Postado em 01/01/2005
Jorge Schwartz
O autor, professor de literatura e editor Jorge Schwartz participou da reunião do conselho editorial da Revista E. Durante o encontro, falou, entre outras coisas, sobre as dificuldades do Brasil em divulgar sua cultura para o mundo, do quanto temos em comum com nossos vizinhos latino-americanos e da natureza indócil do modernista Oswald de Andrade. A seguir, trechos da conversa.
Certa vez li um poema do Ferreira Gullar que dizia “somos todos irmãos”. Acho que ele se referia aos latino-americanos. Nasci na Argentina, sou filho de judeus húngaros. Não acho que sou irmão dos bolivianos, dos cubanos e muito menos dos mexicanos. Há um problema ideológico que é a questão continental. É necessário que haja uma política, digamos, continentalista. Um movimento que fosse contra o pan-americanismo norte-americano. Antonio Candido já nos apresentou reflexões como essas nos anos 70, mais especificamente em seu artigo Literatura e subdesenvolvimento, que apareceu em América Latina em Sua Literatura (Editora Perspectiva,1979), um volume da Unesco. Nesse artigo, Candido fala dessa trajetória da consciência do subdesenvolvimento, chegando a Guimarães Rosa e comparando-o com o mexicano Juan Rulfo – já tocando na invenção da linguagem e numa espécie de superação do regionalismo. O que também já fez Haroldo de Campos em texto publicado nesse mesmo volume, no qual ele fala da superação das linguagens exclusivas. Agora, o que nós, países latino-americanos, temos em comum é complicado de dizer. Penso que neste mundo globalizado a tendência é cada vez mais acontecerem eventos correlatos. Por exemplo, hoje em dia a questão da violência urbana na narrativa e no cinema é um elemento comum a todas as metrópoles latino-americanas – e, vale dizer, não somente a elas. Acho que houve, sem dúvida, uma grande influência do boom da geração do Julio Cortazar [nascido na Bélgica, mas de família argentina, tendo toda a sua obra fortemente identificada com a cultura latino-americana], o [mexicano] Carlos Fuentes e o [peruano] Mario Vargas Llosa nas letras brasileiras. O Brasil não fez parte desse boom, desse momento importante no mercado editorial que passou pela Espanha. Aliás, o Brasil não ter, até hoje, ganhado um Prêmio Nobel em literatura – em nenhuma área, na verdade – é o fim da picada! É de mandar uma carta para as nossas agências financiadoras de pesquisa. Não é possível.
De uma maneira mais pragmática, eu gostaria de me referir à América Latina e mais à América do Sul. Quando eu vou ao Uruguai fico absolutamente surpreendido com o conhecimento que eles têm do Brasil e com o interesse demonstrado pela língua portuguesa e por nossa literatura. Em Buenos Aires, nos últimos anos, tem havido um florescimento inédito dos estudos do português, assim como aqui do espanhol. Penso que este fenômeno esteja mais voltado para um núcleo que, talvez, inclua também o Paraguai e, quem sabe, a Bolívia. Nesse caso, eu me sinto à vontade para falar que somos irmãos e tocar em interesses comuns. Acho também que o Mercosul – e dentro dele a Bienal do Mercosul – fez muito mais pela cultura latino-americana do que anos e anos de tentativas. Mas, ainda assim, tenho críticas muito sérias a fazer à postura do Brasil em relação a isso. Quando você vê o que a Espanha faz através do Instituto Cervantes, ou o que a França faz graças à Aliança Francesa e a Alemanha com o Instituto Goethe, enfim, eles investem de forma sólida e programática em cultura. E não adianta dizer que é porque se trata de países de tradição colonial, imperialistas ou seja lá o que for. Quando você vai ao consulado argentino com algum projeto cultural de caráter mais continental em mente, eles resistem a investir recursos nisso. Acham que não são latino-americanos, dizem-se simplesmente argentinos. De forma muito semelhante, o Brasil também não investe na divulgação da cultura brasileira no estrangeiro. Tanto é assim que a exposição Da Antropofagia a Brasília, que aconteceu em 2000 na Espanha, não teve um único centavo do governo brasileiro. Foi tudo bancado pelo Museu Valenciano de Arte Moderna, que quase afundou por causa disso. Agora há as isenções fiscais que podem tornar as coisas mais fáceis, mas não existe um empenho em desenvolver de forma significativa centros culturais brasileiros no estrangeiro, cátedras universitárias, a não ser em caráter excepcional, e quase sempre é fruto da iniciativa privada. Ao passo que vejo, por exemplo, o Instituto Cervantes de São Paulo patrocinando projetos de divulgação da cultura hispano-americana. Recentemente houve um evento na Avenida Paulista, trouxeram justamente, além dos espanhóis, um autor argentino, residente nos Estados Unidos, o Tomás Eloy Martínez, e latino-americanos residentes na Espanha. Os tempos mudam vertiginosamente. E a situação é muito diferente do que era antes em termos de política cultural. Hoje são os interesses econômicos que prevalecem e fazem as pontes, e a parte cultural vem um pouco de roldão. E quando vem é sempre porque há empresas patrocinando ou alguns museus se esforçando para isso.
Oswald de Andrade era impossível, Antonio Candido é quem melhor revela o quanto Oswald de Andrade era impossível, uma pessoa que perde o amigo, mas não perde a piada [célebre frase que se credita a Oswald]. Ele dizia qualquer coisa, era mais forte que ele. E, como não era rancoroso, para ele passava, não tinha o menor peso. Oswald era pérfido e maledicente, fazia piadas de meio mundo. São muito divertidas, mas se você olhar a distância. Ele chama um crítico de “ratazana ao molho pardo”, enfim, é capaz de dizer qualquer coisa a respeito de qualquer um. E, evidentemente, deve ter intuído as questões sexuais de Mário de Andrade quando começou a publicar várias notas na Revista de Antropofagia. Conto isso porque está, de fato, publicado, não é fofoca de minha parte. Numa delas, ele chama Mário de “o nosso Miss São Paulo traduzido em masculino”. No Dicionário de Bolso do Oswald, Mário é definido como “muito parecido pelas costas com Oscar Wilde”. Desnecessário dizer que Mário ficou absolutamente transtornado, se afastou, e o autor de Paulicéia Desvairada nunca mais quis dialogar. Oswald fez de tudo para reatar a grande amizade – isso está registrado em vários momentos, ele dizia que não entendia por que Mário estava brigando com ele. Foi um choque para Oswald quando Mário morreu abruptamente. Oswald, sem dúvida, sentiu profundamente a perda. Antonio Candido, numa palestra, contou que, para Oswald, no final da vida, Macunaíma [uma das obras mais famosas de Mário de Andrade] é o grande romance do período.
Até hoje, que eu saiba, não existe nenhum trabalho de fôlego que aborde diretamente a questão da homossexualidade na obra de Mário de Andrade – ausência que eu considero da maior gravidade numa época em que existem estudos de gênero, comportamento, enfim, vários campos correlatos. Mário tem textos em que o homoerotismo aparece do ponto de vista literário. Não falo no âmbito pessoal, porque, além de complicado, realmente não interessa – e isso, sim, não passaria de fofoca. O que interessa são as ambigüidades e as oscilações presentes em sua obra. Entre os exemplos, há o poema O cabo Machado, do livro O Losango Cáqui, e um conto como Frederico Paciência, no qual essas pulsões aparecem de forma mais ostensiva – além de depoimentos sobre a viagem ao Rio de Janeiro. Enfim, acho que Mário, pela época em que nasceu e o meio social no qual vivia, foi uma pessoa profundamente torturada. Era, claro, um outro momento histórico, e creio que houve mesmo uma campanha velada por parte da grande crítica marioandradina para camuflar esse lado de Mário. Digo isso porque há ensaios psicanalíticos da obra dele que nem tocam nesse assunto. E é muito estranho você falar em psicanálise e não tocar em sexualidade. Aliás, nem posso imaginar o que seja psicanálise sem sexo.