Postado em 01/11/2004
Falta de investimento em metrô e trens ameaça grandes cidades
ALBERTO MAWAKDIYE
Arte PB
Há um segmento da administração pública brasileira para o qual a retomada do desenvolvimento econômico está trazendo mais preocupação do que alívio. Trata-se da área de planejamento de transporte público. De olho nos números, os especialistas temem que, se o desemprego nas metrópoles - cujo índice há quase dez anos está próximo dos 20% - for reduzido com muita rapidez, poderá não haver meios de transportar toda essa gente para o trabalho de maneira minimamente eficiente.
A preocupação dos planejadores é, nesse caso, bastante pertinente. Eles se baseiam numa simples constatação: o Brasil investiu bem pouco em transporte público de grande capacidade durante o período de crise por que passou. Nesse ínterim, a população continuou a crescer à média de 2% ao ano, o que terá reflexos óbvios sobre a demanda de transporte, que está estacionada apenas devido ao desemprego.
As linhas de metrô e de trens de subúrbio continuam praticamente do mesmo tamanho que estavam em meados da década de 1990, com exceção de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde investimentos constantes fizeram a rede crescer de modo um pouco mais tangível. Mas mesmo os sistemas dessas duas cidades estão trabalhando sem folga operacional. O hipotético cenário de uma rápida recuperação do mercado de trabalho em São Paulo, por exemplo, é assustador: há cerca de 1 milhão de desempregados na cidade, e não existem linhas suficientes para atender esse público.
Enfim, o setor deixou o tempo passar, ancorado na falta de necessidade concreta de ampliações. Hoje, os 13 sistemas de metrô e de trens de subúrbio do país, juntos, somam 862 quilômetros, segundo a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). O acréscimo de vias férreas foi de pouco menos de 100 quilômetros, tomando como base os meados dos anos 1990.
Concentração
Já bastante acanhada quando tomada isoladamente, a malha metroferroviária brasileira se revela insignificante quando comparada às de alguns países do Primeiro Mundo. Apenas a região de Paris, na França, tem 567 quilômetros de linhas, o que equivale a 65% da malha do Brasil inteiro. Londres, na Inglaterra, e Nova York, nos Estados Unidos, são servidas, cada uma delas, por cerca de 400 quilômetros de rede.
A pequena extensão dos trilhos urbanos explica a parca participação desse modal na oferta de transporte público no Brasil. A rede metroferroviária do país movimenta apenas 4 milhões de passageiros por dia, ou 7% da população usuária de transporte de massa. E mais da metade do total de usuários - 2,5 milhões - está concentrada na Grande São Paulo.
"É uma rede que está, sem dúvida, muito aquém das necessidades de um país como o Brasil, onde quase um terço da população, ou cerca de 50 milhões de pessoas, vive apertado em algumas grandes cidades", diz Decio Tambelli, presidente da Comissão Metroferroviária da ANTP.
Tambelli acrescenta que, além de pequenas, as redes brasileiras estão ainda mal distribuídas, concentrando-se em algumas regiões e apresentando baixíssima densidade em outras. Perto de 70% da malha metroferroviária está localizada em São Paulo (309 quilômetros) e no Rio de Janeiro (262 quilômetros), as duas maiores metrópoles do país.
Nas outras 11 cidades brasileiras com mais de 1 milhão de habitantes, a extensão da malha é comparativamente embrionária. As redes dessas localidades apresentam, em geral, apenas uma ou duas linhas de pequeno ou médio porte (em São Paulo, elas são dez, somando-se o metrô e as linhas de subúrbio).
O metrô de superfície do Recife tem, por exemplo, somente 21 quilômetros de extensão. O de Porto Alegre, 34 quilômetros. O de Belo Horizonte, com a terceira maior região metropolitana do país, 28 quilômetros. Salvador, Fortaleza e Brasília possuem metrôs com extensões ainda menores.
"Isso é grave, na medida em que quase todas as grandes capitais contam hoje com cinturões industriais em expansão", adverte o consultor de transportes Ronaldo da Rocha, que é também vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer). "São cidades em que um sistema de transporte de massa eficiente é quase precondição de desenvolvimento."
Corredores
A falta de investimentos não se resumiu aos sistemas de transporte de grande capacidade. Atingiu também os corredores exclusivos de ônibus, modalidade de média capacidade que já é tida (erroneamente, segundo os especialistas) como uma espécie de "metrô dos pobres" em muitas capitais, ou seja, uma alternativa ao próprio metrô e aos trens de subúrbio.
Com exceção de Curitiba, que é mais bem servida desses equipamentos (72 quilômetros no total), as metrópoles brasileiras contam apenas com um ou outro corredor exclusivo. Na Grande São Paulo, os corredores efetivamente implantados não chegam a uma dezena. Na capital paulista propriamente dita, cuja população é expressivamente maior do que a de Curitiba, os corredores exclusivos apresentam uma extensão de apenas 37 quilômetros, além de outros 100 quilômetros de vias em que os coletivos têm alguma prioridade.
Esse quadro mostra que o meio de transporte público mais usado no Brasil continua a ser o tradicional ônibus urbano, modalidade de baixa capacidade por excelência e que, ainda por cima, apresenta a desvantagem de concorrer com os automóveis particulares nas absurdamente congestionadas ruas e avenidas das capitais do país.
A ineficiência do sistema brasileiro de ônibus urbanos é lendária. A velocidade média desses veículos em metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife varia entre 6 e 8 quilômetros por hora. Andando, uma pessoa desloca-se a 4 quilômetros por hora.
Até em cidades mais bem servidas por trilhos há uma excessiva dependência dos ônibus. É o que acontece, por exemplo, na capital paulista. Embora seu sistema metroferroviário se desdobre sobre todos os pontos cardeais da região metropolitana, ele é formado por vias basicamente estruturais, ou seja, os passageiros necessitam de linhas integradas de ônibus que cheguem a seus bairros.
Essa intermodalidade, se de um lado é uma verdadeira bênção para os usuários mais pobres, de outro não é suficiente para desestimular aqueles mais bem providos de renda de usar o automóvel. Por isso, embora apresente uma taxa somente mediana de motorização (um automóvel para cada oito habitantes, contra um para dois nos países do Primeiro Mundo), o Brasil cultiva de maneira quase generalizada o hábito do uso do veículo particular para ir ao trabalho.
Congestionamentos
Calcula-se que, nas metrópoles brasileiras, um terço das viagens seja hoje feito com transporte público e outro terço com automóvel - um evidente absurdo em termos de engenharia de tráfego. O terço restante corresponde aos deslocamentos a pé (ou de bicicleta, veículo pouco difundido nos grandes centros como meio de transporte, com raras exceções, como o Recife). Com esse excesso de veículos particulares distribuídos por toda a cidade - o número de automóveis em São Paulo ultrapassa os 2 milhões -, os bairros não se vêem livres dos congestionamentos, como recomendam os manuais de urbanismo.
Nada mais natural, portanto, do que um dado revelado por uma pesquisa da Companhia do Metrô de São Paulo, segundo o qual o paulistano pode gastar até cinco horas para ir ao trabalho e voltar para casa se os pontos de origem e de destino estiverem em lados opostos da cidade. Isso, mesmo que parte do trajeto seja feita por trilhos.
O tamanho dessa deseconomia já foi calculado por especialistas paulistanos. A região metropolitana de São Paulo perde, todos os anos, cerca de R$ 22 bilhões em congestionamentos (que rebaixam a produtividade das empresas), consumo de combustível e acidentes de trânsito. Este último ponto já se tornou também um problema de saúde pública, mais até do que a poluição provocada pelo excesso de veículos. Bem mais da metade dos 30 mil mortos e 120 mil feridos em acidentes de trânsito anualmente no Brasil estão indo para o trabalho ou voltando para casa.
Por tudo isso, a pergunta óbvia é: por que o país assistiu impassível ao crescimento da demanda potencial, sem tirar do papel pelo menos alguns dos projetos de expansão metroferroviária desenhados ainda nos anos 1970 e 80?
Prioridades
A primeira razão é política, segundo o consultor Ronaldo da Rocha. Metrôs e ferrovias de subúrbio são, além de vorazes sugadores de verbas orçamentárias, empreendimentos de médio e longo prazo, quase sempre iniciados por um governante e inaugurados por outro.
Em uma democracia como a brasileira, na qual os investimentos em obras costumam trazer grandes dividendos políticos, a preferência dos administradores vem recaindo, claramente, sobre projetos mais baratos e de execução mais rápida, como corredores de ônibus ou mesmo obras viárias, que podem ser inauguradas pelo próprio idealizador.
A segunda razão teria origem econômico-administrativa e seria fruto do enxugamento do Estado brasileiro promovido a partir do começo dos anos 1990. Unidades mais ricas da federação, como São Paulo, Rio de Janeiro e o Distrito Federal, assumiram todos os sistemas metroferroviários existentes em seus territórios, mas o mesmo não aconteceu com os das mais pobres, como Bahia e Pernambuco, que continuaram sob a responsabilidade da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU).
Anteriormente, apenas a administração dos metrôs de São Paulo e do Rio de Janeiro (e depois o do Distrito Federal) estava nas mãos dos estados, enquanto a dos trens de subúrbio de todo o país ficava com o governo federal. Com o novo desenho, o planejamento integrado do transporte de grande capacidade foi pulverizado, por assim dizer - até a década de 1990, as ferrovias metropolitanas eram tratadas no âmbito dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs). Os estados mais ricos passaram a tocar por conta própria seus projetos de expansão, e os mais pobres continuaram a depender de verbas federais para fazer o mesmo.
Nem é preciso dizer que, sem a força política indutora dos estados mais ricos, essas verbas minguaram. Nos últimos dez anos, os investimentos da CBTU foram de pouco mais de US$ 2 bilhões em todo o país. Mas deve ser incluído nesse total o considerável montante direcionado pela companhia à aquisição de material rodante e à modernização de estações e trilhos, que estavam em más condições quase em toda parte.
Até uma tradicional fonte de recursos do segmento, o Cide (o antigo Fundo Rodoviário Nacional, hoje mais conhecido como "imposto sobre combustíveis"), deixou de irrigá-lo como poderia. O Cide tem sido responsável por uma arrecadação média de R$ 10 bilhões anuais, mas em 2004 apenas 29% foi destinado à área de transporte - e transporte em geral, não só o público.
Assim, projetos federais de expansão metroferroviária, como os de Salvador e de Fortaleza, após um elogiável impulso inicial depois da virada dos anos 2000, caíram numa espécie de sono profundo. Hoje, as obras estão praticamente paralisadas. O metrô de superfície de Fortaleza, por exemplo, tem financiamento assegurado pelo Banco Mundial (Bird), mas a instituição não pode liberar a verba porque o governo federal ainda não conseguiu reunir os recursos para a obrigatória contrapartida.
Constância
Enquanto isso, em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, os canteiros de obras metroferroviárias vêm sendo abertos com regularidade (embora, naturalmente, menor do que a desejada pelos usuários). Desde 1995, ano em que a CBTU paulista foi absorvida pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), juntamente com a Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), companhia de longo percurso que administrava algumas linhas de subúrbio, o governo estadual investiu US$ 2,2 bilhões nos dois sistemas - uma média de US$ 250 milhões por ano -, valor maior do que o despendido pela CBTU em todos os sistemas federais do país.
Isso foi suficiente para o governo paulista abrir três novas linhas de subúrbio (nas regiões sul, leste e oeste), estender duas linhas do metrô (norte-sul e leste-oeste) e iniciar a construção de uma quarta linha, a centro-sul, e as obras de expansão da linha Paulista, no sentido sudoeste-sudeste da cidade. Vias férreas e estações de subúrbio também foram modernizadas, e novos trens adquiridos.
Ao todo, a Grande São Paulo viu a abertura de nada menos de 21 estações nos dois sistemas, que começaram também a ser integrados de forma efetiva em termos operacionais e de bilhetagem. Hoje, já efetivamente implantados, a CPTM possui 251 quilômetros de vias e a Companhia do Metrô, 58 quilômetros.
"Temos projetos de expansão orçados em US$ 10 bilhões até 2020", afirma Jurandir Fernandes, secretário de Transportes Metropolitanos do estado de São Paulo, garantindo que haverá recursos para bancar o ambicioso plano.
Já no Rio de Janeiro, onde o grosso da malha metroferroviária é constituído por trens de subúrbio (227 quilômetros, contra 35 quilômetros do metrô), os investimentos concentraram-se na rede administrada pela SuperVia, empresa que se tornou responsável pela malha da CBTU fluminense. Desde 1998, ano da transferência, foram aplicados R$ 355 milhões em ampliação, melhorias e projetos de integração com ônibus e metrô, dentro do chamado Programa de Investimentos na Ferrovia.
Essa iniciativa, que prevê ainda a implantação de vários outros projetos, está orçada em US$ 244 milhões, que serão parcialmente financiados pelo Bird. "Há seis anos, transportávamos 145 mil passageiros por dia. Hoje, graças aos investimentos, a demanda já é de 380 mil", diz Regina Amélia Oliveira, diretora de desenvolvimento da empresa.
Faltam recursos
Dada a manifesta insatisfação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a situação das redes metroferroviárias federais, é possível que elas passem a receber mais investimentos já a partir deste ano. Pelo menos em termos de planejamento, algo já começou a ser feito. A CBTU está, desde o ano passado, subordinada ao Ministério das Cidades, que tem como prioridade tratar o transporte público com a mesma ênfase que vem sendo dada à habitação, área que sofreu profunda reengenharia institucional em 2004. É intenção do ministério retomar obras tidas como prioritárias e mesmo tirar algumas idéias do papel.
Bons projetos metroferroviários, diga-se, não faltam a nenhuma metrópole - o que falta mesmo é dinheiro. Praticamente todos eles têm como objetivo fazer da ferrovia, por meio de ampliações, um elemento estrutural do transporte de massa da respectiva região, como fizeram São Paulo e Rio de Janeiro. É um modelo metroferroviário considerado pelos especialistas o mais acessível a países pobres e que, por isso, estão impossibilitados de construir redes de metrô capilarizadas, como as de Paris ou Londres.
A Trensurb, de Porto Alegre, pretende, por exemplo, estender a única linha de metrô de superfície da cidade, que liga o centro ao norte da região metropolitana (atendendo os municípios industriais de Canoas e São Leopoldo), até o importante centro calçadista de Novo Hamburgo. Uma nova linha também deve ser implantada em médio prazo na região central, de modo a aliviar alguns corredores de tráfego hoje com demanda excessiva de carros e de ônibus. "Estamos ainda discutindo o traçado dessa linha, que poderá até ser circular", diz Humberto Kasper, superintendente de desenvolvimento e expansão da Trensurb.
Belo Horizonte também planeja construir duas novas linhas férreas estruturais, enquanto o Recife - que já conta com duas, na direção das industrializadas regiões sul (Jaboatão) e oeste (Camaragibe) - quer implantar uma outra com a mesma finalidade.
A prefeitura do Recife e a CBTU estão tentando ainda dotar as linhas existentes da maior intermodalidade possível, aproveitando inclusive as particularidades do tráfego local - há nada menos de 700 mil bicicletas no trânsito da cidade, e os acidentes envolvendo ciclistas são diários.
"Vamos construir ciclovias nas áreas mais estratégicas e instalar bicicletários no maior número possível de estações", afirma Manoel Damasceno, diretor de projetos e articulações da Companhia de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU) do Recife.
Espera-se apenas que todos esses projetos espalhados pelo país sejam encaminhados a tempo de prover os trabalhadores que voltarem para o mercado de um transporte digno. Isto é, se a retomada da economia acontecer mesmo.