Postado em 01/01/2005
Apesar da morte precoce, o compositor Noel Rosa deixou uma obra vasta que, ainda hoje, continua iluminando o cenário musical brasileiro
No Rio de Janeiro do início do século 20, quem não se encontrava num misto de curiosidade e medo pela passagem do cometa Halley temia a rebeldia dos marinheiros cariocas contra o governo, episódio conhecido como Revolta da Chibata. É nesse momento fervilhante pelo qual passava a então capital federal que se deu o nascimento de um dos mais importantes sambistas do País. Noel de Medeiros Rosa nasceu em 10 de dezembro de 1910, de parto difícil. A violência do fórceps usado pelo médico para conseguir trazer o bebê ao mundo lhe quebrou o maxilar para sempre. A fatalidade se tornou uma das marcas de Noel. Mas, claro, não tão destacada quanto seu talento como compositor, o olhar ácido sobre a sociedade e o tratamento dado ao amor, tema recorrente que, em geral, expõe a perspectiva de um homem com falta de sorte com as mulheres.
A família de classe média, de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, queria que Noel Rosa, como quase todo moço de boa família da época, escolhesse entre medicina e direito para profissão. O rapaz tentou seguir a tradição e iniciar-se nos segredos do bisturi, mas de médico mesmo não tinha nada. A falta de interesse pelos enfermos era diretamente proporcional ao anseio pelos prazeres notívagos. E a Vila Isabel era pura boemia. Em 1929, ele, Almirante e João de Barro, o Braguinha, formaram o Bando dos Tangarás. O grupo tocava basicamente cantigas de inspiração nordestina, em alta na época. Além deles, circulavam pelos botecos do bairro outros nomes que também se tornariam famosos na música brasileira, entre eles Lamartine Babo, Francisco Alves e Orestes Barbosa. Com essa freguesia de primeira, era só puxar a cadeira e ver o samba nascer. Foi assim que a vila ganhou reputação de terra do samba. Pouco tempo depois, Cartola também passaria a conviver com o ex-aspirante a médico. De 1930 até 1937, quando morreu, aos 27 anos, vítima de tuberculose, Noel Rosa compôs sem parar e tornou-se a estrela maior de quase todos aqueles Carnavais.
Mesmo sem nem sequer ter completado a terceira década de vida, o sambista deixou cerca de 230 canções, gravadas pelos mais consagrados cantores de sua época. Além da sambista Aracy de Almeida, que foi sua intérprete favorita, a lista inclui Silvio Caldas, Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda, Aurora Miranda, Marília Baptista, Elizeth Cardoso, João Nogueira e Jamelão. Gravações mais recentes, realizadas na última década, ficaram a cargo de Vânia Bastos, Ná Ozzetti, Johnny Alf e Gilberto Gil, que emprestou a voz à famosa Com Que Roupa? (1929), um dos maiores sucessos de Noel, criado quando tinha apenas 20 anos e que faz, no refrão, a célebre pergunta: “Com que roupa eu vou/ao samba que você me convidou?”.
Seu trabalho ainda hoje é apontado por artistas e intelectuais como um dos mais relevantes para a formação do cenário musical brasileiro. Muitos dos elogios foram reunidos em Noel Rosa – Uma Biografia (Editora Universidade de Brasília, 1990), escrita por João Máximo e Carlos Didier. Para o escritor Millôr Fernandes, por exemplo, o compositor carioca é um marco fundamental da música brasileira. “Letras de simplicidade absoluta, fazendo uso da palavra com propriedade extraordinária. Humor excepcional, espontâneo, sem armação. É a cultura popular autêntica.” Já o compositor Aldir Blanc, autor de O Bêbado e a Equilibrista, destaca a atualidade das letras. “É o mais moderno dos compositores brasileiros”, afirma. Aracy de Almeida, que nos anos 30 explodiu nas rádios, gravou dois discos apenas com canções de Noel. “Apesar da minha pouca idade, para mim ele era um fenômeno”, afirma nas páginas da biografia. “Passei a andar atrás dele porque estava interessada em aparecer – quando você tem pouca idade acredita nessas besteiras. Ele pegava a viola e eu cantava, em casas suspeitas, atrás do mangue, no baixo meretrício. Sua voz era fraca e ele estava a fim daquelas mulatas. Os dias em que convivi com Noel nessa terra foram muito engraçados.”
Em 1934, Noel Rosa compôs Rapaz Folgado, em resposta a Lenço no Pescoço, do também jovem sambista Wilson Batista. Em seguida, criou Feitiço da Vila, a qual Wilson respondeu com Frankstein da Vila. A réplica veio em seguida com Palpite Infeliz. A polêmica se encerra com a letra de Terra de Cego, de Batista. O que todos estranhavam na batalha musical travada entre os dois era o fato de Noel criticar a figura do malandro cantada por Wilson. Justo ele, amante da boemia. Por fim, descobriu-se que, na verdade, o que havia entre os dois não era exatamente uma divergência de tons. A rixa era causada por uma mulher. Noel havia perdido a namorada para Wilson. Só depois desse episódio Noel conheceu o grande amor de sua vida, a dançarina Juraci Correia de Moraes, que tinha apenas 16 anos. A moça serviu de inspiração para pelo menos oito sambas, entre eles Último Desejo (1937), considerado uma jóia do cancioneiro brasileiro. Com o fracasso do romance com Juraci, Noel se casou em dezembro do mesmo ano com Lindaura Martins.
Duas peças radiofônicas escritas por Noel Rosa chegam pela primeira vez aos palcos em forma de opereta
Foi por vontade de conhecer as origens do samba que o inevitável aconteceu a um grupo de jovens atores paulistanos: deram de cara com Noel Rosa e não o soltaram mais. Em 2003, no Teatro Martins Penna, no bairro da Penha em São Paulo, o grupo Teatro de Narradores reunia-se para realizar um projeto que envolvesse teatro e samba. Conseguiram juntar não somente as duas formas de expressão, mas ainda várias outras pessoas interessadas em viajar até as raízes da música brasileira. Esse encontro originou o grupo Cia. Domínio Público, formado por 13 atores e quatro músicos. “Encontramos Noel e nos apaixonamos”, conta o pesquisador musical Heron Coelho, um dos novos agregados do grupo. “É impressionante como são atuais e mordazes suas letras. Noel é o Chico Buarque dos anos 30.” O entusiasmo pela vida e obra do músico os levou a uma preciosidade: duas peças radiofônicas escritas por ele, trabalhos que serviram de base para o espetáculo Operetas de Noel Rosa, apresentado no Sesc Ipiranga em dezembro.
Pouca gente conhece o lado dramaturgo de Noel Rosa, faceta que veio à tona em sua produção numa época já muito próxima da morte, em 1937. As obras não são inéditas, mas nunca haviam sido levadas ao palco. Escritas em 1935, O Barbeiro de Niterói, paródia a O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, e O Ladrão de Galinhas foram resultado das atividades do compositor na Rádio Clube do Brasil. Nesse período produziu, a convite do parceiro e amigo Almirante, esquetes, paródias e essas duas revistas radiofônicas, com a intenção de criar uma espécie de “ópera-bufa carioca”.
Por pouco essas “operetas” não se perderam. O responsável pelo seu quase resgate foi um professor de biologia apaixonado por Noel. Omar Jubran pesquisou, recuperou e remasterizou toda a obra do compositor durante 11 anos. O resultado foi a coleção de 14 CDs lançada em 2000 pela Funarte, em parceria com a gravadora Velas, que reúne as composições de Noel. “Graças a esse trabalho conseguimos montar o espetáculo”, enfatiza Heron Coelho.