Postado em 01/11/2004
De olho na macroeconomia, mas sem perder de vista o mercado
ROBERTO MACEDO
Roberto Macedo /
Foto: Gabriel Cabral
O economista Roberto Macedo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, esteve presente no dia 16 de setembro de 2004 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra com o tema "Da Macro à Microeconomia - O Mercado sem Décadas Perdidas".
Publicamos abaixo o texto da palestra. Os gráficos que a acompanharam, assim como o debate que se seguiu, podem ser encontrados na edição impressa da revista.
De 1998 a 2002 dediquei-me também ao setor real da economia, atuando como dirigente e consultor de entidades de classe patronais. Isso, ao contrário da maioria dos economistas que dão palpites na mídia. Descontados os ligados à área acadêmica, boa parte deles é do setor financeiro. Penso que um dos problemas do setor real é que os bancos investiram muito nesses economistas, criando grandes departamentos, e hoje esses profissionais têm excessiva presença na imprensa e na formação de opinião, fornecendo informações e sendo ouvidos pelos repórteres. Há um viés aí, pois com isso o setor financeiro ganhou espaço na mídia e o lado real perdeu. A indústria e o comércio precisam recuperar seu lugar para ter influência. Além disso, o setor serviços tampouco aparece com a grande importância que vem adquirindo nos últimos anos.
O lado real recebe uma cobertura muito imprecisa. Fala-se muito, por exemplo, nas "décadas perdidas" (anos 80 e 90 do século passado), o que não está de todo errado, mas para quem trabalha em empresas isso não tem o mesmo sentido. Essa é uma visão da economia que corresponde a um fato determinado, mas que para o mundo empresarial não pode ser tomado como parâmetro, porque é um conceito baseado em produto per capita ou por habitante, quando o que interessa para as empresas é o mercado global, em que a população conta como um todo, e ela cresceu muito nessas décadas. Essa diferença de ponto de vista de mercado fica clara quando se trabalha com os empresários. A microeconomia dos mercados é muito mais pujante do que tudo o que gira em torno da macro, esta com seus problemas crônicos de dívida pública e de juros, entre outros. Os empresários são muito mais focados no que lhes interessa, o mercado. Antes de dizer "bom dia" ou "boa tarde" alguns perguntam: "Como está o mercado?"
Vou destacar essa visão, porque na macro há problemas que não se resolvem e felizmente as empresas não esperam que isso aconteça.
Note-se também que na grande imprensa predomina o noticiário macroeconômico, sempre com destaque aos problemas por resolver. Quem trabalha em empresas deve tomar cuidado com esse enfoque, pois ele é desestimulante e pode inibir consumidores e investidores. Aprendi com jornalistas que a notícia é sempre algo insólito e, em geral, o insólito costuma ser negativo. Jornal não gosta de aviões que sobem, só dos que caem. Temos de ler com cuidado, para não ficar deprimidos pelas onipresentes más notícias.
O conteúdo desta apresentação começa pela macroeconomia, em que trabalhamos com variáveis agregadas, como Produto Interno Bruto (PIB), preços macroeconômicos e outras variáveis, e falaremos também do desempenho de 2004, além do cenário para 2005. O PIB total é o PIB per capita multiplicado pela população. Essa é uma variável esquecida no Brasil, quase ninguém fala dela. Em 1970 éramos 90 milhões; hoje somos 180 milhões, e isso, em termos de mercado, tem um grande significado. Depois farei uma transição da macro para a micro, por meio do conceito de mercado, e explorarei a questão das décadas perdidas.
Assim como na micro, na macro estamos sempre trabalhando com quantidades e preços, só que em termos de médias e variáveis agregadas, olhando a economia como um todo. A quantidade, na macroeconomia, é o PIB, que é a soma das várias quantidades de bens e serviços produzidos, ponderados pelos respectivos preços. O motor do PIB é o investimento ou formação de capital fixo, que precisa crescer muito para termos o "espetáculo do crescimento". Macroeconomicamente, o investimento tem um papel virtuoso, pois ele tanto expande a oferta como gera renda que amplia a demanda.
Quanto aos preços, os dos bens e serviços são agregados em índices, como o Índice Geral de Preços (IGP). Mas há outros preços macroeconômicos: as taxas de juros, a de câmbio e a de salário. No Brasil não se fala muito de salários porque eles andam muito baixos, mas nos Estados Unidos o Federal Reserve está sempre de olho nessa taxa porque é um indicador da pressão da economia sobre o mercado de trabalho. Se os salários sobem, isso pode desencadear um aumento de taxa de juros. Em 1973, tivemos uma "crise de mão-de-obra" no país, da qual os empresários reclamavam, pois estavam faltando trabalhadores para os salários que as empresas costumavam pagar. Os salários começaram a subir, mas, infelizmente, veio a crise do petróleo, o crescimento caiu e o assunto sumiu dos jornais. Se tivéssemos mantido essa "crise de mão-de-obra" ad infinitum, pelo menos por uns dez anos ou mais, boa parte da pobreza teria desaparecido no Brasil. A história de outros países mostra que uma nação só reduz a pobreza quando a mão-de-obra não-qualificada fica escassa. Nas palavras de John Kenneth Galbraith, "acaba a classe servil", a de pessoas dispostas a fazer as tarefas mais elementares em troca de alguns trocados para sobreviver. A baixa remuneração cobre apenas aquilo que, na visão de Karl Marx, é o custo de reprodução da força de trabalho. Deixemos então de lado a taxa de salário porque, infelizmente, estamos com excesso de mão-de-obra e salários aviltados. E há o governo, que, com seus impostos, gastos e dívidas, exerce um grande papel. Quem está numa empresa tem de ficar de olho no governo, mas sem obsessão.
Variáveis
Falemos das variáveis macroeconômicas, a começar pela inflação, cujos índices dão a visão dos preços de uma forma agregada. Estamos bem, mas não tanto assim, segundo o Banco Central (BC), que, sempre preocupado com a inflação, fica aumentando a taxa de juros. Há outro problema. Numa economia em que a indexação ainda não acabou totalmente - temos tarifas e preços públicos indexados pelo Índice Geral de Preços-Mercado (IGP-M) ou pelo IGP, em geral correndo acima do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que é o índice-meta -, o BC fixa uma meta otimista, subestimada, e por qualquer coisa acima já eleva os juros.
O fim do ano é uma época crucial para a economia. Se o BC desconfia que não vai ficar na meta, torna-se ainda mais rigoroso. E aperta a política monetária, aumentando os juros. Isso vira notícia ruim nas palavras de Miriam Leitão, Salete Lemos, Joelmir Beting e outros comentaristas econômicos que aparecem na TV. O consumidor em casa, depois do jantar, ao ouvir que os juros subiram, fica assustado. As expectativas são afetadas, o que, numa época natalina, frustra parte das vendas, e pode sobrar estoque para o ano seguinte. Isso não influenciaria a taxa de crescimento do ano corrente, porque já se produziu aquele estoque. Mas, se entrarmos no ano novo com estoques, virão férias coletivas ou mesmo demissões, a produção cairá e a taxa de crescimento será prejudicada.
No fim do ano sempre me perguntam o que virá no ano seguinte. E sempre respondo que preciso primeiro saber o que aconteceu no Natal. Quando ele é bom, o ano seguinte quase sempre tem desempenho favorável. Quando é ruim, sobram estoques e tudo começa mal. Assim, a importância dessa época agrava o efeito do aumento dos juros sobre a economia.
Voltando à inflação, ela está sob controle, comparada com a que tínhamos antes do Plano Real, embora haja ainda problemas residuais, que não serão, entretanto, resolvidos apenas pela taxa de juros. Esta tem um efeito indireto sobre a de inflação, a qual depende de muitas outras coisas. Nos últimos anos, por exemplo, a inflação dependeu muito do câmbio. Toda vez que houve desvalorização cambial, como em 1999, 2001 e 2002, a inflação reagiu. O BC diz então que tem de coibir os efeitos da ação do câmbio sobre os demais preços da economia. O que fazer? Se você está no governo, precisa melhorar a situação do câmbio - como, aliás, acabaram fazendo -, e foi o que mais aliviou as pressões da inflação.
A inflação é muito complicada para ficar a cargo apenas do BC, pois ele usa somente a taxa de juros. Em 2004, por exemplo, uma parte do aumento dos preços veio da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), quer dizer, o próprio governo gera inflação. Outra coisa: ele mesmo está gastando, e adicionando pressão inflacionária à demanda agregada. Se não gastasse tanto, haveria menos efeitos sobre os índices inflacionários. E há os tais preços administrados pelo governo, aliás mal administrados, como os que admitem uma correção pelo IGP ou pelo IGP-M. Assim, a inflação está sendo colocada de modo muito simplista, e o BC, ao usar somente os juros, aplica uma overdose do remédio porque as outras causas não estão sendo convenientemente atacadas.
Décadas perdidas
A história das décadas perdidas começa na evolução do PIB per capita. A primeira aconteceu nos anos 80. O período dos anos 90 apresenta altos e baixos. Para ficar só nos mais recentes, o de 97 parece ter sido relativamente bom, mas perto do Natal, por conta da crise da Ásia, o governo subiu os juros, e prejudicou seriamente a indústria e as lojas de eletrodomésticos, que terminaram o ano com estoques altos. Na seqüência, o ano seguinte foi péssimo. Havia começado a melhorar no seu início, mas veio outro choque de juros, desta vez por causa da crise da Rússia. Resultado: sobrou estoque novamente. Em 99 houve a desvalorização, em janeiro. Foi um período menos ruim, o que já é um avanço, e terminamos com um Natal desta vez bom. Como isso ocorreu, 2000 foi bem melhor. Eu diria que esse, como 2004, é um ano normal no Brasil, pois quando nada atrapalha a economia cresce uns 3% ou 4%. Mas não há condições de aumentar essas taxas de crescimento por causa da carga tributária, da dívida pública, dos juros e do baixo índice de investimento, que como outros problemas permanecem sem solução. O pessoal do governo, entretanto, tem razão em um ponto: a administração anterior deixou de fato uma herança maldita, que é a dívida pública, e há também a seqüela do câmbio, que o governo anterior segurou por quatro anos, e que é parte integrante da dívida e dessa herança. Quando o câmbio se desvalorizou, em 1999, a economia começou a melhorar.
Pela experiência que tenho, a economia brasileira cresce, se não atrapalharem. Ela tem energia própria, dada pela ocupação de novas fronteiras, pelo aumento da população e seu permanente anseio de consumo. Então a tendência é crescer, pois há consumidores querendo gastar e temos talento empresarial. Ela não pode crescer a taxas maiores pelas razões que já expus. Vamos examiná-las um pouco mais.
A economia não cresce muito porque a taxa de investimento é baixa. Pelo conceito de contas nacionais, e medida como proporção do PIB, essa taxa vem caindo. Existem análises que mostram que o decréscimo é ainda maior quando se leva em conta o fato de que os preços dos bens de capital, que correspondem aos investimentos, aumentaram mais que a média dos preços.
Os problemas das finanças públicas são a maior causa de uma taxa de investimento baixa. A carga fiscal é alta - cerca de 36% do PIB, que, somados a uns 4% de déficit público, elevam a 40% o total de recursos absorvidos pelo governo. Se este investisse bem mais do que faz hoje, como aconteceu na época dos primeiros governos militares, quando fizeram uma reforma tributária, encheram o caixa e começaram a usar os recursos, a realidade seria outra. Hoje o governo investe muito pouco. Em São Paulo não se percebe tanto isso, porque o estado faz obras (estradas, metrô e outras) que nas outras unidades federativas ficam por conta do governo federal.
É verdade que o governo atual está buscando caminhos para investir. O anterior liberou as empresas estatais com a privatização, porque viu que não tinha dinheiro. O presidente Lula, porém, tem seus limites, não vai fazer um programa de privatização. Criou a parceria público-privada (PPP), uma forma de o governo investir juntamente com o setor privado. Mas o endividamento alto absorve recursos que poderiam fluir para o investimento privado. Isso é o que a literatura chama de crowding out: o governo toma boa parte dos recursos, e a poupança que deixamos nos fundos vai para títulos da dívida pública.
Dívida pública
Quanto à dívida pública, Fernando Henrique Cardoso a recebeu em torno de 30% do PIB, e mesmo fazendo muitas privatizações, que significaram entrada de recursos para o governo, ela quase dobrou. E não foi só por causa dos "esqueletos" que encontrou. Há estudos que comprovam isso, mostrando que o grande aumento da dívida veio dos déficits primários do primeiro mandato do governo anterior e da conta dos juros, utilizados para sustentar o dólar barato. A culpa não é só dos "esqueletos", termo muito usado na época eleitoral, mas principalmente dessas outras causas.
No que respeita à dívida externa, o setor privado, mais esperto, percebeu a oscilação do dólar e os riscos do endividamento em moeda estrangeira, evitou esse endividamento e os números caíram de US$ 134 bilhões para US$ 89 bilhões. Primeiro porque é arriscado tomar dinheiro em dólar e, depois, porque minguou o crédito lá fora. Já o governo mantém sua dívida porque não tem dinheiro para pagar e também não consegue aumentá-la por dificuldades de crédito.
Carga tributária
Quanto à carga tributária, conforme dados cedidos pelo conhecido especialista em assuntos fiscais tributários José Roberto Afonso. sabemos que ela sobe independentemente de regime político, de partido ou de quem esteja no governo. A sociedade ainda não entendeu bem isso, porque vive malhando o peso dos impostos, sem perceber que a coisa não funciona assim. O que sobe são os gastos, e depois a carga tributária corre atrás. O governo vai criando despesas - sem mencionarmos o juro da dívida -, e está sempre sem dinheiro. O caso da Previdência é típico: o governo pede um aumento das contribuições sociais e centraliza tudo na área federal, não as reparte com os estados. Não sei onde isso vai parar, mas tem de parar em algum lugar. Não temos resposta para isso. O governo vai tirando recursos e com isso desestimula o investimento privado. Além disso, há tantas mexidas nas leis tributárias que isso confunde as empresas e aumenta seus custos.
Míope, a sociedade brasileira vê apenas a carga, mas não os gastos. As carências são tantas que ela aprova os gastos, mas não a carga. Não há uma reação da classe política nem da sociedade contra o aumento de gastos, mas começa a haver uma reação contra a elevação dos impostos. Se continuarem aumentando, no fim, lembrando a fábula, acabaríamos matando a galinha que bota os ovos tributários. Sabe-se também que o governo gasta mal, grava muito os mais pobres com impostos indiretos, e também privilegia segmentos da população, como os estudantes das universidades públicas.
Voltando à dívida, não em termos de estoque, mas de fluxo, o que a amplia são os déficits nominais. Todo ano em que ocorre uma desvalorização, o acréscimo na dívida em dólar ou referenciada a ele é contado como juro. Então em 1999, 2001 e 2002 houve um acréscimo do déficit porque houve a desvalorização e um impacto sobre a dívida. Desde o segundo mandato de FHC, o governo gera superávits fiscais que somem com o pagamento de juros, e ainda assim há um déficit final, o nominal. Em 2003 e 2000 gerou-se um déficit em torno de 3% do PIB, que é mais ou menos o critério de Maastricht, exigido para os países se juntarem à União Européia. Como resultado final não é mau, mas o problema é que em 2000 gastamos 7% do PIB em juros, e 12% em 2003. É muito dinheiro, e sem redução dos juros o Estado não terá mais recursos para investir e os rentistas continuarão alimentados pelo governo e sem interesse em buscar o setor real para investimentos produtivos.
A percepção do governo é esta: vai avançando com a dívida, e na hora em que percebe o mercado com dificuldade para absorvê-la, começa a se preocupar e a segura. Não é por causa do Fundo Monetário Internacional (FMI), como muita gente imagina. É porque, se não fizer isso, a vaca vai pro brejo. Se o crescimento da dívida não parar, em algum momento haveria algum resgate dela por meios bem inflacionários.
Balança comercial
A balança comercial revela um processo de ajuste belíssimo, quase asiático, pela rapidez com que ocorreu. Em 2003 ocorreu um superávit não só na balança comercial, próximo de US$ 30 bilhões, mas também em conta corrente, o que não é usual em países emergentes. Os danos da valorização do real, ocorrida no primeiro mandato de FHC, constituem uma das coisas mais dramáticas da economia brasileira.
Quando mostro dados como esses para os empresários, eles perguntam o que, nessas informações macroeconômicas, é de fato relevante. Relevante é o que respinga em você. Quando se desvaloriza a moeda, isso não é bom para quem importa, mas favorece a exportação e o nosso PIB. O efeito também depende do produto afetado. Com o dólar mais caro, as revendas daqueles jipinhos Suzuki, da classe média, foram fechadas, mas quem vende Ferraris continua no mercado.
Aliás, percebe-se que temos no Brasil dois grandes mercados: um de gente muito pobre e um de pessoas muito ricas. A classe média é uma outra história, tem grandes aspirações e está sendo muito afetada, pois, entre outros aspectos, uma parte dela deixou a escola pública e passou a pagar mensalidades em colégios particulares. Além disso, tem necessidades de serviços de saúde, automóveis, computadores, celulares e não sei mais o quê, com seus rendimentos sempre estressados pelas suas aspirações.
De qualquer forma, é gratificante saber que, ao contrário do que muita gente pensa, o Brasil tem um grande mercado de massa. Soube que as Casas Bahia, especialistas em vender para gente pobre, têm 12 milhões de clientes, dos quais uns 9 milhões ativos. São quase quatro Uruguais. E há outras empresas com enormes mercados.
Ainda com relação ao câmbio, o relevante é a mudança de importação para exportação, mas, pensando em termos de preços, a grande alteração que houve é que o câmbio era mantido parado com uma política de juros altos para atrair o dinheiro de fora e assegurar a oferta de dólares. Depois o câmbio se desvalorizou e passou a flutuar conforme o fluxo de divisas. O juro teve um movimento contrário. Quando o dólar era quase fixo, o juro variava para segurá-lo. Depois, quando se liberou o dólar, houve condição de trazer os juros para taxas relativamente mais baixas, além de mais estáveis.
Lembro-me de 1997, quando as vendas do setor eletrônico se frustraram em 50%. Havia aparelhos de televisão estocados nos armazéns, nos caminhões que vinham de Manaus, em Manaus, nas lojas. Tudo porque o governo aumentou brutalmente os juros. É por isso, insisto, que não se pode "melar" o Natal, e me preocupa a perspectiva de que o BC aumente os juros neste final de ano, se bem que nada comparado com 1997 e 1998.
Uma conseqüência do juro persistentemente alto no Brasil é que a população se endivida pouco. Este é um dos países menos endividados do mundo. As coisas estão melhorando, e eu mesmo, depois de 30 anos sem tomar dinheiro emprestado, a não ser para financiamento de automóveis, fiz isto este ano, tomando uma linha de crédito para materiais de construção, com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), e uma outra de um fundo de pensão para o qual contribuo. Esses empréstimos foram tomados a uma taxa nominal próxima de 1%, o que já é um bom sinal, mas seria preciso que taxas semelhantes fossem disponíveis de forma muitíssimo mais ampla. Para os pobres, infelizmente, aprendi que os juros altos não fazem muita diferença, pois eles ignoram a taxa e só querem saber se o valor da prestação cabe no seu orçamento.
Risco Brasil
Outra coisa que procuro exorcizar é o risco Brasil. É uma coisa muito mal vendida, pois a imprensa não explica direito o que é. Na verdade, é um indicador financeiro que mostra a diferença de rendimento entre os títulos brasileiros e os do Tesouro norte-americano no mercado secundário. Quer dizer, por exemplo, que se um título brasileiro tem valor de face de US$ 100, sua taxa de juro é 8% ao ano e os dos Estados Unidos pagam 3%, a diferença seria próxima de 5%. Mas se a desconfiança no Brasil aumenta e o nosso papel é vendido no mercado secundário a US$ 90, a diferença de rendimento para quem compra fica enorme. Como é muito complicado traduzir a diferença como "índice dos títulos dos mercados emergentes", a coisa vira risco Brasil e assusta muita gente que não sabe do que se trata. Quem faz colocação nova não está pagando, necessariamente, aquela diferença. Quando ela chegou, perto da eleição de Lula, a 21% o "Financial Times" disse que o Brasil ia quebrar. Mas foi mostrado que não era bem assim porque se tratava do mercado secundário, praticamente não havia colocação de novos papéis e nossas empresas e o governo não tomavam dinheiro necessariamente a essas taxas, em particular a Petrobras, a Vale, que trabalham com outras avaliações. E há o investimento direto, que é muito menos influenciado pelo índice. Apesar de restrito ao mercado secundário de papéis específicos, o índice tem um efeito danoso internamente, porque sai na imprensa como risco Brasil e as pessoas acreditam que o mundo vai acabar quando ele sobe muito. Há gente que acha que é risco de sair à rua, ser assaltado, etc. A imprensa não se cansa de noticiar, mas não tem tempo de sempre explicar o que é esse índice. E seu efeito sobre as expectativas é grande.
Previsões
Resumindo a parte macro, o que se pode prever? O BC semanalmente apresenta a média das previsões fornecidas pelo mercado (bancos, consultorias, etc.). De acordo com as divulgadas no dia 9 de outubro de 2004, a balança comercial e a de conta corrente estão tranqüilas, com US$ 31 bilhões e US$ 8 bilhões, respectivamente, em 2004. Os investimentos diretos estão fracos porque o pessoal ainda não acredita no Brasil, prefere ir para a China e outras plagas. Dados fiscais mostram que a situação está sob controle: superávit primário alto, déficit final razoável e até queda da dívida como proporção do PIB. Entretanto, as despesas do governo com juros (dadas pelo resultado primário mais o nominal) ainda continuam altas, e aí permanece o grande problema da política econômica. Penso que o governo devia fazer até mais superávit primário, mas pagar menos juros. Mas isso é aquele tipo de receita que chega a Brasília e é recebida pelo pessoal da área econômica, particularmente do BC, com verdadeiros chiliques.
Quanto a 2005, vejo condições de um crescimento conforme previsto nesse levantamento do BC - nada entusiasmante, pois permanecem as condições que o prejudicam. O que assegura esse crescimento é que as contas do setor público estão bem melhores, foi corrigido o desajuste do setor externo e o país se tornou mais eficiente com a abertura dos anos 90. Mas não há condições de crescer a taxas chinesas, pelas razões já apontadas.
PIB per capita
Na década de 80, o PIB per capita caiu de 100 para 96, depois subiu para 103 na década seguinte. É daí que vem a idéia das décadas perdidas. De fato, essa é uma história lamentável. Visto este dado isoladamente, a Coréia do Sul passou na frente do Brasil, nossos problemas sociais se agravaram, enquanto outros países avançaram. Mas o pessoal que enfatiza isso, que não tem a visão de mercado, esquece que a população subiu, nessas duas décadas, de 119 milhões para 169 milhões, ou seja, houve um acréscimo de cerca de 50 milhões. Isso faz crescer o mercado, e para avaliá-lo o conceito mais relevante é o PIB total, que aumentou 46% nas mesmas décadas. É uma coisa simples, mas já vi economista de renome escrever na "Folha de S. Paulo", na página 3, que a economia está parada há 20 anos. É um grande equívoco, pois só olhou o PIB per capita.
Nunca vi no noticiário a informação de que medida pelo PIB total a economia cresceu 46% nas décadas perdidas. Uma vez me disseram que estava fazendo oba-oba. Mas tenho de mostrar as coisas como são, a realidade dos fatos, e para quem vende é a informação mais relevante.
Investimento produtivo
Outro economista de renome, Ricardo Bielschowsky, mostra como se poderia tocar a economia, numa reação em cadeia circular, cujos fatores seriam: investimentos produtivos (no meu entendimento, a chave do processo), aumento da demanda de mão-de-obra e de produtividade, aumento de rendimento das famílias trabalhadoras e ampliação do consumo popular. Enquanto houver excesso de mão-de-obra, os salários não vão aumentar muito, mas, quando se esgotar, os salários subiriam mais fortemente e se ampliaria o consumo popular. Este, por sua vez, realimentaria os investimentos, e a coisa andaria. O governo trabalha muito na linha de melhorar os rendimentos, mas com programas de transferências sociais. Isso não resolve, porque a carga tributária vai aumentando e acaba prejudicando os investimentos. Tem de haver equilíbrio. Não sou daqueles que acham que não se deve fazer programa social, mas sem investimentos produtivos a economia não vai girar. E não vejo ainda um crescimento dos investimentos capaz de fazê-la andar. E enquanto não se esgotar esse excesso de gente desempregada ou disposta a aceitar salários aviltantes, o crescimento não será tão alto e sadio como deveria ser.
Demografia
Aliás, por falar em PIB per capita, sugiro que se faça um debate com um demógrafo. Acompanhei uma palestra de um deles, que disse que o Brasil vive um bom movimento demográfico, pois a população infantil está decrescendo. Assim, o contingente que vai chegar ao mercado de trabalho nos próximos dez anos começará a diminuir a pressão sobre a oferta de mão-de-obra, os salários tenderão a subir e haverá mais condições para o crescimento deslanchar. Mas a população é uma variável esquecida, ninguém fala sobre demografia no Brasil.
O crescimento populacional não significa que estão chegando mais bebês - na verdade o que está ocorrendo é o contrário -, mas que as pessoas estão vivendo mais. Isso é o que leva os demógrafos a serem otimistas em termos de perspectiva de mercado de trabalho.
Produção agrícola
Falemos de agricultura. Até 1999/2000, vimos o efeito danoso da estabilização do câmbio e da valorização do real sobre a produção agrícola: ficamos seis anos sem aumentar a safra de grãos. Com a desvalorização, em três safras houve crescimento de 50%. O consultor Marcos Jank tem um estudo que mostra a posição do Brasil no agronegócio mundial. Somos campeões em seis produtos - soja em grão, açúcar, carne bovina, café, suco de laranja e tabaco. E levamos a medalha de prata em farelo de soja, frango e óleo de soja. Felizmente, a importância do agronegócio está sendo reconhecida, desprezada que era no passado por teorias que enfatizavam apenas a relevância da indústria.
Setor industrial
A média de crescimento da indústria em 28 anos foi de 70%. Isso mostra que não se pode trabalhar com média. Mineração cresceu 370%, puxada pela Vale do Rio Doce, Petrobras e outras empresas; perfumaria, sabões e velas, que é o nome antigo de cosméticos, material de limpeza e de higiene pessoal, cresceu 270%. Aí se vê o sucesso da Avon, Natura e Boticário, entre outras empresas. Na outra ponta, não se pode acreditar que o setor de vestuário, calçados e artefatos de tecido tenha diminuído 20% se a população cresceu tanto. É que essa indústria é muito informal e o pessoal tem uma certa ética: não pagam imposto, e também não fornecem dados ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Numa reunião num banco, um gerente de agência queixava-se de que não podia operar com crédito porque na cidade só havia economia informal, e os balanços e contas das empresas não eram confiáveis. A recomendação que recebeu foi: "Se é isso o que você tem na cidade e o pessoal está ganhando dinheiro, então vamos operar com eles". E lhe recomendaram operar só com as pessoas físicas, colocando todos da empresa e outros como avalistas, e, ao financiar algum bem, garantir isso com reserva de domínio. Penso que as escolas de administração brasileiras deveriam ensinar a lidar com o setor informal, o que não fazem. Em Harvard, soube que ensinavam, por meio de estudos de caso, até a trabalhar com a Máfia. Outro dia, uma empresa estrangeira queria saber como lidar com o setor informal. Pelo que soube, uma das saídas é usar uma rede de distribuidores, que faz o meio-de-campo entre a grande empresa e o mercado informal. Aliás, outra história equivocada que circula por aí é que o mercado informal não paga imposto. Não é sempre verdade, porque vários produtos negociados nesse mercado são tributados nas empresas que os fabricam, via regime de substituição tributária. E quem trabalha no informal também gasta sua renda em produtos tributados.
Supermercados
Se o Pão de Açúcar, o Carrefour e outros acreditassem em década perdida não teriam crescido tanto. Em uma década, de 1993 a 2002, o número de lojas subiu de 32 mil para 70 mil. Mas o informal sofre com esse crescimento, que destrói muitas quitandas e mercadinhos. Para os shopping centers também não existiu década perdida: passaram de 20 para 220 em 15 anos e mudaram o padrão de consumo e de organização social das cidades.
Outra notícia que não aparece muito é que um dos setores que mais expandem empregos no Brasil é o de ensino. Percebe-se isso nas ruas, vêem-se novas faculdades e escolas de inglês em todos os lugares. É onde estão os novos milionários do Brasil, os donos de faculdades. Não são mais os capitães de indústria. Os bancos estão de olho nos estabelecimentos de ensino. Uma conta deles é melhor do que muitas de comércio ou de indústria, pois abrange todo o floating das mensalidades, e o banco passa a ter acesso aos dados dos jovens, manda-lhes cartões de crédito, e vai faturando em cima disso.
Antigamente, os quatro grandes empregadores no Brasil eram as quatro maiores indústrias automobilísticas. Hoje, soube que são os maiores supermercados, a rede McDonald's, os Correios e um call center. Tudo isso demonstra que o crescimento caminha para o setor de serviços, que adquire também maior peso como mercado. Enquanto isso o noticiário se concentra mais na indústria e dá uma visão caricatural e limitada do que se passa na economia.
Novos mapas do Brasil
Outro viés é que o noticiário só fala de São Paulo, porque as agências de notícias econômicas estão predominantemente aqui. Não há muitos dados de Minas Gerais, Santa Catarina ou outros estados. A indústria está crescendo mais fora de São Paulo. Pelos dados industriais do IBGE que consultei, só Pernambuco é que está muito mal, porque ainda não encontrou complementos dinâmicos para seu decadente setor sucroalcooleiro.
O Brasil que cresce não é São Paulo. O norte e o centro-oeste são regiões ainda pequenas, mas as que inequivocamente crescem mais. São Paulo perdeu participação no PIB, assim como o Rio de Janeiro. O Brasil hoje é um pouco os EUA no século 19, caminhando para o oeste e, aqui, também para o norte. Pelos filmes de faroeste, nos EUA havia briga de garimpeiros contra índios e disputa de terras, que é o que se tem hoje no Brasil. Havia roubo de diligências e carroções, aqui assaltam ônibus, caminhões. Mas a economia segue avançando.
Num mapa do Brasil em que a divisão usual, político-administrativa, seja trocada pelo PIB e pela população dos estados, a região sul-sudeste toma todo o espaço da Amazônia, uma importância que não vem só do PIB mas também de sua maior população. Mas quando se passa para o PIB per capita o desenho muda, o maior PIB per capita é o de Brasília. Não é um grande mercado, tem mais densidade de renda, mas não tem tamanho. Isso mostra novamente que não se podem fazer análises apenas em termos de PIB per capita, que é o parâmetro das décadas perdidas.
Concluindo, a macroeconomia está melhor, mas ainda vulnerável em razão do endividamento público e do lado externo, onde, apesar da melhoria, continua operando com reservas muito baixas. Juros, carga tributária e dívida pública elevados dificultam um crescimento mais forte devido a seus reflexos sobre os investimentos. Uma concepção muito ortodoxa e limitada da macroeconomia faz o BC exagerar na dose dos juros, prejudicando o nível de atividade.
Na microeconomia, o quadro é bem mais encorajador. O crescimento do mercado tem aberto oportunidades em vários setores e regiões, com destaque para os bens de consumo. A taxa de câmbio tem estimulado a produção para a venda ao exterior.
O noticiário econômico carece de aperfeiçoamentos em sua cobertura regional e setorial, e em geral tem um viés negativo. Há o risco de se contaminar por ele.
Em síntese, quem trabalha em empresas deve manter um olho na macro, para evitar problemas e aproveitar oportunidades, mas o fundamental é a microeconomia dos mercados, que se tem revelado bem mais pujante do que mostram as visões dominantes que vêm da macroeconomia.
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