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Vítimas do progresso

Postado em 01/07/2004

Habitantes de áreas alagadas por barragem lutam por seus direitos

CARLOS JULIANO BARROS


Hidrelétrica de Candonga / Foto: Carlos Juliano Barros

"Depois que a barragem chegou, este povoadinho virou um inferno." O desabafo de José Quirino reflete o clima que reina entre os habitantes de Santana do Deserto, um acanhado distrito do não menos humilde município de Rio Doce, a cerca de 150 quilômetros de Belo Horizonte. Agricultor na época da cheia e garimpeiro quando o nível das águas baixava, Quirino sempre dependeu do rio que dá nome à cidade onde mora para ganhar a vida - seja para pegar os peixes e tocar o roçado que garantiam sua subsistência, seja para faiscar o ouro que costumava retirar a fim de completar o orçamento doméstico. Porém, ele agora já não pode mais se dedicar a essas atividades e tem dúvidas quanto ao destino dos vizinhos de sua vila. "Quem precisa trabalhar vai ter de sair daqui. Só vão ficar os aposentados", sentencia.

A causa de tanta desesperança é a instalação da Usina Hidrelétrica (UHE) de Candonga. O empreendimento foi construído em parceria pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e pela Alcan Alumínio do Brasil, entre junho de 2001 e março deste ano, com o intuito de represar a água necessária para fazer girar as turbinas da barragem e produzir energia destinada ao consumo exclusivo de indústrias dessas duas gigantes do setor de minérios.

A obra consumiu quase R$ 200 milhões e alagou 2,8 quilômetros quadrados de Rio Doce e de outro município também localizado numa exuberante região da Zona da Mata de Minas Gerais: Santa Cruz do Escalvado. Nesta cidade, por exemplo, todas as 120 famílias que compunham a comunidade de São Sebastião do Soberbo foram obrigadas a deixar as áreas em que tradicionalmente residiam para ceder lugar ao lago da hidrelétrica e se mudar para um núcleo urbano construído pelo consórcio, batizado de Nova Soberbo. Com isso, a UHE não apenas redesenhou a bela paisagem local, como causou uma reviravolta nos costumes das populações que viviam à margem do rio Doce.

E não foram apenas os moradores cujas casas acabaram submersas que tiveram seu cotidiano revolucionado. Havia ainda agricultores que não moravam no local, mas tiravam seu sustento de terras que não lhes pertenciam - as quais hoje também estão debaixo de água -, mediante algum acerto com os verdadeiros proprietários. Sem falar naqueles que durante anos driblaram a pobreza procurando ouro no rio.

"A construção de hidrelétricas como a de Candonga não é um problema apenas ambiental, mas também social. Não temos dúvidas de que o drama das populações afetadas por essas obras é pouco conhecido pela opinião pública e pelo próprio governo federal. Mas só resolveremos isso com organização", afirma Gilberto Cervinski, coordenador nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB - ver texto abaixo).

As populações ribeirinhas de Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado começaram a perder o sono em janeiro de 2000, quando o Consórcio Candonga, inicialmente formado pela CVRD e pela Energia Elétrica, Promoção e Participações Ltda. (EPP), deu o lance mínimo exigido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) - R$ 181 mil - e saiu vencedor do leilão que negociava a exploração do potencial energético daquela região. No ano seguinte, a Alcan comprou os 50% das ações do consórcio que pertenciam à EPP, pagando uma importância correspondente a cem vezes o valor desembolsado no leilão. Uma pechincha, já que os 140 MW de potência instalada da barragem, suficientes para abastecer uma cidade de quase 200 mil habitantes, vão poupar mensalmente às duas empresas gastos de milhões de reais com eletricidade.

Porém, uma queda-de-braço entre o empreendedor e os afetados pela barragem vem se arrastando há tempos. As queixas dizem respeito às contrapartidas oferecidas pelo consórcio para contornar os impactos gerados pela obra. Os moradores de Nova Soberbo afirmam que os terrenos das casas construídas no núcleo urbano para onde tiveram de se mudar não garantem o mesmo nível de vida que possuíam quando estavam à beira do rio Doce. Os agricultores instalados nos assentamentos rurais também reclamam do local e do tamanho dos lotes que receberam.

Não são poucos os que ainda lutam para ter seus direitos reconhecidos, como José Quirino e alguns de seus vizinhos de Santana do Deserto. Só de garimpeiros, o MAB da região enviou uma lista com mais de 50 nomes ao Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) de Minas Gerais - órgão responsável pelo processo de licenciamento da usina.

"Existem coisas que dinheiro nenhum pode pagar ao atingido. Não se trata apenas da terra, mas da estrada da roça que o agricultor abriu com sua enxada; o terreiro onde suas crianças brincavam; sua comunidade. Enfim, os laços afetivos que tinha com o local", afirma o deputado federal Adão Pretto (PT-RS), um dos fundadores da Frente Parlamentar em Defesa dos Atingidos por Barragens (ver texto abaixo).

Reativação econômica

Uma obra do porte da UHE de Candonga passa por várias etapas até que seu funcionamento seja autorizado definitivamente. Para chegar à última fase do processo e obter a licença de operação, o empreendedor precisa desenvolver uma série de ações para compensar os impactos ambientais, sociais e econômicos gerados pela construção.

"O problema é que, no dia 30 de março, o Copam não poderia ter concedido a licença para o consórcio sem que tivessem sido resolvidas todas as pendências", afirma Leonardo Rezende, consultor jurídico do Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab).

Mesmo passados três anos desde o início da construção da usina, ainda existe um grande impasse. Os atingidos argumentam que os lotes oferecidos pelo consórcio, tanto para os assentamentos rurais como para as casas de Nova Soberbo, não são adequados para a aplicação de medidas efetivas que assegurem trabalho e tranqüilidade às famílias desalojadas. "Antes elas possuíam terras férteis e planas, próprias para o plantio de diversas culturas, pois viviam perto do rio. Agora, estão numa região de morros, numa área que não é suficiente para garantir a qualidade de vida que tinham antes. Por enquanto, conseguem se manter porque ainda contam com cestas básicas", argumenta Alexandre Vieira, assessor do Nacab.

Entretanto, para a representante do consórcio nas negociações, Gleuza Jesué, "não dá para dizer que uma obra como esta não trará impacto. Apesar disso, estamos tentando propor ações de geração de renda para os atingidos há muito tempo. Mas o que eles querem não vai necessariamente ao encontro de uma realidade factível de ser implementada".

Leonardo Rezende rebate: "o Plano de Reativação Econômica precisava ter sido concluído antes da concessão da licença de operação". Utilizando justamente esse argumento, o Nacab entrou com uma ação na Justiça e conseguiu em abril deste ano uma liminar que impedia o enchimento do lago de Candonga, até a resolução das pendências.

Contudo, as prefeituras de Rio Doce e de Santa Cruz do Escalvado também resolveram participar do jogo. Valendo-se de um recurso só possível ao poder público, "em nome dos interesses econômicos municipais", cassaram a liminar obtida pelo Nacab. As cidades vão receber de R$ 60 mil a R$ 70 mil por mês, entre pagamento de royalties e de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) gerados pela hidrelétrica, de acordo com Geraldo Aquino, prefeito de Santa Cruz - que também já havia sido contemplada com algumas obras bancadas pelos empreendedores, como a reforma do seu ginásio poliesportivo e o asfaltamento de estradas na zona rural.

"A barragem é uma realidade, e o consórcio não vai fugir dessas pendências porque elas já são de conhecimento do Copam e da Justiça", justifica Aquino. O reservatório começou a ser enchido no final de junho. "Retardar a formação do lago só iria adiar a entrada de recursos importantes para a prefeitura", acrescenta.

Mas não é essa a preocupação das organizações que vêm auxiliando a população afetada pela barragem de Candonga. "Se com o lago vazio o consórcio já não queria negociar, imagine agora com ele cheio", declara Sônia Loschi, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Na opinião de Gilberto Cervinski, o principal problema é que os atingidos sempre acabam reféns da boa vontade das construtoras de barragens. "São as empresas que decidem os direitos deles, analisando o custo que isso acarretará para o empreendimento", afirma.

Favela rural

Joaquim Brazeiro passou boa parte de sua vida no município de Rio Doce, trabalhando numa terra de que não era dono, e que também foi inundada pelo lago da usina de Candonga. Costumava dividir com o proprietário a colheita que conseguia produzir junto com sua esposa. Essa espécie de acordo é bastante comum nas áreas rurais, e ele se enquadrava numa categoria que se convencionou denominar "meeiro".

Aproximadamente 80 agricultores, na mesma condição de Brazeiro, foram reconhecidos pelo consórcio como atingidos. Duas eram suas alternativas: o reassentamento em áreas de três hectares - a menor extensão registrada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como imóvel rural - ou uma indenização de R$ 25 mil. Assim como outros 19 camponeses, Brazeiro apostou na possibilidade de tocar seu próprio lote, localizado no núcleo do Marimbondo, na margem esquerda do rio Doce. Os demais optaram pelo dinheiro. "Antes, os meeiros não eram donos de nada. Agora, passaram do status de não-proprietário ao de proprietário. E o fato de receberem essa área não significa que tenham de trabalhar somente nela", argumenta Gleuza.

Porém, Brazeiro e sua família não compartilham da idéia de ascensão social da representante do consórcio. Sua esposa, Maria José, é uma das mais abaladas com a mudança de vida imposta pela construção da hidrelétrica. "Eles fizeram uma casa muito bonita, é verdade. Mas de que adianta se a panela está vazia? Não vou arrancar o azulejo para cozinhar", diz.

Acostumada a uma fartura de alimentos que a grande fertilidade do solo que cultivavam proporcionava, hoje Maria José se espanta com o fato de seu marido precisar comprar gêneros como milho e banana. Além disso, na época em que era meeiro, Brazeiro tinha quase seis vezes mais terra para plantar, apesar de não possuir o título da propriedade. A gleba que recebeu do consórcio, diz ele, fica numa região de relevo muito acidentado, o que dificulta bastante a lida diária.

Considerando as queixas e as condições de vida dos colonos, um grupo de agrônomos da Universidade Federal de Viçosa (UFV), contratados como assessores técnicos dos atingidos, contestou as dimensões dos lotes oferecidos pelo consórcio para o reassentamento dos antigos meeiros, nos encontros da comissão especialmente criada no Copam para discutir o Plano de Reativação Econômica da população atingida pela barragem - instalada logo após a concessão da licença de operação, em março deste ano.

Baseados numa legislação de 1964, conhecida por Estatuto da Terra, os agrônomos defenderam a concessão de um módulo rural para cada um dos ex-agricultores ribeirinhos. Esse módulo nada mais é do que o sítio mínimo necessário para a subsistência de uma família, cujas medidas variam de lugar para lugar, determinadas pelo Incra. Na região de Candonga, ele é de 26 hectares. Entretanto, a proposta não foi aceita pelos empreendedores. "Não estamos aqui para fazer reforma agrária. Não é o nosso papel", afirma Gleuza.

"Mas o consórcio também não pode contribuir para a favelização rural", rebate Marcos Helênio Pena, superintendente do Incra-MG. "A questão social já é grave quando há uma mudança de ambiente. Além disso, esses 3 hectares vão inviabilizar a auto-sustentabilidade das famílias, criando uma situação de minifúndio improdutivo", completa. E o prejuízo dos atingidos não pára por aí. Sem um lote do tamanho estipulado pelo módulo rural da região, não terão acesso a uma série de benefícios, como linhas de crédito para produção, além de não poderem contar, no futuro, com a assistência técnica oferecida pelo governo federal aos pequenos agricultores em geral.

Apesar da argumentação apresentada pelos assessores dos atingidos, Carlos Fernando Vianna, presidente dessa comissão especial do Copam, acabou acatando no relatório final das discussões a oferta do empreendedor -, ou seja, confirmou os 3 hectares. "Nós nos baseamos nos estudos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater), que durante dois anos também vai prestar assessoria, paga pelo consórcio, aos agricultores. Não acho que as propostas sejam perfeitas, longe disso. Mas foi o possível diante do impasse que se criou entre as partes", pondera Vianna.

Nessa verdadeira guerra de pareceres, até os órgãos públicos se dividiram. De um lado, a maior autoridade em questão agrária no país, o Incra, duvida do sucesso dos assentamentos propostos pelos empreendedores da UHE de Candonga. De outro, a Emater subsidia essas mesmas propostas, para "provar com estatísticas que os atingidos podem melhorar de vida com pouca terra para trabalhar", critica Sônia Loschi, da CPT.

Existe ainda um fato no mínimo curioso: para os que possuíam documentos que comprovavam a propriedade das áreas inundadas pela hidrelétrica, foi levada em conta a orientação do Incra. "Aqueles que tinham menos de 26 hectares receberam o equivalente a um módulo rural. É um sistema de negociação típico do setor elétrico", explica a representante do consórcio. Para Cervinski, trata-se de uma estratégia com o objetivo de baratear os custos sociais da obra. "As construtoras de barragens possuem um conceito próprio sobre o atingido: é quem detém o título da terra. Porém, na beira dos rios, as populações são compostas de pequenos agricultores, e mais da metade é arrendatária, meeira. Ou seja, não é proprietária", afirma.

Vale lembrar que, desde o ano passado, os atingidos por barragens constam oficialmente do II Plano Nacional de Reforma Agrária, sejam donos ou não das terras onde trabalham. "Por isso, o Incra deve tomar partido nesse processo para fazer o assentamento dessas famílias da maneira devida, garantindo a elas o módulo rural e, conseqüentemente, o acesso a benefícios como o crédito para plantação. Precisa pressionar os estados, que, por sua vez, devem cobrar das empresas", afirma o deputado Adão Pretto.

Para inglês ver

São Sebastião do Soberbo, distrito de Santa Cruz do Escalvado, foi o único povoado totalmente inundado pelo reservatório de Candonga. Era uma comunidade tipicamente rural, com ruas de terra batida e casas muito simples, daquelas que possuem extensas cozinhas, com fogão a lenha. Sua população era composta por uma maioria de agricultores e garimpeiros, passando por pequenos comerciantes, até alguns funcionários públicos. Além de se dedicar a seus trabalhos, boa parte também dependia dos quintais para cultivar uma horta, criar galinhas e porcos, além de colher frutas. A proximidade com o rio era a garantia de terras férteis.

Do alto dos seus 76 anos, os olhos de Maria Marta chegam a lacrimejar quando lembra a operação policial, realizada no começo de maio, que retirou as últimas 14 famílias que ainda resistiam a se mudar para Nova Soberbo - a cidade construída para abrigá-las. Ela se recorda da truculência dos quase 200 policiais mobilizados na blitz e conta que apenas pôde assistir à retirada dos pertences de sua casa pelos homens a serviço do consórcio.

Hoje, Maria Marta ocupa uma residência em Nova Soberbo, mas não se cansa de dizer que está muito "amolada" com a transformação de seus hábitos. "Era uma comunidade rural que agora está alojada num espaço urbano, em casas 'para inglês ver'. O consórcio impôs um conceito de modernidade aos atingidos", afirma Alexandre Vieira, do Nacab. Carlos Fernando Vianna, conselheiro do Copam, também considera que "esteticamente a vida dos habitantes de Soberbo evoluiu. Mas há gente que não troca um casebre de 20 metros quadrados com uma horta no quintal por uma casa três vezes maior na cidade". A representante do consórcio argumenta que essa mudança de perfil foi necessária devido ao local onde foi construída Nova Soberbo. "É uma sede distrital, uma área urbana. Por isso, tínhamos de seguir os pré-requisitos legais e as normas técnicas vigentes", justifica.

"Esta casa é de rico, mas a gente não tem prazer de morar nela", desabafa Maria Helena Alves. Ela também foi reconhecida como meeira, mas, em vez do assentamento rural de 3 hectares, optou pelos R$ 25 mil de indenização. Depositou o dinheiro em um banco e hoje vive em Nova Soberbo, na casa da mãe, que paga as despesas do lar com o salário mínimo que recebe de aposentadoria. "Aqui não há nada para fazer", reclama ela.

Outra queixa dos moradores na cidade é o fato de ninguém possuir a escritura da residência, apesar de muitos já estarem instalados há mais de um ano. A única prova de que um dia serão os donos é um termo de permuta firmado com o consórcio. A representante dos empreendedores atribui essa confusão ao complicado processo de desapropriação da área adquirida para erguer a cidade, mas afirma que "o problema está resolvido e as escrituras, prontas".

As "normas técnicas" adotadas na construção de Nova Soberbo também geraram descontentamento. Gleuza garante que a comunidade foi consultada a respeito da estrutura da cidade e afirma possuir atas com a assinatura de todos que participaram das discussões. Mas, na opinião de muitos deles, os terrenos de 360 metros quadrados destinados a cada família - que correspondem ao tamanho médio daqueles da antiga Soberbo - não são suficientes para garantir o mesmo nível de vida que possuíam antes. Os quintais, que não passam de 200 metros quadrados, são o motivo de maior insatisfação. "A área é muito pequena, e a terra é pura areia. Não dá para plantar nada. Além disso, como é possível criar um porco numa casa como esta?", indaga Maria Helena.

Reconhecendo a complicada situação dos atingidos, o Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais (Ceas) tomou uma atitude inusitada: determinou que o consórcio concedesse a cada uma das famílias de Nova Soberbo uma área destinada a "extensão de quintal", a cerca de meio quilômetro do núcleo urbano. "Confesso que esse conceito é meio estranho. Não é comum haver um quintal que não faça parte do terreno, que não seja contíguo a ele. Mas agora, com a cidade construída, não cabe demolir e fazer outra", afirma Vianna.

O problema, no entanto, não se resume ao fato de essas "extensões" não se localizarem nos fundos das casas. Os assessores técnicos dos atingidos também questionam a dimensão das glebas adicionais de 360 metros quadrados e, principalmente, sua localização - uma área de morro, pouco fértil. Por essa razão, fizeram uma contraproposta na comissão do Copam que debatia o Plano de Reativação Econômica: lotes suplementares de mil metros quadrados, em uma região um pouco mais distante de Nova Soberbo, porém com solo em melhores condições. "Eles estão numa fase de transição e precisam de segurança alimentar. A barragem tem de vir para melhorar a vida deles", justifica Hélder Freitas, um dos assessores dos atingidos.

Entretanto, no mesmo relatório do Copam que sacramentou os 3 hectares de terra para os assentados da área rural foi novamente acatada a oferta dos empreendedores, ou seja, foram confirmados os 360 metros quadrados para a extensão dos quintais, na cidade - com base também nas análises técnicas da Emater. "Isso deveria ter sido decidido há dois, três anos. Na época da construção de Nova Soberbo, firmou-se um acordo que, ao que tudo indica, foi malfeito. Agora estão tentando consertar", diz Vianna. Na opinião de Freitas, "o problema é que os atingidos só foram se organizar no fim do processo, pois estavam dispersos e iludidos pelas promessas do consórcio. Se os empreendedores cederem agora, será uma conquista para o movimento e um precedente que se abrirá nos processos de construção de outras barragens".

Em Diogo de Vasconcelos, a poucos quilômetros da região da barragem de Candonga, a Alcan possui outra usina: a Pequena Central Hidrelétrica de Fumaça, com potência de 30 MW. "Lá, o menor assentamento que conseguimos foi de 13 hectares e o maior, de 22. O trabalhador rural não necessita do dinheiro de indenizações, mas, sim, de terra para plantar. Precisa pensar no amanhã", declara Marta Caetano, uma das lideranças locais. Agora, por intermédio do MAB, ela tenta transmitir sua experiência para os desalojados de Candonga. Fumaça é um dos primeiros assentamentos de atingidos por barragens de Minas Gerais com casas construídas de acordo com o gosto dos agricultores. A receita para a façanha é simples: mobilização.


Mais de 100 mil famílias

A história do MAB remonta à ditadura militar, especialmente ao período que passou para a história com o nome de "milagre brasileiro". Três grandes usinas hidrelétricas construídas no final dos anos 1970 - Sobradinho, no nordeste; Tucuruí, na região norte; e a maior delas, Itaipu, no sul do país - expulsaram milhares de agricultores e suas famílias de suas terras. "Havia uma parceria entre o capital internacional, que entrava com a tecnologia, e o governo militar, responsável pela resolução das questões socioambientais. Mas as populações não tinham seus direitos respeitados e saíam sem nada", relata o coordenador do MAB, Gilberto Cervinski. Entretanto, a articulação do movimento só começou a tomar corpo com a realização do I Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens, em abril de 1989. Hoje, o MAB representa mais de 20 mil famílias em todo o Brasil.

De acordo com dados da Aneel, atualmente o Brasil possui cerca de 141 usinas hidrelétricas e 246 pequenas centrais hidrelétricas em operação. Há ainda por volta de 50 empreendimentos em construção e mais 237 outorgados pelo governo, que ainda não saíram do papel. Por incrível que pareça, não existem estimativas oficiais sobre o número exato de pessoas que serão desalojadas. "Porém, pelas nossas contas, mais de 100 mil famílias acabarão expulsas das áreas ribeirinhas que ocupam, para a formação dos reservatórios dessas barragens", adverte Cervinski.


De quem é a responsabilidade?

Intermediar as negociações do MAB com o governo federal e elaborar estratégias para corrigir "distorções no modelo energético nacional", de modo a evitar que mais famílias sejam afetadas. Esses são os objetivos da Frente Parlamentar em Defesa dos Atingidos por Barragens, lançada em maio e coordenada pelos deputados federais Adão Pretto (PT-RS), César Medeiros (PT-MG) e Edson Duarte (PV-BA).

A iniciativa dos congressistas foi uma das respostas à marcha que atingidos de todo o país realizaram de Goiânia a Brasília, em maio deste ano. "O Estado não está presente na questão dos afetados por barragens. Se perguntarem ao Ministério de Minas e Energia de quem é a responsabilidade, ninguém consegue dizer", afirma o coordenador do MAB, Gilberto Cervinski. O deputado Adão Pretto também reconhece que, durante muito tempo, essa classe de trabalhadores ficou órfã de representação, sem saber a que autoridade recorrer. Já César Medeiros levanta a possibilidade de criação de um projeto de lei para exigir que os estudos de impacto socioambiental - que precedem a construção dessas obras - incluam garantias de indenização e reassentamento das famílias prejudicadas.


Opção: energia alternativa

Uma das principais bandeiras do MAB é o investimento em fontes de geração de energia alternativas - como a solar, a eólica e a de biomassa. No Brasil, mais de 75% da energia necessária para o abastecimento de fábricas, estabelecimentos comerciais e residências provém de usinas hidrelétricas, de acordo com a Aneel.

"Isso é natural, porque estamos num país de recursos hídricos abundantes. Porém, deve-se ter cuidado para não ser inconseqüente, atingindo famílias de maneira irresponsável", alerta Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente das Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobrás). Para ele, o problema é o fato de não haver um programa público e uma legislação que contemplem as implicações socioambientais decorrentes da construção de barragens.

O professor da Universidade de São Paulo (USP) Célio Bermann, especialista no tema, aponta outras questões preocupantes. "Com a privatização do setor, a atual política energética vem permitindo que as indústrias que mais consomem (as chamadas eletrointensivas) gerem sua própria eletricidade. Isso acaba retirando do restante das atividades produtivas e da população brasileira usinas que poderiam ser mais bem utilizadas", afirma ele.

Para comprovar seu ponto de vista, o professor cita dados sobre a relação direta entre emprego e energia. "Enquanto as indústrias de alumínio primário criam 1,5 posto de trabalho para cada milhão de KWh consumidos, o ramo de alimentos gera 56,2 empregos, e o têxtil, 41,1 - utilizando a mesma quantidade de energia", explica.
Segundo dados da própria empresa, só a CVRD, um dos empreendedores da barragem de Candonga, gastou cerca de 4,5% de toda a eletricidade do país em 2002.

 

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