Postado em 01/08/2005
Adotada e proclamada numa assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que passou a reconhecer “a dignidade inerente a todos os membros da família humana” – como se lê em seu texto de abertura –, teve seu significado no mundo de hoje posto em discussão num encontro realizado com especialistas, em julho, no Sesc Vila Mariana. Aqui no Em Pauta, a reflexão continua em artigos inéditos escritos pelo cientista político Emir Sader e pela procuradora do Estado e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana Flavia Piovesan.
Ilustração: Marcos Garuti
Apesar das medidas tomadas, das preocupações disseminadas e dos debates sobre o tema, por que a situação dos direitos humanos continua a não ser positiva? Por que a violência continua a estender-se? Qual a eficiência das políticas de direitos humanos e das campanhas contra a violência?
Os direitos humanos estão na contramão dos modelos hegemônicos hoje no mundo. A hegemonia liberal e neoliberal privilegia as “oportunidades” no lugar dos direitos. Pois só o marco teórico e político geral já não favorece os que lutam por direitos, de qualquer ordem – econômicos, sociais, culturais.
O neoliberalismo transformou-se em uma máquina de expropriar direitos, em todas as áreas. A afirmação dos direitos humanos não está isenta disso. Somente um Estado que assuma a responsabilidade pela afirmação dos direitos pode se ocupar plenamente também dos direitos humanos. Em primeiro lugar, porque atualmente a definição dos direitos humanos é integral, não se restringe à proteção das pessoas em sua integridade física. A dignidade humana requer o atendimento de direitos essenciais, como habitação, saúde, educação, informação, lazer, direito de organização e de expressão, entre outros.
Por que esses direitos estão na contramão do mundo contemporâneo? Porque as sociedades contemporâneas são regidas, em sua quase totalidade, pela busca do lucro, do dinheiro, do ganho. Falar de sociedades centradas no mercado significa isso. O mercado é regido pela competição, em que ganha quem dispuser de maior quantidade de recursos, de melhor formação – em suma, de condições adquiridas pelos que já partem de situação vantajosa. Ganha quem dispõe de melhores condições materiais.
O mercado não reconhece direitos, apenas a competição. É o mundo das “oportunidades”, numa disputa totalmente desigual, pela desigualdade de condições – ainda mais em um País como o nosso, conhecido como o que pior distribui seus recursos materiais e espirituais entre a população. Quanto mais uma sociedade for fundada por valores mercantis, menos respeitará os direitos humanos.
A retração do Estado e principalmente sua financeirização – isto é, sua subordinação absoluta ao pagamento de suas dívidas financeiras – abala fortemente a possibilidade do respeito, do reconhecimento e da garantia de qualquer tipo de direito, incluídos os direitos humanos. Porque o Estado – e, dentro dele, a esfera pública – é o espaço de reconhecimento desses direitos, um espaço particularmente afetado pelos cortes de recursos impostos pelos ajustes fiscais – instrumentos implacáveis da prioridade da estabilidade monetária sobre as políticas sociais.
Não haverá consolidação dos direitos humanos sem um Estado democratizado, sem um Estado em que suas decisões essenciais sejam definidas ou ratificadas por plebiscitos e referendos, sem que o pagamento dos impostos e sua redistribuição sejam feitos por formas de orçamento participativo, em que a cidadania organizada decide sobre as prioridades de aplicação dos recursos.
Uma sociedade centrada no mercado, isto é, em critérios mercantis, está de costas para o aniquilamento de jovens pobres, negros e mulatos todas as semanas, na periferia de nossas grandes cidades, porque não há lugar para eles no “mercado”. Eles não serão nem os trabalhadores altamente qualificados do futuro – para os trabalhos mal qualificados já existe a garantia de mão-de-obra mais do que suficiente –, nem os consumidores sofisticados do futuro, nem os técnicos do mercado financeiro ou das grandes corporações multinacionais. Por isso são dizimados sistematicamente sem que exista um escândalo social e midiático para cada chacina.
Os direitos ou existem para todos, ou são privilégios reservados a alguns contra outros. Para isso, somente se tivermos uma democracia com alma social, em que a função essencial do Estado é a de garantir os direitos de todos e não servir de suporte para a acumulação privada de capital. Um Estado privatizado é inimigo dos direitos, porque voltado para as minorias.
Essas minorias se valem cada vez menos das políticas sociais: usam educação privada, saúde privada, correios privados, segurança privada, transporte privado – dessolidarizando-se totalmente da massa da população, não se interessando em pagar impostos. Ao contrário, o mais útil instrumento de campanha eleitoral é a promessa de diminuir impostos. Sem que se esclareça que a grande massa de impostos pagos é canalizada para o pagamento dos juros da dívida e não para fortalecer políticas sociais, qualificar melhor os funcionários públicos, remunerá-los melhor.
Os direitos humanos dependem, assim, no mundo atual, do fortalecimento da esfera pública, dos interesses públicos, da consciência pública, contra o espírito mercantil que prima hoje em sociedades como a nossa.
por Flavia Piovesan
Como afirma Norberto Bobbio [filósofo italiano nascido em 1909 e morto em 2004, autor de vasta obra sobre o que chamava de socialismo liberal], enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer. Não nascem todos de uma vez nem de uma vez por todas. Para Hannah Arendt [filósofa alemã nascida em 1906 e morta em 1975, em cuja obra se destacam seus estudos sobre o totalitarismo], os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social.
À luz da historicidade dos direitos humanos, destaca-se a Declaração Universal [dos Direitos Humanos] de 1948, que, em resposta à ruptura decorrente das atrocidades e da barbárie totalitária, invoca o horizonte civilizatório da reconstrução dos direitos humanos. Consagra, assim, a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos. Deste modo, responde a três indagações cruciais aos direitos humanos: Quem tem direitos? Por quê? Quais direitos?
Ao sustentar a universalidade dos direitos humanos, a Declaração de 1948 clama pela extensão universal desses direitos, sob o fundamento de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade.
Ao sustentar a indivisibilidade dos direitos humanos, a Declaração ineditamente estabelece que a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais, e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.
Todavia, a ordem contemporânea assinala sete desafios centrais à implementação dos direitos humanos:
– universalismo vs. relativismo cultural (o que traduz o questionamento acerca do próprio fundamento dos direitos humanos e da existência de um mínimo ético irredutível; isto é, se a fonte dos direitos humanos é a dignidade humana ou é a cultura);
– laicidade estatal vs. fundamentalismos religiosos (debate que impacta, sobretudo, os direitos humanos das mulheres, no que se refere à sexualidade e à reprodução);
– direito ao desenvolvimento vs. assimetrias globais (em um mundo em que 85% da renda mundial concentra-se em poder dos 15% mais ricos, enquanto os 85% mais pobres retêm apenas 15% da renda mundial);
– proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais vs. desafios da globalização econômica (o que aponta para o temerário processo de flexibilização dos direitos sociais e de redefinição de políticas públicas em uma ordem acentuadamente assimétrica);
– respeito à diversidade vs. intolerâncias (o que implica o desafio de assegurar a igualdade com respeito à diferença e às diversidades);
– combate ao terror vs. preservação de direitos e liberdades públicas (o que acena para os desafios da agenda pós-11 de setembro, tendencialmente restritiva dos direitos humanos);
– e unilateralismo vs. multilateralismo (em uma ordem marcada pela existência de uma única superpotência mundial e pelo esforço de resgate de organismos multilaterais).
Se os direitos humanos não são um dado, mas um construído, há que se ressaltar que as violações a esses direitos também o são. Isto é, as violações, as exclusões, as discriminações e as intolerâncias são um construído histórico a ser urgentemente desconstruído. Há que se assumir o risco de romper com a cultura da “naturalização” das desigualdades e das exclusões, que, enquanto construídos históricos, não compõem de forma inexorável o destino da humanidade. Há que se enfrentar essas amarras, mutiladoras do protagonismo, da dignidade e da potencialidade de seres humanos.
Neste cenário, emerge o desafio de fortalecer o estado de direito e a construção da paz nas esferas global, regional e local, mediante uma cultura de direitos humanos, enquanto racionalidade de resistência e única plataforma emancipatória de nosso tempo.