Postado em 01/08/2005
Em conversa com a Revista E, no camarim do espetáculo que apresentou no Sesc Pinheiros, o compositor Moacir Santos falou de sua infância e de seus trabalhos
A história do músico Moacir Santos é daquelas que qualquer bom roteirista de cinema gostaria de escrever e que cairia rapidamente no gosto do público. Nascido em 1924, o menino pobre do sertão nordestino tornou-se um dos mais respeitados compositores brasileiros. Órfão desde os 2 anos, o músico foi adotado por uma família com quem viveu até os 14, quando decidiu fugir da violência doméstica. Pôs, então, o pé na estrada, até chegar a João Pessoa, Paraíba, onde se tornou líder da jazz band da Rádio Tabajara, no início da década de 40 uma das mais importantes do Brasil. Seguiu para o Rio de Janeiro e, tempos depois, tornou-se maestro da Rádio Nacional. Foi quando veio a fama entre a nova geração de músicos cariocas dos anos 60, que o elegeu patrono da bossa nova e o fez se tornar mestre de nomes como Nara Leão e Baden Powell.
Só que uma viagem aos Estados Unidos, em 1967, capturou Moacir de vez para o estrangeiro. Foi descoberto pelo pianista Horace Silver, ex-parceiro de Miles Davis e Stan Getz, e por lá ficou. Nos EUA, recebeu uma indicação ao Grammy, espécie de Oscar da indústria fonográfica norte-americana, pelo disco Maestro, e trabalhou com Henry Mancini, famoso compositor de trilhas sonoras, entre elas a de A Pantera Cor-de-Rosa (1964), com Peter Sellers, e de Bonequinha de Luxo (1961), com Audrey Hepburn. Uma das poucas vezes em que Moacir voltou ao Brasil foi em 1985, para, com Radamés Gnattali, abrir a primeira edição do extinto Free Jazz Festival. “Ainda morava em João Pessoa quando ouvi pela primeira vez o jazz norte-americano. Pensei que os músicos eram de outro planeta. Foi por isso que eu quis ir morar lá”, contou ele numa conversa no camarim depois do show Ouro Negro, no Sesc Pinheiros. A apresentação rendeu um DVD e um especial para o Canal Brasil, previsto para ir ao ar em setembro. O show foi uma das realizações de um projeto que começou em 2001, quando os produtores Mário Adnet e Zé Nogueira resgataram parte da obra do compositor para lançamento do CD Ouro Negro, que tem a participação de músicos como João Bosco, Ed Motta e Djavan. O mergulho na trajetória do compositor, marcada por influências do jazz, das trilhas de filmes hollywoodianos e da música africana, resultou em 28 faixas escolhidas para mostrar ao público brasileiro a versatilidade e a grandeza dos arranjos feitos durante a carreira do mestre. A seguir, os principais trechos do depoimento:
Minha mãe morreu quando eu tinha 2 anos. Fui adotado por uma mulher que me batia muito – e o pior era que eu mesmo tinha de ir buscar a peia para apanhar. Até que, um dia, aos 14 anos, li um livro de poesia. Foi quando criei coragem para não ir buscar a peia e fugir. Apesar dessa infância complicada, algumas coisas muito boas aconteceram nessa época. Uma delas foi que essa mulher me matriculou na escola. A outra foi que em Flores, cidade onde cresci, em Pernambuco, eu não perdia um ensaio da banda local. Bastava os músicos pararem para um intervalo e lá estava eu mexendo nos instrumentos. Só de encostar eu sentia uma espécie de choque, o que devia ser um sinal de tudo que viria pela frente. Toda vez os músicos me repreendiam, mas eu não sentia a mínima vergonha das broncas que levava por mexer nos instrumentos e continuei a freqüentar os ensaios. O resultado foi que um dos rapazes da banda sugeriu que eu tomasse conta de tudo, enquanto eles paravam para o café. Como vigia, eu podia experimentar todos instrumentos e acabei aprendendo a tocá-los. Já havia aprendido um pouco de música na escola, uma experiência somou-se à outra e, aos 10 anos de idade, compus Apanhando Feijão, minha primeira canção.
Alguns anos depois de fugir de casa, soube que a banda da Polícia Militar de João Pessoa estava precisando de músicos. Então, resolvi me candidatar. Nessa época, eu carregava o sobrenome Silva, mas meu irmão, que já morreu, disse que Silva não era um bom nome, então resolvemos trocar para Santos e assim ficou. Fiquei por dois anos na Polícia Militar e depois fui integrar a jazz band da Rádio Tabajara como clarinetista. Em 1948, deixei João Pessoa e fui morar no Rio de Janeiro, onde inicialmente fui contratado como músico da orquestra da Rádio Nacional e, depois, fui promovido a maestro. Trabalhei por quase 20 anos na Nacional, fui maestro na TV Record e depois iniciei uma nova fase em minha carreira, quando passei a compor trilhas para filmes. Uma delas fiz para o filme Amor no Pacífico, uma produção norte-americana da década de 60. Esse trabalho mudou minha vida. Alguém do governo brasileiro soube que a cerimônia de lançamento do filme seria na Califórnia, e o Itamaraty me deu uma passagem para eu assistir à estréia do filme lá nos Estados Unidos. Só que, quando cheguei lá, percebi que os melhores músicos do mundo estavam ali. Não voltei mais.
Percebi que lá tem um lugar para mim e nunca pensei em voltar para o Brasil. Venho apenas de vez em quando, mas não fico satisfeito com o que vejo.