Postado em 01/04/2005
A Organização das Nações Unidas escolheu 2005 como o Ano Internacional da Educação Física e do Esporte, considerados grandes aliados na luta contra a exclusão social e a violência. No mês de abril, o Sesc e o Sesi São Paulo, o British Council, a Unesco, as secretarias municipais de Esporte, Lazer e Recreação de São Paulo e Osasco, e o Ministério dos Esportes organizam o seminário Esporte, Lazer e Juventude – Identidade Cultural e Aprendizagem Social para refletir sobre novas ações na área. A discussão segue no Em Pauta desta edição com artigos exclusivos da diretora técnica da Unesco no Brasil, Marlova Noleto, e do professor da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Esef/UFRGS) Alex Branco Fraga.
Prática física e cultura juvenil contemporânea
por Alex Branco Fraga
“Como restaurar e promover o caráter lúdico e gregário da prática de atividades físicas e de lazer?” Esta me pareceu a questão mais apropriada, entre as que me foram propostas pelo Conselho Editorial da Revista E, para discorrer de forma breve acerca de alguns significados que permeiam as práticas corporais da juventude contemporânea. A questão toca num dos dilemas do campo da promoção da atividade física: cada vez mais aumenta a concordância geral acerca da importância de uma vida fisicamente ativa para a saúde, mas ao mesmo tempo parece que a prática física promovida vem “perdendo a graça” e deixando de ser um elemento de agregação social – fenômeno que me parece menos ligado à atividade efetivamente realizada pela população jovem nos espaços de lazer e muito mais aos significados atribuídos ao termo atividade física no âmbito da promoção da saúde.
Associações entre atividade física e saúde geral são tão antigas quanto a própria civilização. Práticas como o tai chi chuan na China e a ioga na Índia, hoje consideradas capazes de produzir efeitos fisiológicos benéficos à saúde, já compunham os princípios do bem viver coletivo milênios antes de Cristo (USDHHS, 1996). Para as chamadas “ciências do movimento humano”, contudo, somente em meados dos anos 50 do século 20 foi possível verificar que o baixo nível de atividade física influenciava negativamente no desenvolvimento de doenças degenerativas. Nessa época, prevalecia a idéia de que somente através de atividades físico-desportivas de intensidade elevada era possível obter uma condição saudável.
É em 1995, quando o texto com as recomendações referendadas de forma conjunta pelos Centers for Disease Control and Prevention (CDC) e American College of Sports Medicine (ACSM) foi lançado nos Estados Unidos, que a concepção de atividade física considerada benéfica à saúde muda. Deixam de ser necessárias três sessões de 50-60 minutos por semana de exercícios físicos dispendiosos, extenuantes e muitas vezes traumáticos para se obter uma vida saudável: a partir de então, basta acumular 30 minutos de atividade física de intensidade moderada ao longo do dia, que podem ser fracionados em até três períodos de dez minutos, preferencialmente todos os dias da semana, contabilizando um gasto energético mínimo de 2 mil calorias semanais, para que se adquira proteção adicional à saúde.
Tal meta pode ser atingida subindo-se e/ou descendo escadas, caminhando, fazendo alongamentos na fila do supermercado, passeando com o cachorro, descendo do ônibus dois pontos antes do destino e percorrendo o trajeto a pé, jardinando, varrendo a casa etc., ou seja, a atividade física necessária para a manutenção da saúde passa a estar ao alcance de cada um de nós em meio às tarefas rotineiras. A quantidade de atividade física acumulada ao longo do dia é mais importante do que a maneira como ela é realizada. Já não se restringe apenas à prática esportiva ou à realização de exercícios físicos, não depende de equipamentos específicos ou profissionais especializados, mas, sim, da conscientização geral sobre a importância do gasto energético produzido pela movimentação corporal diária e da responsabilidade de cada um em dar conta de sua própria condição física.
Essa maior valorização das atividades físicas moderadas está intimamente ligada à ascensão do sedentarismo no conjunto de fatores de risco modificáveis (tais como fumo, álcool, drogas, má alimentação) relacionados ao aparecimento de doenças degenerativas. Dados estatísticos chancelados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) procuram não deixar dúvidas sobre o potencial destrutivo do sedentarismo: quase 2 milhões de mortes por ano em todo o mundo; em torno de 10% a 16% dos casos de câncer de mama, de cólon e diabetes, 22% dos casos de doença cardíaca isquêmica (OMS, 2002). Esta é uma pequena parcela de uma “epidemia de números” que vem procurando pôr a população em movimento através de uma “pedagogia do terror”. De certo modo, é esse caráter mórbido atribuído ao comportamento sedentário que, por contraste, alimenta a proliferação dos apelos em favor de um estilo de vida ativo. É a propalada eficácia no combate ao desenvolvimento de doenças degenerativas que empresta valor social à “nova atividade física”.
Uma pesquisa realizada com a população de Tiajin, na China, citada numa publicação do Sesc São Paulo intitulada Escolhas sobre o Corpo: Valores e Práticas Físicas em Tempo de Mudança (2003), dá uma idéia do impacto que essa alteração de paradigma vem causando. A partir das respostas dadas pelos(as) entrevistados(as) sobre a rotina diária relativa à atividade física, foram aplicados dois critérios: primeiramente, foram computados como ativos somente os sujeitos que reportaram realizar exercícios físicos no tempo de lazer e, num segundo momento, foram computadas as atividades físicas compulsórias conforme as recomendações contemporâneas. Pelo critério “antigo”, 89% dos habitantes foram considerados sedentários, mas, quando os novos critérios foram aplicados, 94% da população poderiam ser considerados sujeitos ativos, já que naquela localidade a bicicleta é o meio de transporte predominante no deslocamento para o trabalho (Sesc, 2003).
De acordo com as análises do próprio Sesc, a atividade física realizada de forma compulsória até pode levar à diminuição dos riscos relativos ao sedentarismo em certos grupos sociais e em determinadas circunstâncias, mas, se ela não fizer parte do conjunto de valores culturais que dá sentido à vida e não resultar da livre escolha do sujeito, os efeitos desse tipo de promoção podem não ser os esperados. Nessa perspectiva mais utilitária e individualista, a construção de laços de sociabilidade e a ludicidade perdem importância, não porque esses elementos tenham sido propositalmente banidos do processo de disseminação da vida ativa, e sim porque o valor maior atribuído à prática física está cada vez mais vinculado aos rendimentos orgânicos proporcionados. De certa maneira, parece importar menos o prazer de jogar um futebolzinho com os amigos do que o gasto energético que tal atividade representa na contabilidade geral da semana.
A intenção aqui não é questionar se a dosagem recomendada é ou não suficiente para produzir os benefícios apregoados, e sim apontar que o predomínio do caráter utilitário e individualista no processo de promoção da vida ativa é um dos elementos (e há outros tantos) responsáveis pelo declínio do caráter lúdico e gregário das práticas corporais contemporâneas. Tendo em vista que 2005 é o ano consagrado pelas Nações Unidas à educação física e ao esporte, e que o tema central desta edição é “Esporte, Juventude e Cidadania”, cabe começar a pensar se o modo como a “nova atividade física” vem sendo disseminada em nosso tempo não afetará o nível de motivação e o grau de envolvimento dos jovens com a “velha” e boa prática físico-desportiva. É bem provável que aí possamos encontrar algumas pistas que nos ajudem a entender um pouco mais a resistência de uma parcela dos jovens brasileiros aos apelos em favor da prática física, bem como elaborar estratégias mais adequadas à cultura juvenil do século 21.
Alex Branco Fraga é doutor em educação e professor da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande doSul (Esef/UFRGS)
Promovendo o esporte, desenvolvendo a cidadania
por Marlova Noleto
A Assembléia Geral das Nações Unidas elegeu 2005 como o Ano Internacional da Educação Física e do Esporte. Em um tempo no qual as desigualdades sociais se acentuam e há uma série de ameaças concretas ao desenvolvimento humano e social, poderia parecer, à primeira vista, menos importante clamar a todos os governantes do mundo que direcionem seus esforços para a promoção do esporte. Tal decisão, contudo, esconde uma grande estratégia.
O esporte é considerado um elemento fundamental na formação do indivíduo. Mais do que proporcionar o condicionamento físico, a ginástica, a dança, os jogos permitem o desenvolvimento da consciência de si mesmo e de sua relação com o ambiente circundante. A atividade desportiva, individual ou em grupo, contribui para o desenvolvimento de competências cognitivas, afetivas, éticas, estéticas, de relação interpessoal e de inserção social. A distribuição de papéis, o convívio com as regras, a manipulação de sentimentos como a vitória e o fracasso, a rivalidade e a cooperação cultivam valores e comportamentos condizentes com as próprias bases democráticas sobre as quais se funda a sociedade moderna.
Mas o esporte também envolve riscos, sobretudo se não for acompanhado de orientação adequada. Sua prática abusiva pode levar a lesões corporais e a disfunções fisiológicas. A competitividade excessiva pode gerar comportamentos agressivos, devendo, portanto, ser controlada pelo sentimento de respeito e tolerância ao adversário. Os atletas, amadores e profissionais, devem também ser orientados quanto às ameaças do doping. Tomadas as devidas cautelas, porém, o esporte contribui não apenas para a formação integral de indivíduos, mas para o crescimento da consciência cidadã e para o fortalecimento da sociedade.
Infelizmente, estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmam que, em média, 17% da população adulta mundial são fisicamente inativos, ou seja, não realizam, no dia-a-dia, nenhum esforço físico moderado, tal como caminhar até o local de trabalho ou subir escadas. No mesmo sentido, resultados preliminares de pesquisas da Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] divulgados recentemente na imprensa revelam que 43% dos jovens de 15 a 17 anos não praticam nenhuma atividade física. Entre os 18 e os 20 anos, a proporção é ainda maior: 55%. Os números indicam também que a freqüência da prática de alguma atividade esportiva é menor entre os jovens das classes mais humildes. Falta de tempo ou de interesse são apontadas como as principais razões que levam ao sedentarismo.
Ao contrário do que se poderia pensar, jovens que estudam e trabalham ou que apenas estudam se mostram mais inclinados à atividade física do que aqueles que não freqüentam as escolas. As proporções correspondem, respectivamente, a 53%, 52% e 37% de cada grupo populacional. Este dado parece sugerir que a escola favorece a prática de esportes.
De fato, a educação física é obrigatória para todo o sistema de ensino básico brasileiro, com exceção dos cursos ministrados em período noturno, nos quais é facultativa. Entretanto, como reconhecido nos próprios Parâmetros Curriculares Nacionais, “a Educação Física ainda é tratada como ‘marginal’”. Nem todas as escolas concedem, em seus currículos, o devido espaço à disciplina. Muitas vezes, se carece de infra-estrutura adequada e materiais de qualidade para a prática segura de esportes. Os problemas costumam ser maiores nas escolas da rede pública, devido, sobretudo, à falta de recursos, o que gera uma nova forma de exclusão.
A prática de esportes constitui um direito humano universal, positivado em diversos instrumentos internacionais. Devido a seu potencial para o desenvolvimento individual e coletivo, é igualmente componente essencial de uma educação de qualidade. Sua inobservância erige barreiras ao fortalecimento do tecido social. Ciente disto, a Unesco foi designada como agência líder na promoção da educação física e do esporte. A Unesco no Brasil tem se debruçado sobre esse tema com especial afinco, inserindo-o em uma estratégia integrada voltada à promoção do desenvolvimento social.
Em 2000, a Unesco lançou o programa Abrindo Espaços: Educação e Cultura para a Paz, com a proposta de abrir as escolas públicas durante os fins de semana para a realização de oficinas desportivas, artísticas e culturais envolvendo alunos e toda a comunidade vizinha. Ao mesmo tempo em que focaliza a educação, o programa tem como alvo o combate à exclusão social, o incentivo à prática desportiva e à participação cultural, a conscientização sobre a prevenção de doenças sexualmente trasmissíveis/Aids e o cuidado com o meio ambiente, contribuindo para a diminuição da violência e da vulnerabilidade socioeconômica. Além de integrar jovens e comunidades, a oferta de atividades extracurriculares ajuda na socialização e contribui para a reconstrução da cidadania. Atualmente, aproximadamente 6.300 escolas da rede pública fazem parte do Abrindo Espaços, atendendo a uma população superior a 8 milhões de crianças, jovens e adultos. Parte do sucesso dessa iniciativa traduz-se, entre outras coisas, em índices de violência até 54% inferiores nas comunidades envolvidas no programa.
Uma das causas apontadas pelos jovens para a exclusão social está relacionada à falta de espaços para o exercício do protagonismo juvenil, o que em geral colabora para a geração de situações cotidianas de violência.
Nesse contexto, oportunidades de acesso à educação, à cultura e ao desporto são fundamentais. Há uma clara demanda dos jovens por lugares e equipamentos para o exercício de atividades lúdicas, recreativas, esportivas, espaços de sociabilidade e de manifestação da criatividade artística em suas diversas expressões.
O programa pretende estimular a discussão de uma nova estratégia para a implementação de políticas públicas em que haja espaço para a plena participação dos jovens.
“Quando você dá uma bola a um menino, você incute nele um sentido e uma direção.” Essa frase simples de um professor de educação física resume os efeitos positivos que as atividades esportivas exercem na formação dos jovens. Além de integrar jovens e comunidades, a oferta de atividades esportivas, artísticas e culturais nos finais de semana ajuda na socialização e contribui para a reconstrução da cidadania.
Em 2004, por meio de uma parceria com o Ministério da Educação, surgiu o programa Escola Aberta, que deverá levar à implementação de iniciativas similares às do Abrindo Espaços em todo o território nacional. Com o apoio dos Ministérios do Esporte, da Cultura e do Trabalho, de empresas estatais, de governos estaduais e municipais, espera-se despertar o interesse da população para atividades esportivas, artísticas e culturais, ampliando as oportunidades para a participação comunitária.
No Ano Internacional da Educação Física e do Esporte, reconheçamos a importância transversal do tema para o desenvolvimento individual e comunitário. O esporte, a arte e a cultura são importantes ferramentas de inclusão social e devem ser explorados como tal na formulação e condução de políticas públicas integradas e responsáveis.
Obs.: Os dados apresentados podem ser encontrados nos seguintes documentos elaborados pela OMS disponíveis no site www.who.int: World Health Report 2002; Health and Development Through Physical Activity and Sport e Global Strategy on Diet, Physical Activity and Health.
Marlova Noleto é diretora técnica da Unesco no Brasil