público tem a oportunidade de ler os livros antes de assistir às conferências. Há 24 anos essa fórmula tem sido nosso diferencial.
Saiba mais:
www.jornadadeliteratura.upf.br