Postado em 01/07/2004
Cresce afluxo de visitantes em Aparecida, capital brasileira da fé
RAFAELA MÜLLER
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Cinco velas, acesas com cuidado por Maria da Conceição Quirino, de 60 anos, se unem às dezenas que iluminam a sala. A fumaça delineia os raios de sol que passam pelas frestas das janelas. Uma das velas que dona Maria segura é maior que ela. "Tem de ser do tamanho da pessoa que faz o pedido ou agradecimento à santa", explica a devota, que intercede pelo marido, vítima de bronquite crônica. Com outras três velas, menores, pede por saúde e emprego para familiares. E a última é para agradecer "por meu filho ter arrumado um serviço", diz. "Nossa Senhora Aparecida é muito poderosa."
A devoção à santa, consagrada padroeira do Brasil em 1931, leva mais de 7 milhões de pessoas, anualmente, ao seu santuário, em Aparecida (SP). Os romeiros vêm de todo o país, mas predominam paulistas, cariocas e mineiros - como dona Maria, que viajou por 12 horas no ônibus desde Curvelo, em Minas Gerais, e diz ter perdido a conta de quantas visitas já fez ao santuário.
A Basílica Nova pode ser vista de longe. Construída entre 1955 e o início dos anos 80, é a segunda maior do mundo, com 18 mil metros quadrados de área coberta - só perde para a de São Pedro, em Roma. Pode abrigar 45 mil pessoas durante uma de suas numerosas missas - aos domingos, quando o movimento de romeiros é maior, há sete horários. As celebrações são transmitidas por um circuito interno de televisão para toda a basílica - inclusive no subsolo, onde fica a Sala dos Milagres -, e algumas são exibidas na Rede Vida e na TV Cultura.
Ao fundo da igreja, é sempre grande a fila para rezar diante da santa - uma pequena imagem de barro cozido que representa Nossa Senhora da Conceição. Encontrada nas águas do rio Paraíba do Sul em 1717, presa na rede de três pescadores da região - que então conseguiram farta pescaria onde antes nada encontravam -, foi chamada de Aparecida. O povoado onde moravam os pescadores recebeu o mesmo nome, e as romarias para lá logo começaram.
O mês de outubro é o que mais atrai visitantes: são 200 mil pessoas na festa dedicada à santa, no dia 12 - mais de cinco vezes a população local, de quase 36 mil habitantes. Com bastante antecedência, os 17 mil leitos oferecidos nos 136 hotéis da cidade já estão reservados.
Este ano, o aumento do afluxo começa mais cedo, em setembro, quando a imagem recebe uma nova coroa. A primeira, dada pela princesa Isabel no fim do século 19, coroou a santa em 1904, há exatos cem anos. O evento comemorativo deve ser transmitido em caráter experimental pela TV Aparecida, novo empreendimento que vem somar-se à Rádio Aparecida, difundida nacionalmente desde 1954, com o intuito de divulgar o santuário.
Investimentos como esse são iniciativa dos padres da Congregação do Santíssimo Redentor, responsáveis pela administração do local. Eles vêm priorizando nos últimos anos a construção de novos equipamentos e a promoção de eventos e festas para melhorar o atendimento e atrair mais visitantes. Em 1998, inauguraram o Centro de Apoio ao Romeiro, nome do maior shopping religioso da América Latina, com um custo aproximado de R$ 30 milhões.
Fora dos muros do santuário - tido por muitos como uma cidade dentro da cidade de Aparecida, em virtude de sua crescente auto-suficiência em serviços -, a prefeitura busca promover o turismo. Afinal, as atividades comerciais e produtivas ligadas ao setor são responsáveis por 90% do PIB da cidade e empregam cerca de 80% de sua população economicamente ativa.
Em Aparecida, expressão religiosa e administração de empreendimentos de consumo e lazer de grande porte se encontram, revelando novas formas de entender e participar de uma das devoções populares mais tradicionais do Brasil.
Religião em alta?
Em 1991, 83,8% da população brasileira era composta de católicos, percentual que caiu para 73,8% em 2000, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em Aparecida, no entanto, o número de visitas ao santuário cresceu 42,3% no mesmo período, passando de 5,2 milhões para os atuais 7,4 milhões. Estradas melhores, maior facilidade para adquirir carro próprio e a atuação crescente das paróquias locais, que organizam excursões de ônibus, são alguns fatores que explicam esse aumento.
"Os católicos estão indo mais a Aparecida do que antes", diz Edin Sued Abumanssur, doutor em antropologia e professor do Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ele lembra que a força da devoção a Nossa Senhora Aparecida também está ligada a um projeto político, especialmente forte durante o período do governo militar, de construir uma identidade nacional que unificasse o país.
"Hoje, a Renovação Carismática Católica, muito centrada na figura de Maria, também contribui para esse aumento", acrescenta Abumanssur. Sensível à popularidade da nova tendência, o santuário organiza há três anos o Encontro do Movimento Carismático, que reuniu em sua última edição, em julho, cerca de 7 mil pessoas.
Para o padre Darci José Nicioli, administrador do santuário, o fim do milênio despertou um anseio por religião. "Nunca se falou tanto sobre o assunto, no Brasil e no mundo, como nos últimos tempos. Muito mais, por exemplo, do que na década de 60 - anos da liberdade, da redescoberta do antropocentrismo. Isso trouxe conquistas, mas também foi exacerbado, e por isso hoje as pessoas voltam-se para Deus, entendem que a sabedoria humana sozinha não resolve os problemas da vida nem lhe dá um sentido."
Promessas e milagres
As fotos coladas no teto lembram um grande álbum de casamento. Mas não são de uma única noiva, e sim de centenas. Um pouco mais ao lado, o branco dos vestidos dá lugar ao do gesso, que recobre pernas, pés e braços quebrados, em fotos de uma infinidade de pessoas.
Expostos na Sala dos Milagres, esses ex-votos (imagens e objetos de vários tipos, alusivos ao pedido de uma graça) atestam a gratidão dos devotos a Nossa Senhora Aparecida. Uma foto demora meses até ser exibida, tal o volume recebido, segundo conta uma funcionária que trabalha no local.
Entre os ex-votos, há cabeças, pés e mãos de cera pendurados no teto. Outros objetos foram organizados por temas em vitrinas ou nas paredes, para o ambiente ficar "mais estético e didático", em face da desorganização que havia antes, segundo o padre Nicioli. São mantos e coroas da santa, instrumentos musicais, maços de cigarros e garrafas de bebida alcoólica de quem largou o vício e até peças deixadas por estrangeiros.
Alguns devotos chegam a levar o equipamento de soro utilizado durante o período em que estiveram internados em hospitais. "Eles serão incinerados", explica uma funcionária de luvas, encarregada de recolher os objetos. Aparelhos ortopédicos em bom estado são reaproveitados, assim como roupas. Tudo o que é deixado ali recebe a bênção do padre. "Os ex-votos também servem para mostrar que o devoto participa dessa zona onde a santidade se manifesta", diz José Rogério Lopes, antropólogo e professor da Universidade de Taubaté.
O ciclo da promessa recomeça nos pedidos escritos em pequenos pedaços de papel, depositados em urnas. A maioria dos devotos, no entanto, prefere firmar o pacto com a santa diante de sua imagem, no fundo da igreja. As mãos, em busca de um contato com o divino, encostam-se à parede onde, mais acima e protegida por um vidro e pelo olhar atento de um segurança, fica a santa. "A imagem figura algo que não é ela própria", diz Lopes. "Mas, ao mesmo tempo, é como se ela incorporasse o que representa e o poder que lhe é atribuído."
Lembrancinhas
Se a santa verdadeira está bem protegida, suas réplicas estão ao alcance das mãos no comércio de Aparecida, a preços que vão de R$ 1 a mais de R$ 100. São 1,1 mil lojas - cerca de 450 só no Centro de Apoio ao Romeiro -, além de mais de 3 mil barraquinhas espalhadas pela cidade. Nestas, reproduções da santa estão com freqüência ao lado de bichos de pelúcia e brinquedos. No shopping, predominam os artigos religiosos, assim como nas lojas mais antigas, no centro histórico da cidade - próximo da Basílica Velha, de 1888, onde a imagem de Nossa Senhora ficou até 1982.
A produção local, responsável por cerca de 50% das vendas aos turistas, vem se recuperando de uma crise que durou anos, devido à entrada maciça de artigos vindos do Paraguai. Pedro Campos de Castro, dono das lojas Santo Antônio, com uma filial no shopping e outra na cidade, diz que ainda importa muitas mercadorias, principalmente da China e da Coréia do Sul. "Eles imitam tudo, inclusive produtos italianos, e sai mais barato", afirma.
"Somando as classes A e B, que compõem 26% dos visitantes do santuário, à C, temos 50% de público que consome", diz o padre Nicioli. "Houve um aumento desse público nos últimos anos." Uma pesquisa encomendada pelo santuário em 2001 indica que os visitantes estão dispostos a gastar em média R$ 40,70 por pessoa no Centro de Apoio ao Romeiro, incluindo despesas na praça de alimentação. Carmello Moidim Jr., administrador do shopping, estima que de 70% a 80% dos romeiros passam pelo local. "É prático", diz ele, referindo-se à proximidade da Basílica Nova. "Aqui se vende melhor", acrescenta Pedro de Castro. As lojas nos arredores da Basílica Velha, sempre visitada pelos romeiros, também têm bastante movimento. Mas, de acordo com Ângelo Leite, presidente da Associação Comercial e Industrial da cidade, houve uma queda nas vendas desde que o shopping começou a funcionar.
Arrecadação e obras
O shopping foi construído, segundo Moidim, porque a cidade não se estruturou na velocidade do crescimento da peregrinação. "Havia uma carência de qualidade e conforto no acolhimento." Segundo Ângelo Leite, essa melhoria no atendimento refletiu-se no comércio fora do santuário. Retirar os vendedores ambulantes dos pátios do santuário foi outro objetivo do shopping, diz o padre Nicioli. "O romeiro não tinha sossego para praticar sua devoção", afirma.
Parte do aluguel pago pelos lojistas do Centro de Apoio ao Romeiro hoje amortiza as dívidas contraídas na construção do local. "Atualmente, o santuário se vê obrigado a encontrar outras fontes de renda, para poder se manter e continuar a construir", explica o padre. Uma das alternativas é o recebimento de royalties pelo uso do nome do santuário em produtos, como acontece com uma marca de água mineral.
A Campanha dos Devotos, pela qual os fiéis podem fazer contribuições espontâneas a distancia, hoje financia as obras de acabamento na Basílica Nova. As doações feitas durante a visita ao santuário - R$ 1,02 por pessoa, em média - são inexpressivas para as obras, segundo o padre Nicioli. "Do ponto de vista religioso, o valor não faz diferença, o que conta é o ato de doar. Mas, sob o aspecto administrativo, torna-se importante, porque a manutenção do espaço depende disso", diz ele. Hoje, a Basílica Nova conta com 1.126 sanitários, 686 funcionários - incluindo seguranças particulares e atendimento médico - e até estação própria de tratamento de água. Além disso, o santuário sustenta a Casa do Pequeno Trabalhador - um projeto educativo para quase 500 crianças - e um asilo para cerca de 60 idosas.
Tempo de festa
"Acolher bem também é evangelizar." A frase dá as boas-vindas, na placa de entrada do shopping. "Vir ao santuário é uma atividade religiosa, mas é também um momento de festa. Para alguns, é o grande passeio do ano", diz o padre Nicioli. "E não se faz festa onde não há conforto", acrescenta.
O sentimento de sacrifício - visto como libertador e parte do pagamento da promessa - diminui com mais conforto, mas permanece importante, expressando-se no hábito de andar sobre os joelhos na chegada à basílica e ao seu altar, por exemplo. Alguns fiéis ainda preferem vir à cidade a pé, como antigamente. Mas entre eles cresce hoje um público de maior poder aquisitivo, interessado em roteiros que mesclam ecoturismo e religiosidade.
Festas sintonizadas com os tempos de eventos de massa e de mídia estão em alta, atraindo visitantes e riquezas para a cidade e a região. Este ano, o santuário organizou seu primeiro rodeio do peão de boiadeiro - a prefeitura já realizou três. Mesmo em festejos tradicionais, como o de São Benedito, a presença de cavaleiros no estilo do cowboy norte-americano é grande - já virou até tradição, segundo conta a antropóloga Cristina Schmidt em seu livro Viva São Benedito! Festa Popular e Turismo Religioso em Tempo de Globalização. O santuário ainda prevê a inauguração em 2006 de um centro de eventos, contíguo ao shopping, com áreas de lazer e esporte.
Hoje, a maioria dos romeiros chega e vai embora no domingo. Mas o número de visitantes que permanecem por alguns dias tem aumentado, destaca Márcia Filippo, secretária municipal de Turismo.
Turista ou romeiro?
"Turista e romeiro, depende do enfoque", responde, pragmático, o padre Nicioli, quando perguntado sobre como prefere chamar o visitante que vai a Aparecida. "Para o lojista e para mim, quando falo em litros de água consumidos no santuário, é turista. Mas quando celebro uma missa, ou se a pessoa está rezando, é romeiro." Já Márcia Filippo prefere falar em turista religioso. "Para mim, romeiro era o que chegava na carroceria de caminhão. Hoje, ele vem de ônibus de primeira linha, escolhe hotel com frigobar e TV no quarto, procura mais o lazer e visita pontos turísticos que não têm ligação direta com a religiosidade."
Mas, afinal, o que resulta do encontro entre religião, de um lado, e turismo, comércio e lazer, de outro? Edin Abumanssur lembra que o comércio sempre esteve ligado aos centros de peregrinação. "Já nos relatos bíblicos, observa-se que a religião (...) favoreceu o comércio em torno dos santuários. (...) Na Idade Média, muitas cidades dependiam das peregrinações para movimentar a economia local", escreve ele no livro Turismo Religioso: Ensaios Antropológicos sobre Religião e Turismo. Também vale lembrar que devoção, festa e diversão sempre se misturam na cultura popular, tornando difícil a distinção entre o sagrado e o profano.
A diferença hoje é que santuários como Aparecida contam com uma verdadeira indústria de turismo de massa, que se mantém em expansão graças a um sistema eficaz de aproveitamento da presença do romeiro. "Uma coisa é o suporte de acolhimento, que surge naturalmente em torno de um centro de peregrinação. Outra é ter um mercado cultural padronizado para não só atender o devoto, mas também gerar lucro com sua presença", diz José Rogério Lopes.
Segundo Abumanssur, "a religião mesma se torna objeto de consumo", ainda que a devoção continue a ser a motivação central da viagem. Isso porque ela se liga cada vez mais ao tempo de lazer (o final de semana, o feriado), que para o homem moderno se opõe ao de trabalho e está associado, em geral, à possibilidade de consumir e se divertir. Ocorre também, escreve o antropólogo, uma "padronização do produto religioso", para que ele possa "ser vendido a diferentes grupos sociais de diferentes localidades". Em Aparecida, isso seria visível na "organização centralizadora da expressão religiosa pela Igreja". A própria auto-suficiência do santuário, fornecendo "tudo" o que é necessário ao romeiro no mesmo espaço - sugerindo-lhe assim os caminhos para demonstrar sua devoção -, seria uma forma de a Igreja manter seu poder.