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Ficção Inédita

Postado em 01/08/2005

Ronaldo Correia de Brito

Ilustração: Marcos Garuti

 

(A lâmpada pendurada no teto balança ao gosto do vento. Na luz fraca, é possível enxergar frases e desenhos rabiscados nas paredes. Tudo em volta cheira a esgoto. Os músculos se crispam em contrações, tentando romper as ataduras que aprisionam o corpo. Sem peias, os pensamentos vão e voltam, em ondas que lembram o mar. A praia com o seu farol, uma lâmpada que apaga e acende.)

 

– Tia Licou, se apresse, eles não passaram ainda. Deixe que eu armo a mesinha de trabalho. Cuidado com meus papéis, senão eles voam! Fique com a cesta de piquenique, mas não comece a comer. Você está muito gorda, mal consegue andar. Tem que fazer dieta.

 

Viu a última Libertad que pintei? Está igual às outras. Já sei o que você vai dizer: que mamãe não tinha o queixo tão quadrado. Esqueça o queixo.

 

Papai podia vir com a gente. Ia ser bom pra saúde dele. O vento puro do mar faz bem aos pulmões.

 

Corra, tia Licou, senão você perde! São eles, pontualmente. Veja se não é fantástico. Parecem urubus. Não fosse pelas toalhas brancas e pelas saboneteiras cor-de-rosa que carregam... Vou atrás deles. Padre Climério! Padre Climério! Sou eu, Marivaldo. Toda vez que o senhor passa com os seminaristas para a piscina do bispo, eu corro para ver. Sei que é tolice, mas fico impressionado com essa fila de batinas pretas. O que acontece quando vocês chegam ao balneário? Como é que padres tiram a roupa?

 

Ah, ah, ah...

Não leve a mal, é brincadeira minha. Se tia Licou escutasse, me chamaria de blasfemo. Mas ela é surda, não ouve nada. Padre Climério, o senhor tem rezado as missas de minha mãe? Eu não acredito que adiantem alguma coisa. Mas ela gostava de missas. O que posso fazer? Seja feita a vontade dela.

 

Eu continuo pecador. Qualquer dia pinto um retrato dos senhores, descendo a ladeira do seminário. Não me excomungue! Tenho medo do inferno!

 

Ah, ah, ah...

 

Sou uma ovelha desgarrada! Bé, bé, bé... Imagino vocês lendo os breviários e urubus cagando nas páginas de letras miúdas.

 

Passaram. São uns idiotas. Ainda vivem sob a tirania do pecado.

 

Tia Licou, você não perde tempo! Comeu todos os sanduíches e não deixou nada para mim. Só o trabalho. Não faz mal. Venho aqui para pintar.

 

Ninguém me encomenda outra coisa. A Santa Inês com a Palma está perdendo o brilho e nem olham. Parei o Jesus no Monte das Oliveiras porque não se interessam por ele. Naturezas-mortas?  Nem penso em começar. Para quê? É uma obsessão. Só querem as minhas Libertad em fuligem de candeeiro. Parece castigo.

 

Mamãe, mamãe! É você? É você que eu sei. Ouço sua voz cantando as canções de Libertad Lamarque e lembro um filme com Joselito. A mãe perdia o filho e procurava enlouquecida. Uns bandoleiros tinham raptado a criança.

 

“Meu filho! Onde está meu filho? Quem o tirou de mim? Como existe alguém capaz de roubar o coração de uma mãe? Bandidos cruéis!”

 

Mamãe! Mamãe, você está aí?

 

Todas as manhãs eu colhia o orvalho do seu sorriso. Era a primeira a dizer: bom-dia, filhinho. Contava os passos que dávamos juntos, indo à escola. Recontava os mesmos passos quando voltávamos para a nossa casa. “A professora tratou-o bem, filhinho? Você acertou as tarefas de classe?”

 

Mamãe, mamãe, não me torture! Basta esse maldito retrato de Libertad Lamarque. Bastam seus discos de Orlando Silva, suas revistas Capricho, essa tralha de papel e cera que carrego comigo. Mamãe, me deixe em paz! Vá descansar, como todas as mortas descansam!

 

“Não! Não! Não levem meu filho. Ele é meu. Não o levem para morrer na guerra. Eu não o criei para ser morto com um tiro. Eu não quero uma medalha de ouro. Eu quero meu filho, junto do meu peito.”

 

Mamãe, pare com esse dramalhão mexicano! Eu não suporto mais.

 

Silêncio en la noche

Ya todo está en calma...

 

Mamãe, não precisa apelar tanto. Eu não suporto essa música. Dilacera o meu coração.

 

Tia Licou, você não faz nada por mim? Empanturra-se de sanduíches e basta isso pra viver? Sente inveja porque mamãe era bonita e você é feia. Ninguém tem culpa de nada. Eu só quero terminar esse retrato e garantir meu sustento. Não sei o que as pessoas vêem nele. Acho que é a minha infelicidade. Por que não pedem que eu pinte outra coisa? Sou um pintor de talento. Mas só querem Libertad, Libertad! Não sou responsável pela morte de mamãe. Eu estava no Jeep, no passeio para a praia. Escapei do acidente por acaso. Antes tivesse morrido junto com ela. Papai e você estão vivos e não sentem o remorso que eu sinto. Por que vocês me levaram para vê-la morta no caixão? Eu preferia lembrá-la viva. Foi crueldade comigo. Eu era uma criança, ainda.

 

A campainha do sorveteiro. Aqui! Eu quero! Você, não! Não deixo você comer mais nada, hoje.

 

Vá embora! Escureceu. Este lugar, à noite, não presta para mulheres. É suspeito. Leve minha bicicleta, a mesa e os papéis.

 

Ela foi. Melhor assim. Armando! Armando, sou eu, Marivaldo! E aí, ganharam a partida? Não pude ir. Tenho uma encomenda de cinco retratos. Vá! Estou, sim. Depois das 10. Papai dorme cedo. Bata na janela. Até!

 

No começo era difícil vir para cá. Nesta hora as ruas ficam desertas. Mas ninguém repara num sujeito como eu.

 

Perdi a conta das Libertad que pintei. É fácil preparar a fuligem. Pego um prato de louça branca, acendo um candeeiro a querosene e aproximo a chama do prato. Em pouco tempo a fuligem se forma. Com um pincel, retiro a fuligem e pinto. As minhas Libertad Lamarque nascem das chamas que queimam. O vermelho-vivo se transforma em preto, a vida em morte.

 

Plegaria que llega a mi alma

Al son de lentas campanadas...

 

Não foi difícil descobrir mamãe em Libertad. Também não tem sido difícil descobrir Libertad em mim. 

Si yo tuviera un corazón,

El corazón que di.

 

Eu não tinha mudado a voz, nem tinha o primeiro buço, quando vi Libertad em minhas mãos. No jeito de segurar uma xícara, na maneira delicada de passar os dedos entre os cabelos. Papai me batia a cada gesto que me escapava. Completei 11 anos quando mamãe morreu.

 

O farol está para acender. É como a luz de um projetor de cinema. Mamãe me levava para ver todos os filmes de Libertad Lamarque. Papai não gostava de cinema e não queria ir com ela. Eu cochilava nas sessões noturnas.

 

“Acorda! Escuta ela cantando. Que emoção forte. Acho que vou chorar.”

 

Eu também chorava. Não podia vê-la chorar daquele jeito, possuída de uma dor tão funda. O que ela sentia eu ainda não sei.

 

Gosto de meias finas. Mas é preciso cuidado com as unhas, para não puxar os fios. Adoro batom vermelho, peruca loura, sandálias altas. 

 

Ninguém mais ouve Libertad, nem assiste a seus filmes.

 

Si yo tuviera un corazón...

 

Mamãe colecionava todos os discos, os recortes de jornais e revistas. Copiava os vestidos, o cabelo, a maquiagem, os cílios postiços. Tinha o mesmo acento de voz, o modo de sentar, o jeito de rir. Tratava meu pai como se estivesse contracenando com ele num filme famoso. E a mim, como o filho que Libertad perdeu numa película da qual esqueci o nome.

 

Passo os dias escutando discos velhos, folheando revistas amareladas, pintando um mesmo retrato em fuligem de candeeiro. Sou capaz de fazer o retrato de Libertad de olhos fechados. Aqui, os cabelos pretos e sedosos. Aqui, os olhos castanhos. Os lábios finos, o nariz afilado, a pele de cetim. E o queixo, onde sempre erro e me perco. Nessa curva eu me extraviei. O Jeep derrapou na estrada e a cabeça de mamãe... Meu Deus, que tormento é lembrar isso todos os dias.

 

Si yo tuviera un corazón...

 

Estou pronto para mais uma noite. Apaguem o farol!

 

Silêncio en la noche

Ya todo está en calma...

 

Libertad Lamarque. Libertad.

Libertad sou eu.

 

 

 

(Antes que a luz fosse apagada, traziam a injeção. Depois, tudo se perdia no escuro dos medicamentos sem sonhos.)

 

Ronaldo Correia de Brito é autor de Livro dos Homens Cosac & Naify, 2005)

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