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Opção irreversível

Postado em 01/09/1997

IMMACULADA LOPEZ

Para muitas mulheres brasileiras, esterilizar-se é um capítulo certo do projeto de vida: casar, ter dois filhos e fazer uma laqueadura, como fez a mãe, a irmã ou a vizinha. Os dados mais recentes sobre o assunto não negam: 40,1% das brasileiras unidas (casadas, legalmente ou não) estão esterilizadas. Entre as mulheres em geral, a esterilização é também o método anticoncepcional mais usado, atingindo 27,3% das brasileiras. A Pesquisa Nacional sobre Demo-grafia e Saúde de 1996, feita pela Bemfam (Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil) refere-se às mulheres entre 15 e 49 anos. Comparada com pesquisa similar de 1986 (ver tabela ao final da matéria), fica evidente o aumento do número de esterilizações.

Pesquisadores, autoridades e movimentos feministas se unem para afirmar que o país vive uma situação de enorme e preocupante abuso. Ainda mais em tempos de Aids e de deserção do governo do campo da saúde pública. "A expansão do método não pode ter sido resultado de um processo de escolha natural das mulheres", destaca Rita Baldiani, coordenadora da pesquisa.

O Brasil nunca teve uma política oficial de controle da natalidade - a não ser a omissão. "O controle populacional veio de fora para dentro, financiado pelos organismos internacionais e implantado pelas clínicas de planejamento familiar", diz o chefe da Ginecologia do Hospital das Clínicas da USP, José Aristodemo Pinotti. Ele lembra que muitos médicos recebiam equipamentos e dinheiro de entidades norte-americanas por cada esterilização feita. Principalmente nos anos 70 e 80, esses serviços se multiplicaram, com o treinamento de profissionais e a realização de convênios com empresas, sindicatos e o próprio setor público.

"Acreditava-se que quanto maior a população, maior seria a barreira para o desenvolvimento e maior a chance de tensão social", explica a socióloga Maria Izabel Baltar da Rocha, do Núcleo de Estudos da População da Unicamp. Em outras palavras, por mais radicais que essas teses pareçam, o aumento do número de pobres era considerado uma ameaça que precisava ser controlada. "Começaram a distribuir pílulas e fazer laqueaduras. Dois métodos amplos e eficientes para o controle de natalidade que nada têm a ver com um verdadeiro programa de planejamento familiar", completa Pinotti.

Planejamento familiar, para Pinotti, "significa adaptar ao caso de cada mulher em cada fase de sua vida o melhor método que impeça uma gravidez indesejada, sem prejudicar sua saúde nem tirar seu direito de escolha". Esse é o primeiro motivo de alarme frente a tantas esterilizações no país: elas não fazem parte de um programa de atenção integral à saúde da mulher que garanta informação e acesso a todos os métodos anticoncepcionais. São quase uma imposição. "Hoje, o controle da fertilidade vem sendo realizado às custas de danos ao corpo da mulher", completa a enfermeira Rosa Godoy, chefe do departamento de Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da USP.

"Quase todas as mulheres que nos procuram só conhecem a pílula e a esterilização", conta a médica Maria José Araújo, da organização não-governamental Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em São Paulo. A entidade oferece um atendimento médico diferente: a paciente participa das decisões, tem espaço garantido para falar o que pensa e sente, aprende a se auto-examinar, pode participar de grupos de reflexão e seminários. "Depois de apresentarmos e discutirmos outros métodos, a maioria desiste da esterilização", diz Maria José. No hospital Pérola Byington (Centro de Referência da Mulher do Estado de São Paulo), o resultado é semelhante.

"Antes de entrar numa consulta, a paciente participa de uma reunião de grupo, na qual recebe informação sobre os vários métodos e pode falar a respeito de seus problemas e convicções morais", explica Pinotti. No final, a esterilização é quase sempre deixada de lado. Mas, para tanto, não bastam informação e diálogo. No Péro-la Byington, camisinha masculina e feminina, pílula, DIU (sigla de dispositivo intra-uterino) e diafragma, entre outros, são distribuídos gratuitamente às pacientes. No Coletivo Feminista, são oferecidos a baixo custo e, se necessário, doados.

Direto na farmácia

Mas esses dois serviços são um oásis na saúde brasileira. O deserto geral pode ser percebido no exemplo da Grande São Paulo. Contam-se nos dedos os hospitais que mantêm um serviço de planejamento familiar. Metade dos centros de saúde não têm ginecologista, e há um ano faltam pílulas anticoncepcionais.

"A população aprende que não pode contar com o serviço público", reconhece Sara Romera Sorrentino, da área de Saúde da Mulher da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. As mulheres compram então pílula direto na farmácia, muitas vezes com contra-indicação ou sem saber como usar corretamente. Por isso, é comum o método falhar. "Nessa hora, optam pela laqueadura. Chegam ao médico já decididas", diz Sara.

Para Edna Roland, presidente da Fala Preta - Organização de Mulheres Negras, "a esterilização é vendida como método perfeito, definitivo, seguro e inofensivo". Um total engano. Esse é o segundo grande motivo de preocupação: as brasileiras estão se esterilizando sem critérios e sem informação completa. "Feita sem técnica precisa, a laqueadura pode afetar a circulação ovariana, causar alterações na vida sexual e antecipar a menopausa", informa Pinotti. O principal efeito colateral também quase nunca é discutido. "É o arrependimento", diz Rosa, da Escola de Enfermagem da USP. Na prática, a ligação das trompas é irreversível. A mulher perde para sempre sua capacidade reprodutiva.

"A mulher só deveria se ver diante desse tipo de decisão em último caso, e quando se sentisse totalmente esclarecida e segura", diz Rosa. Afinal, ela pode desejar engravidar outra vez - especialmente quando um filho morre ou um novo relacionamento começa. Se tem condições, a mulher tenta reverter a laqueadura e recorre aos serviços de inseminação artificial. Raras vezes os riscos desses procedimentos são discutidos na escolha do método contraceptivo.

Por outro lado, o médico quase nunca associa a prevenção da gravidez ao cuidado com as DSTs (doenças se-xualmente transmi-ssíveis), como Aids e câncer de colo de útero. "Como convencer uma mulher esterilizada de que precisa usar camisinha para se proteger de doenças?", pergunta Edna. "Quando faz a esterilização, ela acha que não precisa mais se preocupar com nenhum risco. A prevenção de DSTs é um fator que deve pesar na escolha do método anticoncepcional. O médico precisa esclarecer a paciente", completa.

Por enquanto, a ligação de trompas já empurra as mulheres para outro risco: as cesarianas. Decidida a fazer uma esterilização, a paciente recorre na maioria dos casos a um hospital conveniado com o SUS (Sistema Único de Saúde). Mas, apesar de tão difundida, a esterilização não era permitida, exceto em casos de ameaça à saúde da paciente, com seu consentimento por escrito e o aval de uma comissão de ética do hospital. Isso deriva de uma restrição determinada pelo Conselho Federal de Medicina e pelo Ministério da Saúde com base numa interpretação do Código Penal Brasileiro segundo a qual é condenada toda lesão corporal que cause perda ou inutilização de uma função do organismo. Essa restrição foi agora derrubada pelo Congresso Nacional, ao recusar veto do presidente Fernando Henrique Cardoso a artigos da lei de planejamento familiar.

Cesarianas

A nova lei não está ainda regulamentada, e a esterilização continua não sendo oferecida amplamente. No entanto, pesquisa da Bemfam mostra que quase 71% das mulheres foram esterilizadas no setor público. Como? A maioria paga "por fora" para os médicos (o terceiro grande motivo de preocupação) e aproveita a ocasião de uma operação cesariana (quarto motivo, mas não em ordem de gravidade).

Segundo Pinotti, que também é deputado federal, ocorre no Brasil um número de cesarianas três vezes maior do que o necessário. Nesse tipo de operação, a mortalidade materna é de três a dez vezes maior do que no parto natural. A mortalidade infantil, de quatro a oito vezes maior. "Ou seja, mulheres e crianças estão morrendo por causa da cesariana. E muitas das que são feitas sem indicação têm por trás a busca da laqueadura", diz Pinotti. A cesárea é o momento criado para ligar as trompas ovarianas. Segundo o levantamento da Bemfam, quase 60% das mulheres esterilizadas o fizeram no momen-to da cesariana. E sabe-se que na maioria dos casos tiveram que pagar (talvez R$ 600 ou R$ 700) para fazer a laqueadura. A cesariana também custa caro aos cofres públicos. Em pesquisa divulgada em dezembro do ano passado, a Fundação Oswaldo Cruz apurou que o SUS gastou desnecessariamente em 1995 entre R$ 17,8 milhões e R$ 83,4 milhões com esse tipo de cirurgia.

Os médicos, de acordo com Pinotti, estão sendo movidos por interesses econômicos, mas também por falta de reflexão e em virtude de um problema de formação. Edna concorda: "Grande parte dos médicos vêem as pacientes como mulheres pobres, ignorantes, com pouca autonomia sobre seu corpo e sua vida", diz a presidente da Fala Preta. Segundo ela, o médico "detém o poder central no processo de saúde. Muitas vezes, ele prefere recomendar um procedimento que dependa dele e não da mulher". Restam também vestígios de uma mentalidade con-trolista: para diminuir a pobreza, é necessário reduzir o número de pobres. O médico pensa estar fazendo um bem. Uma grande mentira, segundo Edna. "As brasileiras têm cada vez menos filhos, e continuam pobres. A solução da pobreza não é a redução do número de filhos, mas a redis-tribuição dos recursos do país."

Mas certamente muitas mulheres e homens desejam planejar e evitar a gravidez e ter famílias menores - uma mudança cultural recente impulsionada pela entrada da mulher no mercado de trabalho e acentuada pela dificuldade de gerar e criar filhos (há falta de assistência pré-natal, número insuficiente de creches e escolas, ausên--cia de apoio do parceiro). "A decisão deve ser da mulher ou do casal", diz Regina Coeli Viola, da Coordenação Materno-Infantil do Ministério da Saúde, fazendo coro com os outros especialistas. O Estado não deve intervir para estimular ou controlar a fecundidade. Entretanto, deve garantir um programa de saúde integral da mulher, no qual a concepção e anti-concepção façam parte de um acompanhamento constante da paciente. E deve assegurar ampla informação e acesso a todos os meios existentes. Nesse tipo de programa, o objetivo não é reduzir o crescimento populacional (por mais que esse possa ser um dos resultados), e sim as doenças e a mortalidade da mulher e da criança.

A boa notícia é que esse projeto já existe: o ousado e ambicioso Paism (Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher) foi implantado pelo Ministério da Saúde em 1986. A má notícia é que avançou pouco. Fora e dentro do governo, o caminho apontado para vencer o abuso das esterilizações é a implantação efetiva do Paism. A nova lei, que determina o acesso amplo e cri-terioso à esterilização, não vai mudar por si só a realidade. "Todos esses anos, a restrição não impediu o abuso da laqueadura, e a regularização sozinha também não vai impedir", diz Regina.

Anticoncepção no Brasil*
  1986 1996
Esterilização feminina 17,2% 27,3%
Pílula 17% 15,8%
Camisinha 1,1% 4,3%
Coito interrompido 3,2% 2,1%
Tabela, Billings e temperatura 3% 2%
Esterilização masculina 0,5% 1,6%
Injeções 0,4% 1,1%
DIU 0,7% 0,8%
Diafragma, espuma e tabletes 0,1% 0,1%
Outros (ervas, chás...) --- 0,2%
* Em 1986, foram pesquisadas mulheres de 15 a 44 anos.
Em 1996, mulheres de 15 a 49 anos
Fonte: PNSMIPF, 1986; PNDS, 1996

 


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