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Em pauta
PÔ, MEU!

Postado em 01/01/2004

Neste Em Pauta Especial, personagens cujas profissões os obrigam a andar por todos os espaços da cidade contam histórias marcantes ocorridas na metrópole. Os depoimentos trazem as marcas comuns à paulicéia, através de episódios que revelam os traços diversos que formam a geografia humana de seus habitantes

"O tipo de ocorrência típica de São Paulo é acidente com motoboy. E resgate é o mais estressante para o bombeiro. Digo isso porque é o que acontece mais por aqui. Das cerca de 150 ocorrências que a gente recebe por mês, 145 são de resgate. Mas eu já fiz até parto dentro da viatura. Eu me lembro, peguei uma mulher na área do Capão Redondo que foi assim: a central passou a ocorrência e era na avenida do Servidor Público. É longe que você nem imagina. No meio do caminho, um ônibus deu sinal de luz. Aí eu pedi para o motorista do nosso carro parar. A mulher estava dentro do ônibus, quase para ganhar neném. Aí ela entrou na viatura com a irmã - o que é bom, eu sempre prefiro que haja alguém da família junto para não causar nenhum constrangimento - e nós seguimos para o hospital. Nós ficamos conversando, eu puxando papo com ela, e o auxiliar me falou: 'Essa mulher está com onda'. Eu disse: 'Não. Ela está mesmo para dar à luz e é logo'. Eu fui marcando as contrações, de 10 em 10 minutos, os intervalos diminuindo, e falei: 'Essa mulher vai ganhar'. Quase chegando lá, a mulher começou a gritar que ia nascer. Eu mandei o motorista parar, quando ele acabou de parar, o nenê nasceu. Era um menino. Não foram nem 5 quilômetros. Isso quando o parto é normal, que nós temos até o kit parto, com avental, luva etc. Quando o parto é mais complicado, nós temos de avisar a central e transportamos imediatamente para o hospital. Agora, quando o parto é normal, a criança não espera. Quando chega a hora, ela vem. E é tudo natural, você não precisa puxar nem nada, é pôr a mão e esperar a criança vir. Tem só de olhar se o cordão umbilical não enrolou no pescoço. Aí você corta o cordão, marca a hora e passa os dados para a central. Se eu me considero um herói? Modéstia à parte, acho que sim."

Tenente Hildebrando, 31 anos, bombeiro. Aguarda sua transferência para a unidade de Presidente Prudente, de onde sua mulher liga três vezes por dia para saber se ele está bem.

 


"Eu lido com todo tipo de pessoa nessa minha profissão, desde presidente de empresa até faxineiro dessas empresas, passando por motoboys etc. O segredo é conhecer a necessidade das pessoas. Por exemplo: se um motoboy chega e não quer se identificar - acontece muito de haver pessoas que se recusam -, cabe a mim explicar a situação para a ele. E esse tipo de problema não acontece só com motoboys, não. O que me dá mais problema aqui são os advogados e pessoas que se dizem da lei. Delegados, juízes etc. Aliás, uma vez eu já tive de barrar juiz aqui. Uma vez, um juiz, quando foi abordado para a identificação, apresentou a carteira dele dizendo que tinha livre acesso aos locais. Eu fui chamado para conversar com ele - porque normalmente eu não fico na portaria, alguém me chama quando tem algum problema. Pois bem, ele fez essa colocação e eu expliquei para ele que aqui se trata de um prédio privado, que as pessoas pagam para ter segurança e que, portanto, o fato dele ser juiz deveria fazê-lo servir de exemplo aos demais. Enquanto ele estava conversando comigo, tinham umas vinte pessoas na fila. Não seria justo ele passar na frente de todas elas - que é o que aconteceria se ele não se identificasse. E eu mostrei para ele que, na verdade, ele, que tem uma carreira bonita, por ser um juiz e uma pessoa que deveria tomar conta das leis e da ordem, tinha de ser o exemplo dessa ordem. O desfecho foi simples, ele entendeu a situação e se identificou com o que eu disse. É por isso que eu disse que se trata de uma questão de entender as pessoas. A partir do momento em que eu comecei a chamá-lo à sua responsabilidade de juiz, ele se sentiu acuado. Ele nem estava a trabalho, estava indo para o dentista. Por isso eu usei o termo 'não ser justo' para um homem que era a justiça.
Agora, de gente assim conhecida, a pessoa mais importante que eu já vi passar pelo Conjunto Nacional foi minha mãe."

Luiz Gonzaga Saad Jr., 41 anos, chefe de segurança do Conjunto Nacional há 14. Neto de libaneses, nascido no Bixiga.

 

 

"No começo foi difícil para mim, porque eu não conhecia direito as ruas de São Paulo. Hoje, ao menos a Zona Oeste - que é onde eu trabalho - eu conheço como a palma da minha mão. Eu gosto do que eu faço, é cansativo às vezes, principalmente agora no verão, mas eu gosto de andar. Andando pela cidade, as coisas que eu mais vejo são acidentes de trânsito e assalto. Nessas grandes avenidas aqui da Zona Oeste - Rebouças, Faria Lima, ou a rodovia Raposo Tavares, próximo da minha casa - sempre se vê atropelamentos. Quem trabalha na rua vê essas coisas. E geralmente são acidentes evolvendo motoqueiro. É um atrás do outro. Eu vi um horrível uma vez. O cara caiu da moto e o ônibus passou por cima. Foi chocante. Já os assaltos, bom, eu mesmo já fui assaltado, como carteiro, duas vezes. A primeira foi há uns cinco anos, numa época em que estava tendo uma onda de assalto a carteiros. Eles (os assaltantes) queriam só talão de cheque e cartão de banco. Então, eles pegavam a bolsa, tiravam o que queriam e largavam o resto na rua - as pessoas até ligavam para dizer que tinham achado uma bolsa de carteiro. Pois bem, eu estava, num sábado, descendo uma rua no Alto de Pinheiros e vi dois caras de moto. Já fiquei com o pé atrás achando que eles queriam me roubar. Dito e feito, quando eu fui tocar a campainha de uma casa, um deles chegou para mim e disse: 'Me dá a bolsa'. Na hora, eu falei: 'Leva'. A primeira vez a gente fica nervoso, porque a bolsa estava cheia de coisa. E na segunda vez levaram a bolsa também, mas eu já tinha entregado todas as cartas. Mas nessa vez eu nem esquentei muito a cabeça, foi tão rápido, que eu fiquei na rua assim meio parado. Eu já tinha sido assaltado fora do trabalho também. Aliás, umas três vezes, todas dentro do ônibus. Foi aquele arrastão, e eu sentado no banco da frente, vestido de carteiro, pensei: 'Ah, quem é que vai assaltar carteiro?'. Mas eu fui justamente o primeiro a ser roubado. O cara falou: 'Você também, carteiro, dá o dinheiro aí'. Ainda bem que devolveram a carteira com os documentos."

Edvaldo Borges de Barros, 35 anos, carteiro há 17. Dentre as melhorias que espera para São Paulo está a reforma das calçadas.


"Depois de um tempo desempregado arrumei esse bico de amolador de facas, mas já se vão dois anos que eu estou nessa. Mesmo o dinheiro não sendo muito bom, é satisfatório porque a gente anda quase toda essa cidade, amolando faca e tesoura de todo tipo de gente. Advogado, dona de casa e até travesti, já vi de tudo. O que posso dizer dessas minhas andanças é que São Paulo mistura um pouco de gente bacana com outras que são umas 'cascas'. Já fui convidado para almoçar, mas também já arrumei briga por causa do meu apito. É que amolador de faca tem que chamar atenção. E a gente tem o nosso apito, que é para as pessoas saberem que a gente está passando. Uma vez, na Lapa, eu estava passando com meu carrinho e apitando e, de repente, uma mulher saiu louca de dentro de casa, gritando comigo, mandando eu parar de apitar, e até falando palavrão. É que ela queria dormir e meu apito não estava deixando. Eu falei para ela tentar entender, é o meu trabalho, eu preciso avisar as pessoas que eu estou passando. Mas depois descobri que a tal mulher trabalhava à noite e tinha que dormir de dia. Mas como é que eu ia saber? Uma vizinha dela que me contou depois. Aliás, tem muito também de vizinho meter o pau no outro para mim. E eu fico só na minha, amolando minha faquinha, sem me meter. Mas também tem gente que me oferece lanche, café, chá, chama para entrar e até para almoçar. Eu nunca aceitei o almoço porque sou tímido, mas um lanchinho já rolou. Eu sou do Recife, Pernambuco, e mesmo depois que cheguei em São Paulo morei muito no interior. Depois que mudei para a capital é que vi como São Paulo é de verdade. Tem homem vestido de mulher, gente com cabelo pintado de três cores, com brinco na cara inteira. Achei bem esquisito no começo, mas agora já me acostumei. Gosto de andar por aí e fazer amizades, e até arrumar uma briguinha de vez em quando."

Arnaldo Lopes Santos, 32 anos, amolador de facas. Mora em Campo Limpo Paulista e concorre, só na sua região, com mais vinte colegas de profissão.


"Ser policial começou primeiro com o incentivo do meu pai, que também é militar. E aí você acaba fazendo a escola, acaba gostando, enfim, vê que é realmente isso que você quer. Acho que a gente tem que gostar daquilo que faz. O que mais me agrada nessa profissão é poder ajudar o próximo. Sempre que alguém chama a polícia é porque está numa dificuldade. Então, você chega para auxiliar. Quando eu consigo ajudar alguém - desde um roubo até uma velhinha atravessa a rua - para mim é missão cumprida. O que mais me choca hoje em São Paulo, enquanto faço minha patrulha, é a pobreza. O número de pessoas embaixo de viadutos, o número de crianças e adolescentes sem uma estrutura familiar praticando roubo, ou seja, é o problema social. E o relacionamento de um policial com pessoas em situação de rua varia bastante. Se a pessoa está infringindo a lei, a coisa fica mais tensa, passa a ser um marginal comum - afinal você não sabe o que te espera. Agora, geralmente a polícia é chamada nesses casos para prestar apoio: procurar algum albergue, levar para hospitais etc. O que é muito complicado, porque eu me sinto, como policial, de mãos atadas. Nesses dezesseis anos de profissão, eu certamente já presenciei coisas inusitadas, mas nenhuma que tenha ficado na memória. Agora, eu me lembro bem de coisas trágicas. Pessoas que falecem nas suas mãos durante um socorro, ver um parceiro ser morto em combate, pessoas que morrem em acidentes de trânsito, ou casos que você tem aquela última esperança, mas não houve tempo para salvar a vítima. Isso choca muito, comove e te destrói um pouco como ser humano. Mas eu não me frustro, é algo que você tem de absorver, administrar e ficar com o que há de bom. Também não penso muito no medo, porque essa é uma palavra que não tem de existir no vocabulário do policial. A gente tem que trabalhar, e quando sai de casa, sai sem saber se volta."

Rosana Bortoli, 36 anos, é policial militar desde 1988. Há cinco anos trabalha no canil da PM onde conheceu Tommy, o genioso rottweiler parceiro nas ruas.


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