Postado em 01/01/2005
Em depoimento exclusivo, o dramaturgo Luís Alberto de Abreu fala de seu processo de criação e do trabalho que desenvolve com a Escola Livre de Teatro de Santo André
Luís Alberto de Abreu é, segundo o Ministério da Cultura da Espanha, um dos mais importantes dramaturgos da atualidade. Pelo menos é assim que a publicação espanhola Escenarios de Dos Mundos se refere a ele. O elogio, claro, é muito bem-vindo, e os brasileiros concordam. Autor de mais de 20 peças teatrais – entre elas Bella Ciao, Cala a Boca já Morreu e O Livro de Jó , Luís Alberto também faz cinema e televisão. A próxima empreitada na telinha está prevista para este mês na Rede Globo. Trata-se da minissérie Hoje É Dia de Maria, adaptada por ele e dirigida por Luiz Fernando Carvalho. No depoimento a seguir, o autor fala do trabalho que desenvolve com dramaturgia na região do ABC de São Paulo e do projeto em parceria com o Sesc Itaquera.
Foi uma agradável surpresa ser citado no livro Escenarios de Dos Mundos, do Ministério da Cultura da Espanha, como um dos mais importantes dramaturgos porque creio que foi a partir de minha ligação com a cultura brasileira que meu trabalho repercutiu a esse ponto. Sou muito envolvido com as pessoas e o local onde produzo meu trabalho. Tenho peças que são sucesso na região onde foram criadas – como Maria Peregrina, na região do Vale do Paraíba, e Nonoberto Nonemorto, na região de Piracicaba –, e que são desconhecidas em São Paulo. Sou muito envolvido com a cultura brasileira, em especial com a popular, e a citação na publicação espanhola foi uma inesperada e boa surpresa, principalmente porque foi resultado do meu envolvimento com a cultura brasileira. Esse trabalho de alguma forma repercutiu desse envolvimento.
Borandá é um auto que se propõe a celebrar a trajetória dos migrantes, relatar suas experiências e agregar valor simbólico e estético a elas. Eu, o diretor Ednaldo Freire, a Fraternal Companhia de Arte e Malasartes há dez anos estamos envolvidos com a pesquisa da comédia popular brasileira e, entre suas várias vertentes, pesquisamos essas tradicionais formas teatrais da cultura ibérica – os autos – no sentido de revitalizá-las e dar-lhes um olhar contemporâneo. Borandá surgiu de uma pesquisa que fizemos com migrantes que vivem na região de Santo Amaro, em São Paulo. Lemos bastante sobre o tema, mas o que foi mais rico na pesquisa foi o trabalho de entrevistas, o que nos permitiu contato com as experiências mais significativas dos entrevistados. A partir desse material compusemos o nosso trabalho teatral. Já tinha sido outras vezes indicado para o Prêmio Shell, e a dramaturgia, em São Paulo, está tão viva, com inúmeros bons trabalhos e autores com obras tão diversas e interessantes que, embora tivesse a expectativa de ser premiado, não tinha razões maiores do que qualquer colega indicado ao prêmio para vencer.
Em 1987, participei como dramaturgo de uma co-produção Brasil-Dinamarca e, em 1988, Xica da Silva, dirigida pelo Antunes Filho, fez uma turnê por Coréia do Sul e Japão. Não acompanhei as duas montagens e, então, não pude aferir in loco a reação da platéia. Os atores me informaram que os dois trabalhos foram bem recebidos. Em 1992, acompanhei a pequena temporada que minha peça A Guerra Santa, dirigida por Gabriel Villela, fez na Inglaterra, onde abriu o Festival Internacional de Teatro de Londres. A peça foi muito bem recebida, com boas críticas e casa cheia. Como as peças foram apresentadas dentro do âmbito de um festival, um dos problemas que impedem uma melhor avaliação da platéia é a barreira da língua. E, como minhas peças têm uma forte carga textual, a apreensão do todo do espetáculo fica obviamente comprometida. No entanto, creio que, tirando aspectos mais visíveis, como reações mais ou menos contidas do público, o comportamento das platéias não varia muito com a nacionalidade.
É difícil falar do processo colaborativo rapidamente, pois se trata de um processo complexo. O coletivo criador não é um procedimento novo em matéria de criação artística, mas parece que hoje ele está mais fortemente presente, não só como um processo prático mas também como reflexão no sentido de entender e sistematizar seus fundamentos, isso em várias áreas da criação artística. Ligado historicamente aos processos coletivos de criação, o processo colaborativo tem sua influência mais significativa talvez na criação coletiva, que se desenvolveu com os grupos da década de 70 e que se implantou como um processo alternativo ao modelo anterior, o qual tinha forte predominância de apenas um criador, fosse ele diretor, dramaturgo ou ator. O processo colaborativo busca a horizontalidade nas relações da criação teatral, eliminando hierarquias desnecessárias. Parte do pressuposto de que o fenômeno teatral se dá fundamentalmente na relação espetáculo-público, afastando-se de tendências anteriores que colocavam o epicentro do acontecimento teatral no texto, na geometria cênica ou na figura do ator. Todo e qualquer artista é um colaborador desse acontecimento, de forma que obra e público ganhem dimensão nunca menor que a dos próprios artistas.
Meu trabalho na Escola Livre de Teatro de Santo André é um trabalho de relação pessoal, profissional e pesquisa artística muito profundas. Tanto com os colegas quanto com os aprendizes. Lá elaboramos os projetos mais variados e, o que é fundamental, produzimos, refletimos e registramos esses processos. Coordeno o núcleo de dramaturgia, mas também trabalho diretamente com os atores. Agora, por exemplo, estou envolvido em três projetos. Um deles é de pesquisa sobre o teatro nô e suas possibilidades contemporâneas. Nesse projeto colaboram Georgete Fadel (direção) , Cuca Bolaffi (movimento), Gustavo Kurlat (música) e aprendizes da turma de formação VII, que cumprem as tarefas de dramaturgos, atores, iluminadores, figurinistas etc. Tivemos o apoio da pesquisadora do nô, Ângela Nagai, e estreamos em fevereiro sete histórias inéditas influenciadas pelo teatro nô.
O segundo projeto, com estréia prevista para março de 2005, é a recuperação do procedimento de criação do espetáculo circense. O último projeto é o de pesquisa teórica sobre os fundamentos históricos e procedimentos do processo colaborativo.
A Escola Livre de Cinema e Vídeo é uma realidade há três anos. Quando criei o projeto da escola, queria aproveitar a tecnologia digital na área cinematográfica, principalmente no que dizia respeito ao custo de produção. A longo prazo, vislumbrava também a possibilidade de transformar o ABC em um pólo de produção. Levei o projeto ao secretário de Cultura e ao ex-prefeito Celso Daniel, que foi um homem público extremamente sensível à importância da cultura no desenvolvimento da cidadania e que o aprovou imediatamente. A Escola Livre de Cinema e Vídeo é totalmente gratuita, tem estrutura extremamente enxuta – cursos de direção, roteiro, fotografia, produção e história da imagem – e já realizou vários curtas e médias. Pretendemos, a curto prazo, fazer nosso primeiro longa-metragem, tudo digital. O ABC é uma região preferencial. É onde nasci, me criei e atualmente resido. Embora trabalhe bastante em São Paulo e em outros lugares, tenho uma ligação muito forte com o ABC, região que vi transformar-se de subúrbio rural em pólo econômico e político.
Meu trabalho no Sesc Itaquera foi um dos mais emocionantes que fiz nos últimos tempos. Foi um projeto que envolveu 45 jovens e adolescentes da região de Itaquera, com mínima ou nenhuma experiência teatral. Foi muito bonito acompanhar o processo e ver como, aos poucos, os meninos se apropriavam da música, do texto poético, da construção do espetáculo. Como eram iniciantes na arte de representar, optei por um texto mais poético, fundamentado numa fábula, e com forte base musical e de movimento. O resultado, conseguido em um curto espaço de tempo, foi emocionante. Projetos como esse depõem contra a especialização e reafirmam que um bom resultado artístico depende muito menos da acumulação de técnicas e muito mais do envolvimento dos criadores. O texto Peças e Pessoas, voltado ao público jovem e adolescente, foi dirigido por Calixto de Inhamuns, com direção de movimento de Ricardo Iazzetta, direção musical de Charles Raszl e cenários e figurinos de Carlos Colabone.