Postado em 01/07/2004
Homem de mil canções
O músico e compositor Paulo César Pinheiro lembra os parceiros e, de olho no futuro, fala das grandes gravadoras na era do MP3
Aos 10 anos senti um nó na garganta e fiquei até hoje com a imagem de um velho caminhão de mudanças na cabeça: fui para São Cristóvão. Entre Jacarepaguá e São Cristóvão, Angra dos Reis na minha vida. Foi lá que fiz meu primeiro verso. Tinha 13 anos. Sensação igual nunca mais senti. João de Aquino, primo de Baden Powell, foi meu primeiro parceiro. Com ele fiz, aos 15 anos, Viagem, que se imortalizou. Aos 16 comecei a minha parceria com Baden com o samba Lapinha, que em 1968 vencia a 1ª Bienal do Samba da TV Record e foi a minha primeira música gravada. Com Elis Regina, o grande ídolo da época. De lá pra cá, fui conhecendo os grandes e compondo com eles. Depois todos gravavam meus sambas. A safra com Baden era grande e aumentava cada vez mais. (...) Ganhei mais dois festivais: um universitário de São Paulo com E Lá se Vão Meus Anéis com Eduardo Gudin, e o outro, o Internacional da Canção, com Diálogo com Baden, no Brasil e na Espanha. Além de classificações em outros (...) Mas “tô sempre por aí”, como diz um samba meu, devidamente liberado pelos órgãos competentes.
Trecho do livro de Paulo César Pinheiro, Canto Brasileiro (1976).
Sobre os parceiros
Tenho muitos parceiros, atualmente estou na quinta geração. Comecei menino trabalhando com uma geração mais velha e depois passei a fazer parcerias com pessoas mais novas. A primeira geração foi a do Pixinguinha, que conheci através do Hermínio Bello de Carvalho. Ficamos muito amigos, gostava de conversar com ele em um bar que freqüentávamos no centro do Rio de Janeiro. Dessa geração trabalhei também com o Radamés Gnatalli que possui uma obra vasta, mais conhecida no meio erudito do que no popular – aliás, nossa parceria está guardada, não há nada gravado ainda, possivelmente ainda vai se transformar em um disco, tem música suficiente para isso. Também fiz parceria com o Alcir Pires Vermelho e o Mirabeau, que fez muito sucesso com músicas na voz da Carmen Costa. Foi um grande compositor, mangueirense, um dos compositores da conhecidíssima Cachaça: “Se você pensa que cachaça é água/Cachaça não é água não (...)”. Esses foram os mais antigos, com certeza estou esquecendo muita gente, tenho mais de 100 parceiros. Em seguida veio a geração do Tom Jobim. Comecei com Baden Powell, Carlos Lyra, Roberto Menescal e Dalton Medeiros. Depois vem a minha geração, da qual sou o caçula: Dorival Caymmi, Edu Lobo, Francis Hime, Cristóvão Bastos, João Nogueira, Mauro Duarte, Theo de Barros, muitas pessoas.
Passei depois para a geração seguinte à minha, hoje a mais atuante: Luciana Rabello, minha mulher, Raphael Rabello, irmão dela, Maurício Carrilho, Sérgio Santos, Vicente Barreto, Lenine. Agora estou na quinta geração, compondo com garotos bem mais novos. Estou até fazendo músicas com os dois filhos do Baden, que são músicos, um é violonista e o outro pianista. O filho do João Nogueira também é meu parceiro hoje, todos com pouco mais de 20 anos de idade. Recentemente comecei uma parceria com um músico paulista chamado Breno Ruiz, que tem 19 anos, é o parceiro mais novo que eu tenho. Tudo sempre aconteceu por acaso. Fui fazendo músicas com algumas pessoas e conhecendo as outras através dos próprios parceiros. Sempre fui muito fértil para compor, fiz muita coisa. Conforme conhecia as pessoas e me tornava amigo, me tornava também parceiro.
Tenho parceiros em vários estados do Brasil, faço com eles a música de seus lugares, com Sérgio Santos faço a música mineira, com Edil Pacheco, a da Bahia, com Sivuca fiz as músicas do Nordeste, com Lenine faço os maracatus. Tenho um parceiro acriano, o Sérgio Souto, com quem já compus uma obra grande. O leque brasileiro é grande e essa linguagem eu domino, por isso a facilidade no trabalho. Desde que comecei, me voltei completamente para a música do nosso País, que muitas vezes o próprio brasileiro não conhece. No Brasil há uma infinidade de ritmos diferentes, pouco conhecidos, o brasileiro está mais interessado no que vem de fora, eu me voltei para o que vem daqui. Essas linguagens gerais brasileiras, de todos os lugares, eu conheço bem.
Criação solitária
Atualmente tenho feito mais músicas sozinho, principalmente nesse meu último disco, O Lamento do Samba, lançado pelo selo Quelé. É um disco solitário, não tenho parceiros, as músicas e letras são todas minhas, só dedico esse trabalho, na contracapa, a meus parceiros que já faleceram, e na última década foram vários. Aprendi muito com eles, musicalmente falando. Isso não me dá tristeza, não, mas dá saudade. No caso de muitas das minhas músicas com o João Nogueira, o Mauro Duarte ou o Baden, eu já levava a idéia musical, e o grande lance era juntar as idéias para desenvolver a melodia. Como fui perdendo parceiros, nos momentos em que a inspiração vem, hoje, penso no parceiro para quem eu me dirigiria e ele não está, me dá saudade, acabo fazendo sozinho, não procuro os mais novos nesses casos. Como falei, não chega a ser uma tristeza, mas sempre bate uma grande saudade.
Por outro lado, também não é estranho para mim compor sozinho. Na verdade eu comecei sozinho, fazendo música e letra. E, à medida que fui ficando amigo e parceiro de tanta gente, fui me anulando, deixando de fazer o que fazia antes para ter o prazer de fazer junto, é como casamento. Nesta última década, em que morreram muitos parceiros, passei a fazer tanta música quanto no começo de minha carreira. Quando fui organizar minhas últimas composições, percebi que tinha mais de 100 músicas sem parceiro, até me espantei com o número, nem sabia que eram tantas. Ultimamente tenho feito, até pela falta que eles me fazem, muita coisa sozinho. Parte de minha obra está crescendo apenas comigo mesmo.
O futuro das grandes gravadoras
Não creio que as gravadoras desapareçam, mas as multinacionais do disco irão se afastar. Elas têm outros produtos para comercializar além de disco. A revolução tecnológica já mudou o mercado da música. Existem novas formas de comercialização e distribuição, existe a internet. A produção de uma gravadora multinacional hoje é muito pequena em relação às gravadoras menores e independentes. No ano passado, o que as gravadoras grandes fizeram de produção não chega a 10% do que as pequenas produziram. As multinacionais fazem, hoje, produto de mercado e não arte, diferente das gravadoras pequenas e independentes. A produção de música brasileira no último ano não teve 10% de trabalhos com multinacionais envolvidas. Fiz parte do júri de seleção do Prêmio TIM, o antigo Prêmio Sharp, e recebi mais de 500 CDs. Foram cinco meses para ouvir tudo. Pouca coisa dos grupos multinacionais prestava, o que tinha de melhor vinha dos independentes e das gravadoras menores. Por todas as tecnologias novas de hoje, as grandes gravadoras vão acabar se afastando completamente, não que o disco vá acabar, mas as pequenas e as independentes é que continuarão produzindo, as grandes perderão o interesse. E isso porque elas querem abarcar um mercado muito extenso. Na época em que comecei a gravar com a Odeon, uma das maiores, eles tinham mais de 90 artistas fixos, um número grande e de muita qualidade, incluindo todos os segmentos do mercado. Hoje no chamado casting de uma multinacional, se houver 20 artistas é muito. Elas não investem mais nem no produto nacional. Hoje o interesse está naqueles que vendam mais de 1 milhão de cópias. Ou seja, para gravar em uma multinacional a pessoa tem de ser conhecida, mas para alguém ser conhecido tem de gravar antes. O Milton Nascimento até já falou uma vez que, se ele estivesse começando hoje, teria de gravar em uma “pequenininha” – ou em casa –, porque ele só passou a ser conhecido depois do quarto disco pela Odeon. E uma multinacional hoje não esperaria esse tempo.
No entanto, no decorrer desse caminho o artista começou a investir em si mesmo, a não deixar nada na mão de outras pessoas. Ele passou a ser também um homem de escritório, o que eu acho que vai acontecer futuramente. As pessoas farão seus discos em casa e comercializarão sem a interferência de nenhuma gravadora. Os suportes serão outros, não o CD ou o LP, essa mudança é a tendência do sistema fonográfico mundial hoje. Com a troca de arquivos de música na internet [chamados MP3], o autor está perdendo dinheiro. De repente, ele não poderá mais viver de música, afinal qualquer um, hoje, chega em casa e faz no computador um CD com as músicas que quer, é menos um disco que alguém vende. A relação de leis para regular tudo isso terá de mudar, por isso que eu acho que as gravadoras grandes não vão mais produzir discos.
Paulo César Pinheiro se apresentou no Sesc Pompéia nos dias 18 e 19 de setembro