No ano de realização dos Jogos Olímpicos de Atenas, o V Fórum Olímpico Internacional, uma parceria entre a Academia Olímpica Brasileira, a Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP) e o Sesc São Paulo, colocou em discussão, de 24 a 27 de junho, os Estudos Olímpicos. Por meio de mesas-redondas e conferências, houve um intenso debate sobre a ética e o compromisso social no esporte. Entre os temas abordados figuraram o doping, a remodificação genética e a influência da mídia. Em artigos exclusivos, as professoras Silvana Vilodre Goellner, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Kátia Rubio, da Escola de Educação Física e Esporte da USP, ambas participantes do evento, discorrem sobre competição, espetáculo e como a atividade esportiva mexe com o imaginário coletivo
A pluralidade e o potencial pedagógico do esporte na atualidade
por Silvana Vilodre Goellner
A recente passagem da tocha olímpica pelo Brasil promoveu uma mobilização popular que alcançou grande visibilidade, não apenas nas ruas do Rio de Janeiro, onde se deu o revezamento da chama, mas em diferentes cidades do País, pela transmissão em tempo real das atividades que lá se desenvolviam. Atletas, celebridades, atrizes e atores, homens e mulheres desfilaram pela cidade exibindo um dos mais reconhecidos símbolos do esporte olímpico, que teve sua primeira aparição em 1936, nos Jogos Olímpicos de Berlim. A agitação promovida pela passagem da tocha e a celebração a ela agregada merecem nossa atenção, pois ainda que tenha sido resultado de uma campanha amplamente divulgada na mídia brasileira promovendo os patrocinadores que financiaram esse evento, vale pensar que o esporte contemporâneo não atua apenas no campo mercadológico, mesmo que saibamos que, a cada ano, faça movimentar milhões de reais. Em Atlas do Esporte no Brasil, um dos organizadores, Lamartine Pereira da Costa diz que o esporte é uma indústria de entretenimento e lazer que já move bilhões de dólares no mundo inteiro, inclusive no Brasil, onde, em 2002, houve um movimento de R$ 13 bilhões a R$ 20 bilhões - valor este que corresponde a 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB). A pesquisa mostra ainda que, enquanto o PIB brasileiro cresceu 2,25% de 1996 a 2000, o PIB específico do esporte cresceu 12,34%, valor equivalente aos recursos movimentados pela indústria petroquímica. Há em torno do esporte, rasgos tanto de tradição como de espetáculo que colocam em ação diferentes paixões, sentimentos, atitudes, desejos e vontades. É inegável seu potencial de mobilização. Não precisamos de muito esforço para identificar que na sociedade contemporânea, o esporte constitui um espaço social mobilizador de pessoas de diferentes etnias, gêneros, idades, classes sociais, credos religiosos, seja como participantes/praticantes, seja como espectadores. Os eventos esportivos são exemplares dessa afirmação, pois neles podemos visualizar uma espécie de expressão pública de emoções socialmente consentidas: o frenesi, o congraçamento, a rivalidade, o êxtase, a violência, a frustração, a explosão em aplausos e lágrimas de sentimentos que fazem vibrar a alma dos sujeitos e das cidades no exato momento em que vivificam a tensão entre a liberação e o controle de emoções individuais. Esse demarcado interesse que o esporte desperta nos indivíduos parece cumprir com o que Norbert Elias e Eric Dunning, em A Busca da Excitação (Lisboa, Difel, 1985), chamaram de “destruição da rotina”, na medida em que possibilita uma espécie de excitação agradável ao promover, em certa medida, um sentimento de identificação coletiva. Para além dessas possibilidades, poderíamos pensar na própria promoção do espaço esportivo como um terreno de virtuosas visibilidades, visto que em torno do esporte, em especial de alto rendimento, há a construção de representações que associam seus protagonistas a figuras heróicas que, mediante intenso esforço pessoal, conquistaram um lugar ao sol num mundo pleno de adversidades. O esporte opera, também, no imaginário individual e coletivo quando é representado como promessa de felicidade, ascensão social, marketing pessoal, domínio tecnológico, reconhecimento nacional e afirmação política de determinado país ou ideologia. Por essas razões, em ano de competição olímpica, vemos tantas imagens e discursos promovendo não apenas o próprio esporte e seus atletas, mas, fundamentalmente, alguns valores que sua prática pode criar e fortalecer, em especial, aqueles voltados para a construção de uma vida mais humana e criadora. E aqui retomo a idéia da tradição e do espetáculo. Se, por um lado, o esporte contemporâneo está associado à exibição de corpos tecnologicamente produzidos e treinados, à demonstração de performances que parecem romper com os limites do corpo, reafirmando sua espetacularização, à exibição de marcas e produtos para promover seu consumo fácil, por outro, com essas práticas articulam-se discursos que exaltam o potencial educativo do esporte dizendo ser esse um espaço de aprendizado para o convívio entre os diferentes, para o exercício da competição sadia, para congraçamento, a solidariedade e a paz, ou revelando, portanto, quanto é ambíguo o mundo esportivo - ambigüidade essa resultante do apego à tradição e da presença do espetáculo: símbolo contemporâneo da estetização do cotidiano. Essa ambigüidade presente no esporte resulta, em parte, de sua própria história. Vale ressaltar que o esporte que hoje vivenciamos é aquele que se consolida no fim do século 19 e início do 20 e que se traduz como signo de uma sociedade que enaltece os desafios, as conquistas, as vitórias, o esforço individual. É o “esporte moderno”, que se origina no século 18 e se expressa nas public schools inglesas, espaço de construção dos corpos e dos valores burgueses. O esporte que passa a ser ensinado consoante as regras sociais e morais daquele tempo e que, ao modificar alguns dos antigos jogos populares, impõe a necessidade de uma educação do corpo e do espírito dos jovens, de forma a despertar lideranças e a personificar, em carne e osso, os ideais representativos de um grupo social específico. Signo de distinção social, o esporte passa a ser um estilo de vida cujos elementos constitutivos são expressos na comparação das performances atléticas e dos resultados, no estabelecimento e na submissão a regras fixas, na especialização e na hierarquização de papéis e funções, entre outros, tendo no olimpismo um campo de reafirmação de sua expressão, institucionalização e consolidação. Entendido aqui como um movimento que nasce no final do século 19, cuja intervenção se dá na organização e promoção de valores agregados à prática esportiva e que tem nos Jogos Olímpicos sua expressão máxima, o olimpismo, hoje, é um terreno pleno de ambigüidades; pois, ao mesmo tempo em que procura assegurar uma certa tradição oriunda da Grécia clássica, convive com a espetacularização do esporte, que, em diferentes situações, distancia-se radicalmente dos valores agregados às competições de outrora. Ainda que possamos falar em um certo “espírito olímpico”, identificando-o com amadorismo, o fair-play, a confraternização entre povos, a exaltação da identidade nacional, da promoção da paz, na atualidade é necessário ressignificar esses termos, visto que não é mais possível entendê-los nem como foram idealizados na Grécia clássica, nem como foram recriados no contexto europeu do século 19. Há aí um tempo decorrido e, nesse tempo, outros sentidos e outros significados foram se agregando ao esporte, alterando, em conseqüência, muitos de seus valores e talvez de seus princípios éticos, pois o esporte não é algo em si! Isto é, não existe uma essência esportiva revitalizada a cada competição ou a cada edição dos Jogos Olímpicos. O esporte é plural e manifesta-se de diferentes maneiras em diferentes culturas e tempos e a essas manifestações se agregam múltiplos valores. Solidariedade, consagração, celebração, são palavras por demais positivas se pensarmos nas zonas de sombra que também residem no interior do mundo esportivo. Nacionalismos exacerbados, exploração comercial e econômica, corrupção, especialização precoce, doping, violência, discriminação sexual também têm sido temas a fazer parte do cotidiano esportivo, mesmo que, por vezes, os minimizemos e busquemos a todo custo recuperar a tradição e com ela fazer valer o que do esporte pode ser identificado como promotor de uma humanidade imanente a cada um de nós. Na cultura contemporânea, o esporte presentifica-se de diferentes e distintas possibilidades, sendo os Jogos Olímpicos uma de suas faces e, com certeza, não a única. Como lazer e divertimento, como espaço de profissionalização, de prevenção e/ou reabilitação, entre outras alternativas, deve ser observado como um produto criado e recriado constantemente por quem o pratica e usufrui. Assim, ainda que o espetáculo olímpico seja uma de suas maiores manifestações outras podem dele derivar ou mesmo se afastar. Pensar nessa pluralidade significa reconhecer o potencial pedagógico do esporte, cujos valores são eleitos e vivenciados consoante situações em que acontece. Creio ser exatamente esse caráter plural e esse potencial pedagógico que fez com que, no dia 13 de junho, brasileiros e brasileiras, dedicassem algum tempo de seu dia a observar a passagem da tocha olímpica, vibrar com ela, seja quando esteve nas mãos de nossos ídolos esportivos, seja quando foi carregada por um gari, personagem imprescindível, mas por vezes invisível, nas ruas e na história de nossas cidades.
Silvana Vilodre Goellner é doutora em Educação, professora da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenadora do Centro de Memória do Esporte da mesma instituição e autora do livro Bela, Maternal e Feminina: Imagens da Mulher na Revista Educação Physica (Editora Unijui, 2003)
Ética, imaginário e compromisso social no esporte contemporâneo
por Kátia Rubio
O esporte chamado de alto rendimento é um tipo de prática que pode se relacionar ao esporte-espetáculo, protagonizado pelo atleta profissional, ou, ainda, a um tipo de atividade esportiva que não é necessariamente remunerada, mas que exige do praticante dedicação e rendimento que superam uma prática de tempo livre ou amadora. Originalmente o atleta buscava não a vitória em si, mas a superação do próprio limite. Ao conceito que pautava essa prática era dado o nome de areté, equivalente ao latino virtus, que representava hombridade, valor. No sentido cavalheiresco da palavra estava expresso o conjunto de qualidades que fazem do homem um herói, e a vitória seria a confirmação desse valor. A areté seria, portanto, a afirmação da condição pessoal daquele que pratica e vence um desafio e sua realização estava associada à luta contra tudo o que tentasse impedi-la. Essa busca não representava um individualismo egoísta de ideais de amor a si mesmo, mas a busca incessante pelo absoluto da beleza e do valor. Daí a atitude de agradecimento do atleta vencedor de provas atléticas a seus oponentes. Mais do que tê-los como inimigos, o atleta que praticava a areté via no adversário o parâmetro para a realização de seu limite e não alguém a ser superado, vencido e humilhado. O outro era o referencial para a superação de si mesmo. Ainda que esses valores tenham sido a referência para a reedição dos Jogos Olímpicos da era moderna e para a institucionalização do esporte contemporâneo, parte deles foi perdida ao longo do século 20 ou substituído por apêndices incorporados às novas necessidades desse grande universo. Na sociedade contemporânea muitos são os fatores que levam crianças e jovens a optarem por uma modalidade esportiva. O desejo de ser campeão, a intenção de ser como alguém, e, nos tempos atuais, a de possuir os bens que um vencedor conseguiu somar são motivos que se encontram relacionados à escolha e à permanência no esporte. Mas a identificação com o caráter heróico do atleta de alto rendimento talvez seja a principal razão da escolha de uma carreira profissional que envolve tanta dedicação e recolhimento de atividades compartilhadas socialmente por outras pessoas da mesma faixa etária. Conforme estudo realizado em meu livro O Atleta e o Mito do Herói (São Paulo, Casa do Psicólogo, 2001), o imaginário presente no esporte contemporâneo permanece atrelado a dois modelos imaginários heróicos: um que é mítico e está associado ao esporte desde a Antiguidade; outro, pautado na cultura contemporânea, que privilegia o vencedor em qualquer âmbito da vida social. Se nos primórdios o atleta tinha a preparação física e atlética como um elemento de educação e de formação enquanto cidadão, cujos desdobramentos eram a preparação para a guerra e a proteção da pólis, associando os papéis de esportista e guardião, o atleta de alto rendimento contemporâneo tem sua imagem vinculada ao espetáculo e ao lazer. Seus feitos são capazes de levar multidões a estádios e ginásios em momentos de espetáculo ou causar dor e comoção coletiva em caso de acidente ou morte. O papel social do atleta e do esporte contemporâneo ultrapassou já há algumas décadas o âmbito apenas competitivo para alcançar funções que transcendem o cenário esportivo. Em alguns momentos históricos esses personagens foram os representantes de seus países no cenário mundial, exercendo função semelhante à diplomática. São até hoje guardiães do orgulho nacional por significar a superação de dificuldades comuns à população média. Esse quadro de expectativa leva aqueles que acompanham e torcem a se relacionar com seus ídolos com uma espécie de intimidade, gerando esperança de sucesso, desejo de realização e expectativa de conduta exemplar ditada pelo ideal olímpico. Ao ganhar uma medalha olímpica ou realizar algum feito de destaque, o atleta vê seu nome impresso na memória social do país pelo qual competiu afirmando sua condição de mito. Quando da realização de Jogos Olímpicos - momento em que o esporte ganha amplo espaço na mídia e leva amantes e não adeptos a participar desse universo, ainda que não de forma direta, mas por meio da estratégia de marketing de inúmeras empresas -, atletas e modalidades esportivas ganham visibilidade, ampliando a sensação de familiaridade vivida pelo espectador em relação a seus heróis. O herói enquanto figura mítica vem representar o mortal que, transcendendo essa sua condição, se aproxima dos deuses em razão de um grande feito. Essa proeza é quase sempre uma soma de elementos, como força, coragem e astúcia, caracterizando o herói não como alguém dotado apenas de força bruta, mas como um ser particular, capaz de realizações prodigiosas. O caráter agonístico presente nas realizações atléticas imprime ainda maior dramaticidade e plasticidade ao espetáculo esportivo, embora no princípio a agonística fosse como um prolongamento das lutas dos heróis nos campos de batalha, uma vez que também no agón os que disputam fazem uso de vários artifícios bélicos, e, dependendo da contenda, expõem-se à morte, ainda que em tese a agonística não tenha por objetivo eliminar fisicamente o adversário. Transpondo esses conceitos para o mundo contemporâneo, temos no atleta de alto rendimento uma espécie de herói, e quadras, campos, piscinas e pistas assemelham-se a campos de batalha em dias de grandes competições. Vale ressaltar que não é apenas a disputa que faz o atleta identificar-se com o herói. A superação de questões individuais e sociais mostra-se inerente ao processo de revelação e formação desse personagem. O caminho para o desenvolvimento dessa identidade dentro do mundo do esporte envolve etapas comuns ao mito: há uma chamada para a prática esportiva, que em muitos casos significa deixar a casa dos pais e enfrentar um mundo desconhecido e, por vezes, cheio de perigos. Sua chegada ao clube representa a iniciação propriamente dita, um caminho de provas que envolve persistência, determinação, paciência e um pouco de sorte. A coroação dessa etapa é a participação na seleção nacional, seja qual for a modalidade, lugar reservado aos verdadeiros heróis, no qual há o desfrute dessa condição. E, finalmente, há o retorno, muitas vezes negado, pois isso devolve o herói a sua condição mortal, e na tentativa de refutar o presente são tentadas fugas mágicas (como a desmotivação em retornar a seu clube de origem). Porém, por paradoxal que seja, é apenas nesse momento que ele encontra liberdade para viver. Existem vários aspectos que compõem o universo do esporte, responsáveis por caracterizar tanto o fenômeno como o protagonista do espetáculo. As expectativas geradas em torno da prática esportiva levam a determinados padrões de comportamento que irão, de certa forma, influenciar a conduta daqueles que escolheram o esporte como profissão e opção de vida. Afirmaríamos que essa é a razão pela qual em torno de uma modalidade específica e, do esporte como um todo, desenvolve-se um conjunto de práticas coletivas e comportamentos individuais chamados pelo senso comum de cultura esportiva. Esses comportamentos e procedimentos levam à criação e à multiplicação daquilo que estamos denominando imaginário esportivo. Tais indicações pertenciam à história de vida de atletas ativos, que ainda fazem o espetáculo esportivo, e inativos, que já realizaram grandes feitos, registraram seu nome para a posteridade e agora vão em uma outra direção. A carreira de um atleta não é fruto apenas de uma disposição e talento individuais, da afirmação de uma vontade latente ou da determinação em perseguir objetivos. Fatores externos, como influência parental, políticas institucionais e papel dos formadores, sejam eles professores de educação física ou técnicos, podem influenciar ou determinar a transformação de um aspirante em atleta. Depois de iniciada a trajetória, outros elementos se somam aos primeiros e alocam o atleta entre os que adquirem fama e status, e se tornam a referência presente da modalidade, ou entre aqueles que buscam pela ação e pelo gesto o prestígio, condição que em certa medida favorece a permanência. Penetrar no imaginário esportivo desse final de século é, de certa forma, buscar compreender por onde passa o parâmetro de projeção e de criação de identidade de uma parcela de adolescentes e jovens adultos na sociedade contemporânea. Isso porque os feitos esportivos não estão apenas relacionados à apresentação de comportamentos, mas também ao preenchimento de um vácuo de feitos de destaque. Para tanto é fundamental conhecer um pouco mais sobre o fenômeno esportivo atual e como o atleta se transformou no personagem que ele é hoje.
Kátia Rubio é psicóloga, mestra em Educação Física pela USP, doutora em Educação pela USP, professora da Escola de Educação Física e Esporte da USP e autora dos livros O Atleta e o Mito do Herói e Heróis Olímpicos Brasileiros
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