Postado em 01/07/2004
Como o Bolsa Família está alimentando pessoas carentes
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OSWALDO RIBAS
Alessandra Rodrigues, de 21 anos, mãe de três filhos, mora na periferia de Belém, no Pará, e está entre os 4 milhões de donas-de-casa já contempladas com o Bolsa Família, o programa federal unificado de transferência de renda para populações em risco alimentar, ou seja, sem recursos para fazer, no mínimo, uma refeição diária (ver texto abaixo). Com o dinheiro, que ela pode sacar com cartão magnético em agências da Caixa Econômica Federal, Alessandra vê aumentar sua renda familiar, ao mesmo tempo em que reduz o risco de inadimplência e fome: "Eu e meu marido estamos desempregados; fazemos bico vendendo bijuterias e o dinheiro vem em muito boa hora", diz. Já a diarista Edicélia da Silva, de 25 anos, que, sozinha, sustenta dois filhos em Aracaju, vai usar o dinheiro da sua bolsa para comprar regularmente um botijão de gás: "Quando o dinheiro acaba tenho de cozinhar com carvão, o que traz muitas dificuldades. Agora, com esse benefício, sei que meu gás e meu alimento cozido estão garantidos".
Alessandra e Edicélia são dois exemplos de uma nova realidade que começa a ganhar expressão no Brasil: a das famílias pobres, localizadas na base da pirâmide social, que passam a contar com uma inédita rede de proteção pública destinada a reduzir a miséria absoluta. Em todo o país, calcula-se a existência de 11 milhões de unidades familiares em estado crônico de insegurança alimentar.
Criado em outubro de 2003 por medida provisória convertida em lei em janeiro deste ano, com o objetivo de combater a exclusão social das famílias situadas abaixo da linha da pobreza, ou seja, com ganhos de até R$ 100 mensais per capita, o Bolsa Família tornou-se a maior, e talvez derradeira, aposta do governo federal para devolver vitalidade e credibilidade a sua política social, abrigada sob o problemático Fome Zero. Para dar mais agilidade à liberação do dinheiro - já que "quem tem fome tem pressa", como sintetizou o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva -, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) unificou, em torno do Bolsa Família, todos os benefícios sociais antes dispersos por várias pastas ministeriais: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio Gás, entre outros. "A expectativa, com a mudança, é reduzir burocracias e criar mais facilidade no controle dos recursos, dando assim mais transparência ao programa", diz Patrus Ananias, titular da pasta.
Carro-chefe da política social emergencial do governo, o Bolsa Família, conforme admite o ministro, também cumpre com uma função econômica estrutural: "Temos de incluir para crescer; quando as pessoas passam a ter renda, a economia também se desenvolve", destaca ele, defendendo a idéia de que o repasse de verbas do Bolsa Família, que em 2004 deverá atingir R$ 5,6 bilhões, é fator de aquecimento econômico por movimentar o comércio e a produção das localidades beneficiadas.
Dois municípios de porte pequeno, Guaribas e Acauã, no sertão piauiense, tornaram-se símbolo dessa nova política. Até por terem sido os pioneiros do Fome Zero, ambos há um ano vêm exibindo sinais inequívocos de desenvolvimento. Em suas ruas ainda sem calçamento já se podem ver uma agência bancária recentemente instalada, um mercado municipal, serviços públicos, como correios, e melhoria nos indicadores socioculturais, como a queda da mortalidade infantil e dos índices de analfabetismo.
"A política social de um governo não pode ser a irmã menor da política econômica", diz o ministro Patrus, sem esconder sua satisfação com os primeiros balanços positivos de seu ministério, criado em janeiro deste ano para suceder, de forma ampliada, a experiência anterior, bem mais tumultuada, do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (Mesa), liderado pelo ex-ministro José Graziano.
Para dar maior sustentabilidade ao Bolsa Família, o governo também está articulando estratégias para que a maior parte dos recursos do Bolsa Família sejam canalizados para estimular cooperativas agrícolas, comércio e indústria locais. "Afinal", conforme relata Francisco Menezes, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), "esses recursos de quase R$ 6 bilhões ao ano podem ter um efeito multiplicador nas comunidades e incentivar, ao mesmo tempo em que alimentam, atividades produtivas."
Menezes cita, por exemplo, a iniciativa do ministério de desencadear uma ofensiva para criar pelo menos um restaurante popular, que ofereça refeições ao preço simbólico de R$ 1, em cada uma das cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes. Com apoio da iniciativa privada, várias capitais brasileiras, como Porto Alegre, Belo Horizonte, Manaus e Cuiabá, já dispõem de restaurantes piloto, conhecidos como Prato Popular, que servem, diariamente, milhares de refeições à população carente devidamente cadastrada.
José Baccarin, secretário de Segurança Alimentar e Nutricional do MDS, esclarece que em 2004, em conformidade com a decisão de fortalecer os projetos de geração de emprego e renda, numa tentativa de responder às críticas de o órgão ser um instrumento meramente assistencialista, a estimativa do governo é liberar R$ 140 milhões (70% a mais que em 2003) para que sejam adquiridos produtos alimentícios de pequenos agricultores familiares. "Os recursos para a agricultura familiar são fundamentais para garantir renda aos pequenos produtores, especialmente os mais pobres, e contribuir para o aumento da produção em todo o país", afirma Baccarin. Por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), alimentos como arroz, feijão e milho deverão ser comprados para compor estoques estratégicos e enfrentar eventuais situações de emergência, como a seca prolongada na região do semi-árido.
Entusiasmado com os rumos da política social, Frei Betto, assessor da presidência da República para o Fome Zero, acredita que a meta é exatamente esta: tornar o Bolsa Família "um instrumento de uma ampla política pública de inclusão social que, além da doação emergencial aos que passam fome, procure também educar as populações em risco alimentar, ao mesmo tempo em que cria oportunidades de trabalho num ambiente economicamente sustentável".
Reconhecimento mundial
Como um indicador da seriedade com que o Bolsa Família é encarado internacionalmente, o Banco Mundial (Bird) pôs à disposição do MDS uma linha de crédito de US$ 572 milhões. Vinod Thomas, diretor do Bird no Brasil, considera o crédito uma maneira de a instituição apoiar a política social do governo: "Ajuda o país a manter a atual política econômica restritiva e alivia um pouco seu impacto social", diz ele. O empréstimo, a juros baixos, começará a ser pago só em 2009.
Um pouco mais crítica, Zilda Arns, a festejada coordenadora nacional da Pastoral da Criança, o programa de amparo à infância pobre da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), acredita que o Bolsa Família e o Fome Zero, numa perspectiva mais ampla, só conseguirão aumentar a inclusão social no Brasil se efetivamente seguirem pelo caminho dos programas de geração de renda. "Entre as prioridades, posso citar projetos de agricultura familiar e a reforma agrária, tão necessária para que muitos brasileiros alcancem uma condição digna de vida", diz ela.
Para Zilda, cuja pastoral trabalha diretamente com as famílias em cerca de 37 mil comunidades em todo o país, atingindo 78% dos municípios brasileiros e mobilizando uma força de mais de 240 mil voluntários, que acompanham 1,815 milhão de crianças, a maior falha do Bolsa Família é fazer chegar os recursos a determinado município, mas não às mãos dos mais necessitados. Para ela, uma iniciativa essencial para que o programa ganhe eficiência é o fortalecimento dos conselhos gestores (grupos de fiscalização do Fome Zero, formados por membros da comunidade, instalados em todos os municípios beneficiários). "Deve existir um maior controle social local, sem participação de gente do governo municipal, para que os recursos do Bolsa Família, por exemplo, cheguem aos seus destinatários", afirma Zilda.
As críticas da coordenadora da Pastoral da Criança não só têm fundamento como são reconhecidas pelo próprio presidente Lula. Segundo ele mesmo advertiu, a dificuldade de combater a fome no Brasil não está apenas na falta de recursos: "Nosso principal problema é a inexistência de cadastros confiáveis no país, ou seja, dados corretos sobre quem são exatamente essas famílias mais necessitadas que receberão os benefícios". E acrescenta: "Agora precisamos fazer um cadastramento sério, porque não queremos uma política para o nosso governo, queremos uma política para o nosso país, e ela tem de ser definitiva".
Desde o início do programa Fome Zero, em janeiro de 2003, não foram poucas as denúncias de que, em várias localidades do semi-árido nordestino, por exemplo, a lista de famílias beneficiadas incluía parentes de prefeitos e de vereadores. O cartão do Bolsa Alimentação, em algumas localidades, chegou a tornar-se moeda de troca. Retrato do aspecto mais nocivo da política populista que acompanha a história brasileira, não era raro ver eleitores pobres manipulados por políticos inescrupulosos.
Para o secretário nacional de Renda de Cidadania do MDS, André Teixeira, esse efeito perverso da política assistencialista do governo pode agora ser combatido. "Com o Bolsa Família e a unificação dos programas emergenciais, pudemos também acabar com a variedade de cadastros, eventual superposição ou lacunas de beneficiados e ter maior controle de quem utiliza os recursos, quando e onde." Ele também menciona o fato de, por meio da Internet, ser possível a qualquer pessoa saber quais são os domicílios cobertos pelo Bolsa Família.
Para entidades assistenciais e organizações não-governamentais (ONGs) que tradicionalmente já atuam em regiões de risco social, como nos morros do Rio de Janeiro, aumentar o rigor na identificação das famílias mais pobres é uma idéia excelente, mas ainda está por acontecer. Entre as dificuldades, as ONGs citam, por exemplo, as favelas cariocas dominadas pelo tráfico, em que o pessoal da prefeitura evita entrar e a população tem medo de prestar qualquer informação.
"O problema de cadastrar quem precisa ser auxiliado é uma herança ruim da política oficial de focalizar o benefício em determinados estratos da população em vez de torná-lo universal", afirma Cândido Grzybowsky, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), ONG que defende a participação da sociedade civil em iniciativas destinadas a garantir o desenvolvimento nacional sustentável. "O cadastramento das famílias beneficiadas sempre dá margem a manipulação, com a utilização da política social das prefeituras como moeda de troca e o surgimento de focos de corrupção", diz ele, acrescentando que, por outro lado, dada a magnitude de programas como o Bolsa Família, seria impossível não restringir a população beneficiada. "Afinal", complementa, "estamos falando de um universo de 11 milhões de famílias!"
ONGs e instituições com atuação social também criticam a decisão do governo federal de repassar os recursos diretamente às prefeituras, como é o caso das verbas para merenda escolar. "Num momento em que se multiplicam as denúncias de malversação de fundos nos governos municipais, de sul a norte do país, parece no mínimo estranho que o Executivo insista em conceder mais recursos públicos a essas instâncias", afirma Grzybowsky.
A ira das organizações sociais independentes brasileiras dirige-se especificamente à iniciativa do governo federal, mais precisamente do MDS, de acabar com a exigência de apresentação da certidão negativa de débito (CND) pelos estados e municípios para o recebimento de recursos destinados a programas assistenciais.
Com essa decisão polêmica, o governo argumenta querer evitar a suspensão dos benefícios causada pela inadimplência de prefeituras e governos estaduais. Segundo dados do MDS, cerca de R$ 17 milhões deixaram de ser repassados mensalmente a 830 municípios, no primeiro semestre, pelo não cumprimento da exigência da CND.
"Não concordamos com o fato de que os que mais precisam - crianças e adolescentes em situação de risco, pessoas com necessidades especiais e idosos - sejam penalizados. Deve-se garantir que os recursos cheguem de forma mais ágil e eficiente a essas pessoas, e é isso que estamos fazendo", afirma o ministro Patrus. E acrescenta: "Temos de partir do princípio de que as pessoas são honestas. Se eventualmente alguém não estiver cumprindo princípios éticos, constitucionais, o Estado conta com instrumentos para fiscalizar. Para isso, temos os tribunais de contas, as controladorias, o Ministério Público, o Poder Judiciário, a Polícia Federal".
Fronteira metropolitana
Para alavancar o programa e torná-lo mais atuante na periferia das grandes cidades do país, a fronteira definitiva do Bolsa Família - uma vez que aí se concentram os maiores contingentes de potenciais beneficiários -, o governo está agora buscando implementar parcerias com estados e municípios. Desde maio vem fechando pacotes de convênios com administrações municipais e estaduais que têm elevado o valor pago pelo Bolsa Família e aumentado a capilaridade do programa, que quer chegar à totalidade dos 5,5 mil municípios brasileiros e a cerca de 8 milhões de famílias até 2006.
"As bases de dados são compartilhadas para evitar duplicidade de pagamentos", garante André Teixeira. Ele menciona o fato de que as parcerias já atingem o estado e o município do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Minas Gerais, Palmas e Tocantins. Há programas sendo implementados em Belém, Fortaleza, São Luís, Aracaju e Cuiabá. Em fase de conclusão estão as negociações com as prefeituras de Boa Vista, Goiânia, Porto Alegre e Recife. Nos estados do Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás e Mato Grosso do Sul, além do Distrito Federal, os entendimentos também estão avançados. Em São Paulo, onde tanto a prefeitura como o governo estadual mantêm amplos programas de inclusão social, o MDS acredita poder estabelecer a maior base de sinergias sociais do Brasil.
"Com a ofensiva nos grandes centros urbanos, estamos incluindo mais 1 milhão de famílias no programa e, no total, mais de 3 mil municípios já foram integrados", informa André Teixeira, acrescentando que, em cada uma das localidades, só foram selecionadas famílias que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), rigorosamente cumprem os pré-requisitos. "O IBGE repassou os dados ao ministério para não haver conflito sobre a quantidade de recursos destinados a cada município." O valor do benefício depende da renda per capita das famílias e varia entre R$ 15 e R$ 95. Em contrapartida, o governo exige que as crianças estejam regularmente matriculadas na escola e com a carteira de vacinação em dia.
A validade da bolsa, de acordo com André Teixeira, ainda não foi totalmente regulamentada. "Não temos esse prazo definido. Estamos nos guiando pelo programa Bolsa Escola. A princípio, a idéia é que ela tenha validade de até dois anos e possa ser renovada por mais dois."
Benefícios do Bolsa Família
As famílias que tenham renda mensal per capita de até R$ 50 receberão um auxílio fixo no valor de R$ 50, além de um benefício variável de R$ 15 por filho de 0 a 15 anos, até o limite de três, ou seja, no máximo R$ 45, desde que crianças em idade escolar e adolescentes estejam devidamente matriculados em estabelecimentos públicos de ensino e freqüentem regularmente as aulas.
As famílias com renda mensal per capita superior a R$ 50 e inferior a R$ 100 receberão R$ 15 por filho de 0 a 15 anos, desde que também não se ultrapasse o valor máximo de R$ 45.
Em ambos os casos, as mulheres grávidas ou que estejam amamentando filho de até 6 meses terão direito a um auxílio de R$ 15, desde que o total do benefício variável não seja superior ao teto de R$ 45.
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