Postado em 01/04/2005
Do universo onírico ao palco nu, das representações épicas ao experimentalismo mais radical, a criação cenográfica é parte indispensável do teatro
Com algumas exceções, é costume que uma voz em off apresente um espetáculo teatral ao público, nos instantes que antecedem a primeira cena, pelo título, nome do diretor e autor. Para não dizer que nunca acontece, é raro que essa praxe inclua o responsável pela cenografia, embora seja justamente o cenário, muitas vezes, a primeira coisa a ser vista pela platéia, sobretudo nas peças que têm início com palco vazio, à espera dos atores. Dizer que se trata de uma injustiça seria tolice. É consenso que a figura do cenógrafo é importante para o processo de concepção de um espetáculo – os críticos que o digam. No entanto, ao grande público pode passar despercebido em que consiste, no fim das contas, o trabalho do profissional que cria o ambiente no qual os atores vivem as histórias. O celebrado cenógrafo Gianni Ratto escreve em seu Antitratado de Cenografia (Editora Senac, 1999) que hoje existe uma “dramaturgia polivalente”, cuja variedade dos temas oferecidos termina por provocar “uma pequena tempestade de tentativas, propostas e imposições para o espetáculo”. Se é assim, por onde o cenógrafo pode começar em meio a essa turbulência de estéticas e linguagens? “Obviamente o ponto de partida são o texto e o interesse que ele tenha despertado”, afirma o professor titular de cenografia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), José Dias, no artigo A Importância da Cenografia, publicado no site da universidade. “No princípio há apenas uma idéia que, aos poucos, vai tomando forma, seja através dos perfis dos personagens, de suas palavras, gestos e movimentos, seja através da definição das linhas, do estilo, do desenho do cenário, isto é, de todos os elementos que emprestam uma fisionomia própria à montagem.”
Possibilidades infinitas e função definida
Na prática, pode-se dizer que não há regra para os caminhos a ser seguidos por uma cenografia. Há, afirmam os estudiosos, diretrizes que devem ser respeitadas. Gianni Ratto aposta nos trabalhos que fujam do “personalismo, do individualismo e do ‘cheguei’”. Ou seja, não atinge o propósito a cenografia que rouba a cena. É feliz, sim, aquela que consegue enriquecê-la e completá-la. Para o cenógrafo J.C. Serroni, ela deve procurar a síntese. “Não ser decorativa, nem descritiva. Deve sempre buscar a poesia. Quanto mais harmônica com o todo do espetáculo mais adequada será.”
A idéia de síntese leva a uma armadilha que se esconde no percurso da cenografia: saber separar o imprescindível do descartável. O diretor Antunes Filho, que prega a supremacia do ator e a importância máxima do texto, é daqueles que agregam responsabilidade extra às cenografias de seus espetáculos. A estética do “menos é mais” da série Prêt-à-Porter, por exemplo – cujos esquetes têm o mínimo necessário de objetos e recursos no palco –, valoriza o despojamento como um dos principais canais de expressão do método que representa. “Eu só uso o essencial, não tem penduricalho”, afirma o diretor. “Eu concentro o olhar das pessoas, não as poluo com arabescos idiotas que não têm nada a dizer.” Para Serroni, que já trabalhou com o diretor em peças como Gilgamesh e Drácula e Outros Vampiros, essa estética da essência, no entanto, não necessariamente significa abrir mão de elementos que componham o espetáculo junto com seus intérpretes. “Estamos [Antunes e Serroni], já há um ano, trabalhando em Antígona, que deverá estrear em maio no palco do Teatro Sesc Anchieta, que é um trabalho com cenário, muitos atores, trilha sonora e iluminação.”
Parceria
Confrontar as opiniões dos diretores e cenógrafos sobre a função e a importância da cenografia é testemunhar um amigável jogo de empurra-empurra. De um lado, os diretores prontamente afirmam que um espetáculo não pode prescindir de uma boa cenografia. E, de outro, a maioria dos cenógrafos ressalta, logo de início, que o primordial numa peça é o ator e a direção. O que se pode concluir, entre um empurrão e outro, é que sem uma parceria entre os construtores, o barco não corre a pleno vapor. E para que esse trabalho em conjunto aconteça há diferentes maneiras, segundo explica o doutor em arte e professor do curso de cenografia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) Fausto Viana. “O cenógrafo pode ser chamado por um diretor para criar para uma peça já em estágio final ou pode acompanhar o processo desde o começo, seja como parte de um grupo teatral – tendência do teatro contemporâneo –, seja como convidado para acompanhar o processo de elaboração a partir dos ensaios.” Para parte dos cenógrafos, estar desde o começo em contato com a produção é a situação ideal. “É a partir da observação dos ensaios que você percebe mais claramente qual é o melhor espaço para o ator fazer o trabalho dele”, afirma o cenógrafo Fernando Marés, do Ateliê de Criação Teatral (ACT), de Curitiba, que esteve em cartaz em São Paulo, em 2002, com o espetáculo Cão Coisa e a Coisa Homem, no Teatro Sesc Anchieta, na unidade Consolação. Para Marés, é o movimento do ator que delimita o espaço, e com base nessa premissa se deve imaginar um ambiente no qual o ator se mova da melhor forma possível. “É a partir do homem que você cria a coisa”, diz ele. “Eu não posso criar um cenário e dizer ao ator ‘agora habite este espaço’. De repente, ele ensaiou mais de dois meses sem sonhar que haveria uma rampa em cena, por exemplo, e eu não posso obrigá-lo a conviver com ela.” Já Osvaldo Gabrielli, do grupo XPTO, é adepto da criação da cenografia em processo simultâneo com a primeira idéia do espetáculo. “Eu não consigo pensar no espetáculo como uma idéia que vem antes do cenário”, afirma. “A gente pensa muito o cenário como interferências que acrescentam e dinamizam a cena, criando planos diferentes, perspectivas, labirintos.”
A cenógrafa Daniela Thomas, embora também acredite nas parcerias, acha que a contribuição mútua deve se dar de outro jeito. “Detesto acompanhar ensaio”, revelou em entrevista publicada no último número da revista anual Caixa Preta, editada pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP. “A troca entre mim e o diretor geralmente se dá num cafezinho. Tem de ter café, pão com manteiga, e a gente vai falar de idéias, imagens...” Daniela também rejeita as indicações do texto e nega muitos convites. “Eu digo sim às pessoas que conhecem o meu trabalho e que querem a minha parceria, não querem dizer o que esperam, querem ser surpreendidas pela minha criação.”
As donas do espaço
As artistas plásticas Maria Bonomi e Louise Bourgeois assinam a cenografia de duas estréias nos palcos do Sesc
As estréias teatrais no Sesc no primeiro semestre estão repletas de grandes nomes e grandes histórias. No Teatro Sesc Anchieta, na unidade Consolação, o escritor Ignácio de Loyola Brandão assina o texto de A Última Viagem de Borges – em cartaz desde 26 de março –, uma lúdica aventura literária, com elementos tirados da vida e da obra do autor argentino Jorge Luis Borges, que tem Sérgio Ferrara na direção. Já no Sesc Belezinho, Denise Stoklos dirige a si mesma no espetáculo Louise Bourgeois: Faço, Desfaço, Refaço – com estréia prevista para 6 de maio –, livre adaptação que mistura texto e performance inspirada na figura e na arte da artista plástica, e também atriz, franco-americana Louise Bourgeois. O que os dois espetáculos têm em comum são os destaques à cenografia, a cargo de duas expoentes do mundo das artes plásticas. Enquanto a viagem de Borges percorrerá cenários de Maria Bonomi, também responsável pelos figurinos, Denise Stoklos fará sua nova performance por entre peças criadas pela própria Louise Bourgeois, conhecida no Brasil por expor, na 23ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1996, uma aranha de 3 metros de altura, obra intitulada simplesmente Spider (aranha, em inglês). A obra encontra-se, hoje, em exposição permanente no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), no Parque do Ibirapuera.
No espetáculo A Última Viagem de Borges, o autor argentino parte de Buenos Aires para a biblioteca de Babel em busca de uma palavra perdida. Em sua companhia estão Richard Burton, tradutor de As Mil e Uma Noites, a mítica contadora de histórias Sherazade e o personagem Memorioso, “o que contém em si a memória de todas as coisas”, como define o texto da peça. Para ambientar a fantástica cruzada repleta de obstáculos, Maria Bonomi criou biombos sanfonados que se locomovem em cena, numa alusão ao jogo com labirintos e espelhos, recursos tipicamente borgeanos. A cenografia conta ainda com projeções que estamparão no palco imagens de filmes, quadros, letras e palavras. “O cenário tem um lado fantástico muito forte”, conta Maria Bonomi. “Vai dar para sonhar bastante. É teatrão onírico, teatrão do mágico.”
Já no espetáculo de Denise Stoklos, Louise Bourgeois torna-se “parceira” da performer no palco ao produzir especialmente para o espetáculo um cenário que remete a uma de suas já conhecidas instalações, a representação de uma cela – ou gaiola, como chama Louise. A cenografia-instalação é composta de esculturas de aço e vidro – a cela –, de uma escada e um espelho. Em entrevista concedida ao jornal carioca O Globo, em janeiro passado, a artista plástica contou que foi a atriz quem escolheu os objetos que serão vistos em cena, que devem interagir com a “intensa energia da frenética linguagem corporal de Denise”. A cenografia, após a estréia, estará aberta para visitação.
Fora do palco
Cenografia não serve só ao teatro, ela está também em espetáculos de dança e exposições de artes plásticas
Dos 40 milhões de reais investidos na Mostra do Redescobrimento, em 2000, megaexposição realizada nos pavilhões da Bienal, no Parque do Ibirapuera, em comemoração aos 500 anos do Brasil, boa parte foi destinada às cenografias criadas para o local. Segundo informou nota publicada no jornal eletrônico Folha On Line na época, só a ambientação criada pela encenadora Bia Lessa para o segmento sobre arte barroca consumiu cerca de 1,1 milhão de reais do orçamento. “Não me sinto distante do teatro”, afirma Bia. “Porque, nas exposições que eu faço, a abordagem é teatral, inclusive prevendo a participação da platéia.” O fato de haver uma especial atenção voltada para instalações que servem de ambiente para obras de arte e objetos históricos é um bom exemplo de que os recursos cenográficos são bem-vindos fora do teatro – ainda que tenham sua função redefinida de acordo com o espaço que ocupam. “A cenografia é um elemento do espetáculo, ela não constitui um fim em si”, explica o professor titular de cenografia da Unirio José Dias, no texto A Importância da Cenografia, publicado no site da universidade. Para Dias, o resultado de um trabalho de cenografia passa, antes de tudo, pelo exercício de ser uma arte “a serviço de” um espetáculo, seja ele de teatro, dança, ópera, ou ainda um show de música ou até mesmo um videoclipe ou filme publicitário.
Lançando mão das múltiplas adequações de um cenário, a coreógrafa Deborah Colker, por exemplo, não dispensa a assistência de cenógrafos em suas montagens – para Casa (foto), espetáculo de 1999, o designer Gringo Cardia criou uma espécie de residência estilizada, com janelas e paredes que eram “escaladas” pelos bailarinos durante a performance.
Já o cenógrafo William Pereira, também diretor, especializou-se em óperas, sendo responsável por versões modernas de Romeu e Julieta, de Shakespeare, e de As Bodas de Fígaro, de Mozart, enquanto Marcos Botassi é figura sempre encontrada nos sets de filmagens publicitárias. Entre seus trabalhos mais conhecidos está a floresta que servia de fundo para as estripulias dos “mamíferos” da Parmalat.