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Ficção Inédita

Postado em 05/01/2005

 

O Zelador do Céu

 

Fábio Lucas

 

O mirante do sr. Jacinto Cruz... Nos feriados e dias santos, o sr. Jacinto escalava o mirante. De óculos azuis e barbas compridas, ali ficava horas, mudo, grudado à pequena luneta, após hastear a bandeira nacional no pequeno mastro envolvido em fita verde-amarela.

 

Julgava-se o síndico de Deus, contava e recontava as estrelas, a ver se todas estavam no seu lugar. Não faltando nenhuma, poderia descer do mirante em paz com o Criador. Nos dias de maior fervor, em que a cúpula do céu se apresentava toda iluminada, parava os olhos num ponto indefinido e se perdia na contemplação.

 

Somente admitia o universo como um todo. O esforço do pensador está em buscar as relações. Tudo se liga, todas as coisas são atadas umas nas outras: a estrela e a galáxia, a abelha e o enxame, o mar e o grão de areia, o nascimento da criança e a morte do velho. Tudo tem a mesma natureza, é governado por uma lei geral, tão geral que o homem, distraído, não se apercebe da variedade do real.

Toda ciência corta a realidade em pedaços, é redutora. Toda arte vira uma porção do real, aquecida pelo ardor da paixão. O homem julga progredir quando retalha o real, quando o analisa, ou seja, quando o retira do real. Cata resíduos, coleciona ruínas, só apreende entidades mortas e frias, já acontecidas.

 

Só Jacinto sobe o mirante, confere o universo, desce, vai ao quarto, consulta o microscópio. Despreza os que se alegram no Carnaval e os que choram nos enterros. Tudo isso é fração da realidade, paixões, partículas. Quem liga uma coisa a outra estabelece o nexo geral, navega no passado e no futuro, mistura as marchas da história, transcende a cronologia. O saber não é feito de rações de alpiste. Quem possui uma ânfora não pode ambicionar o mar. O relógio e o dicionário são representações do fracasso do homem, de sua impossibilidade de alcançar o real. Mas cada partícula pode ocultar o desenho do todo. Sr. Jacinto gosta de contar as estrelas. Com a luneta vai localizando-as. Sente-se responsável pelo firmamento, pela ordem natural das coisas. Cada objeto no seu lugar. Certas partículas me levam ao êxtase.

 

Tem repugnância do profeta Ramiro, acha-o pernóstico, com o seu falar escasso, suas frases lapidares, ditas vagarosamente a pitonizar catástrofes. A maior vítima deste é a mulher, comparada à cobra surucucu: bela, bela, de amplexos mortais!

 

O profeta Ramiro não era amigo do banho, falava com um hálito fétido, perpassava pelo cheiro de café e tabaco azedo, aderidos à barba difusa. Diziam-no com partes com o gambá: cheirava mal e se alimentava de miolos de galinhas.

 

Profetizava catástrofes. Gostava de visitar moribundos a fim de decifrar os avisos da morte. Nos anos de seca se extasiava na contemplação do céu amarelado, ou turvo da fuligem das queimadas, como nos agostos e setembros prolongados: chuvas ausentes, secura nas almas. Quando saía em visita, todos escondiam os canários de sua vista, cobriam as gaiolas com panos, pois ficavam tristes e morriam. Tinha o olhar de víbora, malfazejo.

 

Só Jacinto se aborrecia com os rompantes do profeta Ramiro. Então ele não vê que o joão-de-barro é o maior arquiteto que já existiu em todos os tempos? Os homens não sabem construir. Os homens foram feitos para as desconstruções. Suas maiores descobertas destinam-se à guerra. A arquitetura humana é imprestável. Onde há governo, há edifícios públicos, obras santuárias, sintomas de poder e escravidão. As casas, por sua vez, se amontoam e criam o xadrez urbano, cheio de prisões e ciladas. O joão-de-barro tem um risco acadêmico, clássico. Sua porta é orientada para defender-se do vento, da chuva e da tempestade. O único inimigo é o homem.

 

Já o profeta Ramiro prefere, na forma e no espírito, o ninho de guacho, uma descabelada touceira. Diz que o pássaro é psicodélico, construtor daquela perfeita gaforina, traçada sob o modelo pós-moderno.

Só Jacinto acha aquilo um absurdo, um verdadeiro cancro da natureza, um desses lapsos do Criador que devem ser necessariamente absorvidos pela lei dos grandes números.

 

O profeta Ramiro tem opinião diferente. Que o Criador, um dia, ordenou ao pássaro: vai ser guacho na vida! E deu-lhe instrução para entretecer um ninho assimétrico, juntando gravetos e irreverências. Uma ousadia para provar que a razão não é tudo. Um aviso da pós-modernidade. O acaso é mais criador do que a ordem.

 

O profeta se recorda dos nomes de Roldão Starling, aquele que introduziu o modernismo em Transvalina. Foi capaz de unir a radiante arquitetura do pássaro, êmulo de todos os calculistas, de todas as formas fixas, dos sonetos e das estações dos anos às projeções do infinito:

“Quando passo pelo riacho

Vejo o ninho de guacho

Com a mão de Deus por baixo”.

Um dia o profeta Ramiro previu a morte do sr. Jacinto. Coisa mais absurda. Mas o sr. Jacinto, ao descer do mirante, pisou em falso (opinião de alguns) ou teve um degrau comido pelos cupins (conforme os outros), mas o caso é que despencou das alturas, fraturou a base do crânio e morreu.

Quando o carpinteiro-mor de Transvalina, o sr. Ernesto, foi aprontar a escada do mirante, subiu até o topo e, de lá, o que viu: a luneta do sr. Jacinto era voltada para o quintal de dona Dulce, dos Correios. Dali era fácil ver a grande estrela das masturbações locais trocar seu jaleco amarelo pela minissaia de lantejoulas. O indecifrável cosmo do sr. Jacinto, seria?

 

Fábio Lucas é autor, entre outros livros, de A Mais Bela História do Mundo (Global Editora, 1996)

 

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