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Entrevista
Fernando Faro

Postado em 01/01/2004

Responsável pela criação de espetáculos e programas musicais já célebres, Fernando Faro conta os bastidores de importantes criações da MPB nas últimas décadas

Fernando Faro, produtor musical, diretor de espetáculos e de televisão, em cerca de quarenta anos de carreira tornou-se uma das referências de qualidade dentro da MPB. Um dia ele "descobriu" Heraldo do Monte - um dos mais fantásticos violonistas brasileiros; em outro dirigiu os lendários espetáculos da campanha das Diretas-Já; e, por fim, criou o programa Ensaio, um dos parâmetros de qualidade na televisão brasileira, exibido na Rede Cultura. Aos 67 anos, nascido em Aracaju, mas criado na aconchegante Laranjeiras, Faro consegue ser unanimidade entre as diferentes facções da trepidante MPB - nada sem explicação: além de montar belíssimos espetáculos, terminou produzindo obras antológicas como Tendinha, de Martinho da Vila, entre outras. No momento, Faro foi forçado, por conta de uma inflamação no nervo ciático, a abandonar outra de suas paixões, o futebol, onde atua como lateral esquerdo. Consola-se ao pensar que contusões temporárias também afastaram do campo ídolos seus, como Nilton Santos, e amigos, como Chico Buarque. Na entrevista a seguir, realizada em sua casa na Granja Viana, em São Paulo, ele mostra sua melhor verve ao contar como criou algumas de suas obras.

Como nasceu a idéia do programa Ensaio, da TV Cultura? A forma dele é totalmente inusitada, não?
O Ensaio começou em 1968 na TV Tupi. Antes disso, eu trabalhei na TV Paulista, eu era editor-chefe do Jornal da Paulista. Eu fui para lá levado pelo Costa Lima, um grande nome do rádio e da televisão naquele tempo. O Costinha, como a gente o chamava, me disse para eu entrar na emissora via departamento de jornalismo, para depois tentar ir para a área artística. Depois de uns três meses lá, perguntei a ele se ficaria ainda muito tempo no jornalismo. Ele me disse que ia falar com o diretor do jornal, para o cara me liberar. No dia seguinte ele me chamou e disse: "Figura (ele chamava todo mundo assim), não dá para você sair". Segundo ele, o diretor tinha dito que nunca vira um cara escrever tão bem como eu. "Ele citou até um texto seu no qual você usa o termo 'salvaguarda dos direitos'", o Costinha me disse. "E falou que nunca ninguém mais tinha ouvido falar nesse termo, ou seja, ele não te quer fora do jornalismo." Aí, eu fiquei por lá. Só que aconteceu o seguinte: naquele tempo, havia uns bandidos em São Paulo, dois meninos de 19 anos, que eu andava, lá pelas onze e meia da noite, atrás deles pelas bocas, e nunca consegui achá-los. Mas um deles, o Jorginho, foi pego algum tempo depois na Vila Maria. O menino estava jogando bolinha de gude, a polícia foi lá disfarçada e o pegou. Aí, eu saí do jornal naquele dia e fui até a cadeia onde ele estava. Só que, chegando lá, os policiais não queriam me deixar entrar. Daí, eles mesmos me ofereceram uma alternativa de colocar microfones na minha roupa, e eu fazia as perguntas de fora da cela. Eu me lembro de que numa dessas minhas saídas noturnas fui até a favela do Vergueiro, na casa do Jorginho. Bati e ninguém atendeu. Jorginho me revelou nessa "entrevista" que estava em casa naquela ocasião e que por pouco não me apagou, como ele dizia. Cheguei na tevê, editei o material para pôr no jornal e me deu a idéia de colocar isso. Naquele tempo eu tinha mania de teoria da informação, o que era informação e o que era ruído, essas coisas. Então, eu dividi a informação e juntei as coisas. E percebi que o que parecia ruído na verdade era informação. Isso em 1968.

E o programa propriamente dito?
Surgiu em 1969, na verdade. Surgiu dessa dificuldade.

Não é a primeira vez que as coisas da malandragem acabam se tornando importantes para a música brasileira, não? Você tem várias passagens disso. Ao longo desse processo, você começou fazendo o Ensaio na Tupi, interrompeu e voltou a fazer na Cultura. Qual a diferença?
Em 1969 eu era diretor musical da Tupi. Me chamaram na Cultura e ia ficar chato eu fazer a mesma coisa como freela em outra emissora. Aí, eu sugeri mudarem o nome para MPB Especial. E fiz durante cinco anos. Depois saí e fui para a Globo; lá eu fiz o Brasil Especial, que era todo mês. Fiz dois sobre o Vinícius de Moraes, fiz sobre o Estácio, fiz sobre a música de São Paulo. Eu já tinha passado pela Bandeirantes e mais tudo quanto é emissora. Inclusive na Record fiz dois programas que gostei muito, um programa de entrevistas chamado Jogo de Cartas. Eu peregrinei pela Bandeirantes, Record etc., porque quando eu saí da TV Paulista e fui para a Tupi, que me pagava o dobro, dois meses depois a Tupi fechou. E eu recebi um convite para voltar a fazer o MPB Especial, só que dessa vez em cores. E eu costumava dizer que o programa era como um ensaio, um ensaio de cores, de enquadramento, um ensaio da vida mesmo, da pessoa. E comecei a fazer assim. Isso foi em 1969. Aí ficou Ensaio.

O seu trabalho com televisão é reconhecido, mas você tem uma identificação forte com a questão da música brasileira. Começa lá com os festivais, com os quais você se envolveu, depois teve a produção de discos, shows etc. Mas ao mesmo tempo você teve sorte de, ao iniciar os festivais, estar rodeado de uma das mais ricas gerações de músicos que o Brasil já produziu. Como surgiu essa idéia dos festivais lá na Tupi?
Foi a Record que começou. E na linha de produção da Record, por assim dizer, tinha a gente que era da Tupi. Eu me lembro que uma vez cheguei para o Cassiano Gabus Mendes e disse para a gente contratar o Chico Buarque. Ele me perguntou para fazer o quê? Eu falei: "Para tirar ele da Record". Eu já fazia um programa chamado Hora de Bossa, que era só com bossa nova, e as pessoas me ligavam, telefonemas abertos, dizendo que aquilo era uma porcaria, me pediam para chamar cantores como Orlando Silva, Sílvio Caldas, que esses eram cantores de verdade - porque os cantores que se apresentavam no programa eram João Gilberto, o Vandré etc. Ou seja, eu lá fazendo o programa e o pessoal de pau em cima querendo "cantor de verdade". Tinha um grupo fantástico comigo acompanhando os intérpretes. Eu me lembro que um dos músicos, o Aires, disse uma vez que tinha de tocar num lugar, ia ganhar uma nota boa, e me perguntou se podia mandar alguém para fazer o programa no lugar dele, e mandou. O substituto lá tocando e eu cheguei para cara e falei: "Improvisa aí". O cara improvisou e eu pensei: "O Aires não volta mais". Era um rapaz chamado Heraldo do Monte. Foi assim que ele começou.

Mas os festivais...
Eu fiz por quatro anos o Festival Universitário, fiz o Festival de Música Popular Brasileira, Festival de Carnaval e Festival da Viola. O Festival de Carnaval, um ano depois, eu decidi que tinha que dar uma levantada. Entre os caras que estavam concorrendo estava o Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Jorge Ben. O júri, que era do Flávio Cavalcanti, não classificou nenhum deles. O Diário da Noite estava fazendo a cobertura e eu disse que com aquele júri não dava para fazer nada. Aí saiu isso na manchete.

Quem estava no júri?
O Mário Rocha, o Zé Fernando... Eu sei que quando terminou essa noite do festival, que teve a desclassificação desses e a classificação de outros, que eu nem me lembro, o pessoal estava cantando uma música do Jorge chamada Cadê Teresa, mas na maior zorra, maior alegria. Mas o Flávio disse que aquilo não era carnaval.

Será que essa forma de festival traria novidades ainda hoje?
Eu acho que pode ser que funcionasse ainda. Para revelação, descoberta de novos talentos. Acho que não tem mais o charme e os atrativos que tinham esses festivais antigos. Lembrando que nos festivais antigos, os caras não eram nada, Chico, Caetano, Gil. E, de repente, esse pessoal despontou. Paulinho trabalhava em banco, acompanhava o Zé Kéti. Esse pessoal do dia para a noite pintou. Tem muita gente aparecendo, mas muito mesmo. Esse Brasil é uma coisa incrível de grande e desconhecido. Eu estava fazendo um show que se chamava Ari, Esse Desconhecido. O que tem de música do Ari Barroso que ninguém conhece é inacreditável. Coisa boa, Ari fazia bem tudo. E tem o Norte, tem a gente aqui no Sul, o pessoal do frevo... Mas, não sei. Pode acontecer porque tem um pessoal emergente fantástico. Exemplo disso é o Lenine.

Nesse universo de música a gente vê um afunilamento que leva ou para a dupla caipira ou para o pagode. O que você acha que aconteceu com o gosto popular?
Eu acho que quaisquer dois amigos hoje formam uma dupla sertaneja. Porque é fácil cantar. Agora, empobrecimento significa o quê? Quantidade? Qualidade? O que é qualidade? Eu acho que nunca a música brasileira esteve tão rica e tão fértil quanto hoje. E há duplas sertanejas em São Paulo, no Sul, os cantores, os repentistas. É uma coisa fantástica de rica. O pessoal da Zona da Mata, os maracatus, os frevos. Eu acho um país muito rico esse.

Mas há a indústria cultural, que massificou apenas um ou dois ritmos em detrimento do restante dessa riqueza. Lenine, por exemplo, quantas rádios tocam?
Eu acho Lenine uma coisa muito interessante, muito popular. Mas não só ele, o Zeca Baleiro, o Fagner. Uma coisa que tem me interessado muito nos últimos tempos é a herança árabe, o que há de árabe no Brasil. É uma coisa que você pega desde Minas, com João Bosco, até o Fagner. É uma coisa incrível, Fagner com aqueles vibratos.

Mas esses nomes que você falou são de 1970 para cá. Antes disso, quem tinha influência árabe na música brasileira?
Mas são nomes que vieram dos autos populares, as brigas entre mouros e cristãos. São coisas recorrentes no popular brasileiro, está tudo lá. Eles pegaram dali, e isso é que é fantástico.

E você está pesquisando isso com qual intenção, fazer um disco?
Um disco e um show. É uma coisa pouco notada na música brasileira.

Dessas produções todas que você já fez, quais você acha que vão ficar na memória?
Eu fiz um show que gosto muito, Tendinha, com o Martinho da Vila. No grupo do Martinho tinha o Almir Guineto, Jorge Aragão. Isso foi em 1978 mais ou menos.

E por que esse especificamente?
Eu pus em Tendinha uma situação muito comum nas histórias, nas coisas do morro. Por exemplo: a história do roubo de galinhas. O show começa com um cara que chega, o canhão de luz nele, ele olha para um lado, para o outro, pega a galinha, aí vai no meio do palco, depois sai pelos fundos, aí começa a chegar o pessoal, Carlinhos do Cavaco, Almir Guineto, o pessoal todo, e começam a cantar. E volta e meia, o cara sai de onde estava jogando baralho, cochicha uma coisa no ouvido do Martinho e volta. Quando chega no fim de tudo, no final do show, Martinho levanta e pergunta: "A galinha tá pronta?" E o show termina com o pessoal comendo a galinha. Essa sensação eu repeti na Unicamp com a Dona Zica. O feijão dela era famoso, lá do ZiCartola. Então, eu levei a Dona Zica para fazer um feijão. E o final também era assim, o pessoal comendo feijão, até a platéia. Por isso eu gosto muito do Tendinha. Eu fiz um show com o Paulinho uma vez, que eu gostei muito também. Uma vez também cheguei na casa do Chico Buarque e ele me perguntou se eu topava dirigir um show com ele em Luanda. O pessoal ligado ao Agostinho Neto tinha pedido para ele fazer um show. Aí começamos a correr atrás das pessoas. Foi uma coisa engraçadíssima: eu cheguei para o Edu Lobo e perguntei se ele ia, ele disse que sim; aí cheguei para o pessoal que cuidava do administrativo e mandei incluir o nome do Edu. Dia seguinte me liga um cara dizendo que tinha falado com o Edu e que ele disse que não estava sabendo de nada. Liguei para o Edu e falei: "Pô, Edu, não nos falamos ontem?" E ele: "Rapaz, pensei que você estava bêbado!" Mas ali ele topou. Outra história curiosa foi com o Dorival Caymmi. Ele estava gravando um programa para a Tupi, lá na Urca, no Rio. Cheguei para ele e perguntei o que achava de dar uma chegadinha em Luanda para participar de um show que a gente estava montando lá. Ele falou: "Olha, a gente veio de lá, a gente vai se reenergizar indo para lá". Perguntei: "E aí, você vai?" E ele, em vez de me responder, começou a falar do Cassino da Urca, perguntou se eu tinha conhecido, disse que era uma beleza, os carros que vinham pegar as mulheres, aquelas coisas. Eu fui gravar parte do programa, voltei e insisti: "E aí, Caymmi?" E ele: "Ainda estou ouvindo o barulho das fichas, a gente mais bonita do Rio estava aqui". O mesmo papo. Aí, fui gravar com a Gal, voltei e de novo para o Caymmi: "E aí, Caymmi, Luanda..." Ele ainda falando da Urca, dos perfumes, das mulheres. Aí foi a vez de gravar com ele. Depois, a gente no carro, ele indo embora, me diz: "Escuta, eu vou". Eu perguntei: "Duas passagens? Você e a Estela?" Ele disse: "Não. Eu e o Danilo (Caymmi, filho de Dorival)". Liguei na hora para o Chico para contar que o Caymmi ia com o Danilo. Fomos para Luanda.

Como foi?
Foi em 1980. O show se chamou Calunga, referência àquela boneca do maracatu. Estava Clara Nunes, Ivone Lara, Chico Buarque, Caymmi, Edu, Elba. Eu começava o show com ela cantando Violeiro, do Elomar. Lembro que no último dia de Luanda, eu estava no som, aí no final da apresentação chega Chico e fala: "Você conseguiu". Eu retruquei: "Nós, né...".

E produção fonográfica, tem algum que você gosta mais?
Tem o disco do Armando Marçal, filho do Mestre Marçal, um cara maravilhoso, um ritmista incrível, chefe de bateria da Portela. Ele vivia me dizendo que queria fazer um disco, aí eu fui falar com o diretor da Odeon na época, que me disse que não podia pensar nisso agora, que tinha de resolver o contrato do Paulinho da Viola. Chegando de noite, eu estava gravando com o Paulinho, perguntei a ele se ia sair da Odeon. Ele disse que não. Aí cheguei para o Milton Miranda, da Odeon, no dia seguinte e perguntei do disco do Marçal. E ele preocupado com o lance do Paulinho. Eu falei: "Não esquente, ele não vai sair". Aí ele topou fazer. Eu peguei o Nelsinho do Trombone e mais um pessoal e começamos a fazer um disco com as músicas do pai do Marçal. Um disco tipo de fim de ano, daqueles que você dança, dança, e não tem de parar para trocar de faixa, está tudo emendado. Um dia cheguei na casa do Paulinho e ele estava lá tocando o disco. Perguntei por que ele estava com aquele disco. Ele me respondeu que achava aquele o disco mais bonito que já se fez de música brasileira. E uma porção de gente me falou isso. Eu me lembro que quando fui gravar, cheguei para o pessoal da Odeon e disse: "Olha, para o coro eu quero todas as pessoas que o Marçal já acompanhou". Aí liguei para o Chico Buarque, Milton Nascimento, Paulinho Pinheiro, Martinho da Vila, para todo mundo. Avisei para quando estava marcada a gravação e o pessoal da Odeon enlouquecido por causa do cachê. Eu disse que não se preocupassem, seria cachê de coro, normal. O resultado foi um coro com todo mundo que você possa imaginar. Foi uma surpresa tão grande que os caras da Odeon não acreditavam. Eu nunca vi tanto diretor de gravadora reunido num local só como naquela noite.

Quais sãos as três canções que você acha mais brilhantes da música brasileira? Aquelas que você levaria para uma ilha.
Mas, em primeiro lugar, o que é música brasileira? Tudo o que se faz no Brasil é música brasileira. Inclusive as versões de músicas estrangeiras feitas aqui. Uma vez eu fiz um show com o João Gilberto, no Teatro Cultura Artística, e, no final, eu cheguei para o João e pedi a ele que cantasse Valsa da Despedida, aquela música de fim de ano. Ele cantou de maneira elementar, pobre até, mas quando ele começou meu braço estava até arrepiado. Tão profundo é o jeito dele cantar que mexe com o que há de mais fundo dentro da gente. Então, eu diria que é essa. Uma música que já é brasileira. Além dessa, gosto muito de Rancho Fundo, do Lamartine Babo, Aquarela do Brasil e Palmeira Triste, do Ari Barroso.


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