Nos 450 anos de São Paulo, os ícones arquitetônicos que guardam as histórias da metrópole
Como um organismo vivo, as grandes cidades guardam na arquitetura seu passado e suas conquistas. Para tratar dos 450 anos de São Paulo, a Revista E preferiu contar a história que se esconde por trás de cada ícone que compõe sua multifacetada trajetória. É uma maneira de entender o vocabulário e os enredos espalhados em suas milhares de ruas e avenidas, e assim guardam os registros e idéias de quando foram criados. O Theatro Municipal, em 1911, rememora a importância dada pela população da época à cultura - e o mesmo pode se dizer da construção em 1940 do Estádio do Pacaembu em relação ao futebol. Em vez de falarmos de números superlativos ou de adjetivos, preferimos descortinar as múltiplas cidades e épocas e alfabetos com os quais convivemos todos os dias. A propósito: São Paulo possui cerca de 120 mil ruas, espalhadas por 15 mil quilômetros, cobertos em aproximados 400 roteiros de ônibus urbanos.
Theatro Municipal, 1911
A primeira década do século que mudou o mundo viu São Paulo ganhar os traços que tem hoje. Foi na virada dos 1800 para os 1900 que a até então menosprezada cidade de "ares frios e temperados como os de Espanha" - como definiram os jesuítas que a fundaram em 1554 - passa a acumular entre seus dotes o status de promissora potência da nação que, por sua vez, conhecera a independência há pouco menos de cem anos. A estrada de ferro que ligava o litoral ao interior a tornara ponto de passagem obrigatório e, a bem da verdade, destino de muitos imigrantes vindos da Europa. Foi nesse período que São Paulo começou a ser a "cidade de todo mundo" - característica chave das celebrações de carinho incitadas pelos seus 450 anos. Em 1895, a população paulistana somava 130 mil pessoas - sendo 71 mil imigrantes. Em 1900, o número de habitantes salta para quase 240 mil. Em 1903, o prefeito da cidade, Antônio Prado, instala a pedra fundamental da construção que consolidou São Paulo como metrópole, ainda que para os moldes da época. Oito anos depois, o empreendimento foi entregue à cidade. O Theatro Municipal de São Paulo, concluído em 1911, foi erguido em um terreno desapropriado pela Prefeitura e automaticamente tornou-se um marco histórico da cidade, imortalizando o nome de seu idealizador, o arquiteto Ramos de Azevedo. A São Paulo dessa época ainda se acostumava com seus primeiros bondes, ganhava reservatórios de água e passava a ser iluminada pela combustão do gás em postes públicos. É dessa década também a construção da nova estação São Paulo Railway, a majestosa Estação da Luz. A industrialização acelerada, eminência parda por trás do crescimento populacional e urbanístico dessa nova São Paulo que surgia, ganha novo impulso no período da Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918). Mas o aumento da população e das riquezas é acompanhado pela degradação das condições de vida. Espalham-se pela cidade os baixos salários, as jornadas longas de trabalho e as novas doenças trazidas na bagagem dos imigrantes. São Paulo se despede da década de 1910 computando uma baixa de 8 mil pessoas, mortas pela gripe espanhola, que já assolara a Europa.
Edifício Martinelli, 1934
A partir dos anos de 1920, a industrialização começa a dividir espaço com a cultura em São Paulo. A cidade, então com 580 mil habitantes, encontra nas múltiplas cores das manifestações artísticas o alento e ao mesmo tempo a contestação ao marrom do café que, mesmo em crise, ainda monopolizava seus palcos e salões, personificado nas pomposas e afrancesadas figuras da elite paulistana. É em 1922 que Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Luís Aranha e outros intelectuais e artistas iniciam o movimento cultural que traduzia a modernidade do mundo de maneira bem brasileira, apresentando a célebre Semana de Arte Moderna. O período fazia o mundo todo sofrer com a não menos famosa grande quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. Por aqui rompia-se a política do café com leite (alternância de poder entre paulistas e mineiros na presidência da República) com a ascensão do gaúcho Getúlio Vargas; dois anos depois, em 1932, estoura a Revolução Constitucionalista, opondo São Paulo e as forças getulistas. Mesmo em meio à praça de guerra que se tornara São Paulo, sonhadores já infectados pelo fascínio da cidade arquitetavam o futuro. Em 1934, Armando de Salles Oliveira, governador do Estado, inaugura a Universidade de São Paulo e um certo comendador Giuseppe Martinelli conclui a construção do edifício que transformou o nome do italiano da Toscana num dos muitos sinônimos para São Paulo. O Edifício Martinelli, tido até hoje como o pai dos arranha-céus paulistanos, marca o início do processo de verticalização da metrópole, com seus 26 andares e 105 metros de altura. Ainda na fase de construção do prédio, o visionário Martinelli apostava na cidade como centro de serviços do País, usando os andaimes, que cobriam o prédio ainda desnudo, com propagandas publicitárias. Mal sabia o italiano que, décadas depois, esse viria ser um dos grandes problemas da paulicéia.
Pacaembu, 1940
O ano de 1940 olhou para São Paulo e a viu entregar ao Brasil o até então maior estádio de futebol da América Latina, o charmoso Pacaembu, nome que em tupi guarani significa "terras alagadas". Desde 1920 os paulistanos sonhavam com um estádio na cidade, até que em 1926 a Cia. City doou um terreno ao Estado, depois repassado à Prefeitura. No dia 27 de abril de 1940, com a presença do então presidente da República, Getúlio Vargas, do interventor Adhemar de Barros e do prefeito Prestes Maia foi inaugurado o Estádio Municipal de São Paulo, em frente à praça hoje chamada Charles Muller. O Pacaembu era, na época, um símbolo de modernidade com capacidade para acolher 70 mil pessoas. E, por falar em modernidade e arrojo, São Paulo experimentou na década que começava uma série de intervenções urbanísticas nunca antes implantadas na cidade. O prefeito, de olho na indústria automobilística que começaria a chegar em São Paulo - instalando-se em 1956 -, colocou em prática o seu Plano de Avenidas, com forte investimento no sistema viário. A cidade crescia cada vez mais, porém de maneira desordenada. O inchaço apontava para a periferia e a década seguinte iniciaria a desconcentração do parque industrial paulistano, que se alastrou para outros municípios da chamada Região Metropolitana de São Paulo - ABDC, Osasco, Guarulhos e Santo Amaro -, posteriormente avançando rumo ao interior, em cidades como Campinas, São José dos Campos e Sorocaba. Meio século depois, o Estádio Municipal de São Paulo pode não ser mais o maior nem o mais moderno do Brasil. Mas, certamente, é um dos mais genuinamente paulistanos. Afinal foi lá que o tradicionalíssimo Palestra Itália, atual Palmeiras, venceu por 6 a 2 o Coritiba, em jogo que inaugurou o gramado do Pacaembu.
MASP, 1968
A atual sede do Museu de Arte de São Paulo (MASP) observa a cidade - do alto de suas quatro colunas - por sobre os escombros de um dos últimos símbolos da antiga elite paulistana. O terreno, doado à instituição pela Prefeitura, era ocupado pelo Belvedere Trianon, uma grande plataforma com restaurante, salão de festas e uma galeria. O local era considerado um dos pontos preferidos da alta sociedade por conta da privilegiada vista que oferece - conseguia-se enxergar até a serra da Cantareira de lá. A inauguração, em 7 de novembro de 1968, contou com a presença da rainha Elizabeth II da Inglaterra e seu marido, o príncipe Phillip, além de uma grande massa de pessoas. O prédio que vemos hoje na avenida Paulista tem projeto da arquiteta Lina Bo Bardi e o museu em si, anteriormente localizado na rua 7 de Abril, no Centro, foi idealizado por Assis Chateaubriand, dono do Diários Associados. Seu acervo possui de Cézanne a Anita Malfati, passando por Monet, Degas e Portinari, só para citar algumas das suas diversas obras em seu acervo. Por outro lado, se o MASP consolidava a vocação cultural de São Paulo, outras obras e transformações aproximavam a cidade da sua configuração atual. Um ano depois da inauguração do museu, o prefeito Paulo Maluf inicia a construção do metrô, que marca as transformações no sistema viário que a São Paulo do início dos anos de 1970 exigia. A alcunha de capital da prestação de serviços do País também data desse período, com o declínio da indústria e a chamada terceirização no município. Mas a cultura e a política produzem faíscas entre os jovens e os movimentos organizados da sociedade. É época da Jovem Guarda comandada por Roberto Carlos e da garotada envenenar seus carrões e subir a rua Augusta a 120 por hora.
Sesc Pompéia, 1982
O Sesc São Paulo inaugura no dia 20 de janeiro de 1982 a sua unidade Pompéia, considerada até hoje um dos pólos mais ativos de cultura em São Paulo. Símbolo dos tempos, o projeto do Sesc Fábrica, como era chamado, foi erguido a partir da estrutura refeita de uma antiga fábrica de tambores, em projeto assinado por Lina Bo Bardi, e possui uma das arquiteturas mais democráticas da cidade. O portão de entrada, situado na rua Clélia, zona oeste de São Paulo, abre para uma alameda que convida os passantes a conhecerem os equipamentos da unidade. Tornou-se referência paulista não apenas por dar um novo significado a uma região que deixava de ser industrial, mas também pela sua atividade cultural. Ali, por exemplo, logo nos primeiros anos da década de 1980, surgiriam nomes da vanguarda musical como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. O Brasil, e muito fortemente São Paulo, vivia na época uma agitação cultural e política tamanha que tornou difícil passar pela década seguinte sem sentir falta das coisas que surgiram e aconteceram "nos 80". No campo da política, o movimento Diretas-Já leva mais de 1 milhão de pessoas ao Vale do Anhangabaú, em 16 de abril de 1984, para o megacomício que exigia o fim da ditadura militar no País. Em 1985, a vitória de Tancredo Neves marca o fim do período ditatorial, mas uma infecção generalizada causada por uma diverticulite o impede de assumir a presidência. Já na área das artes, o rock e a noite celebravam matrimônio e a festa foi em São Paulo. Seguindo os passos de outras metrópoles como Nova York e Londres, a cidade passou a ver um inicialmente tímido contingente de pessoas que passaram a se agrupar no que se convencionou chamar de tribos urbanas. Góticos, punks, darks e afins saíam de suas "tabas" depois da meia-noite e os rituais se davam em casas como Madame Satã, Dama-Xoc, Aeroanta e Rose Bom Bom. Embora seja chamada por muitos como "a década perdida", os anos de 1980 viram nascer grande parte das bandas que entraram para a história da música brasileira. Joelho de Porco, Titãs, Capital Inicial, Legião Urbana e outras que, mesmo se caíram no esquecimento, certamente contribuíram para que São Paulo continuasse a merecer a alcunha de caldeirão cultural, por mais chavão que isso soe hoje.
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