Postado em 01/08/1998
Como o Instituto Ayrton Senna começou a atuar? Seriam esses os principais beneficiários do instituto? Tivemos de fazer a eleição de algum foco para que houvesse algum tipo de eficiência. Então, fizemos um recorte de campo e nos decidimos por crianças e jovens. Dentro desse campo, nós nos propusemos a fazer uma contribuição no sentido de criar oportunidades de desenvolvimento para essas crianças e jovens. Pois partimos do pressuposto de que todas as pessoas possuem seus talentos, suas capacidades variadas, seus potenciais, e que a diferença entre elas é que algumas têm oportunidades de desenvolvê-los e outras não. Então, decidimos contribuir para que nossas crianças e jovens possam ter a possibilidade de se desenvolver enquanto pessoas e enquanto cidadãos. E, para isso, é preciso garantir saúde, educação, cultura, lazer, esporte, ou seja, um conjunto de condições necessárias para essa semente desabrochar. Apesar de estarem asseguradas por lei, a maioria não goza desses direitos. Na verdade, pretendemos contribuir para que o país construa essas condições de garantia de desenvolvimento. E fazemos isso através de duas ações, dois campos estratégicos: um é fazendo projetos que atendam crianças, seja em educação, saúde, cultura... Como são gerenciados esses programas? Nós concebemos, delimitamos estratégias e depois tanto desenvolvemos e organizamos, quanto financiamos, sozinhos ou com outras forças. Temos vários projetos e programas em todas essas áreas. Atualmente, atendemos 60 mil crianças através dessas ações diretas de campo. Mas não fazemos só isso, nós também temos um outro campo que não é o do fazer, e sim o do influir. Isso significa o seguinte: para um país poder dar conta da sua infância, de sua juventude, não é suficiente que só um segmento se preocupe e se responsabilize por tudo. Não adianta pensar que educação é um assunto do Ministério da Educação e que nós não temos nada a ver com isso. Esse pensamento equivocado deriva da idéia de que as responsabilidades públicas são, obrigatoriamente, governamentais. Isso é um equívoco, porque o público é, na verdade, de todos nós. De que maneira o Instituto Ayrton Senna exerce influência para que outros se engajem? De maneira geral, estimulamos que outras forças possam fazer seus papéis. Um exemplo de projeto nessa área de influência é o Projeto de Treino de Jornalismo Ayrton Senna. Esse é um exemplo de ação de mobilização de profissionais de comunicação e seus meios para assumirem uma co-responsabilidade, não só por denunciar a situação existente, mas por transformá-la também, dentro de suas competências. Essa é, na verdade, uma estratégia para sensibilizar um segmento importante no país, nesse caso a imprensa, para que ela se co-responsabilize pela infância. Esse trabalho também é realizado com juízes, figuras estratégicas na aplicação das leis; contadores, pessoas que mexem com o imposto de renda das empresas e podem ajudar na questão da lei que dá direito a 1% do valor total retido que pode ser revertido para fundos municipais de direitos da infância. Em vez de dar 100% para o Governo, dê 99%, pois 1% é garantido por lei. Isso criaria nas pessoas, primeiro uma visão correta da situação, segundo uma esperança de que é possível mudar e uma disposição de fazer alguma coisa. Esses são os dois campos de trabalho do instituto em que todas as ações se concentram. A senhora disse que o instituto atende 60 mil crianças. Mas a grande parte dos institutos e fundações que atuam no Brasil têm um papel meramente assistencialista e, na verdade, não atacam o problema na base. Qual a posição do instituto perante a questão? Na nossa concepção, partimos exatamente do que nós não iríamos fazer. Nós estabelecemos que não trabalharíamos de maneira assistencial. Porque nesse tipo de relação, a benemerência e a caridade fazem você enxergar o outro sempre como um sujeito repleto de carências que nada tem a oferecer, nada pode e nada sabe. Com isso, você estabelece uma relação de poder, mascarada como uma relação de ajuda. Esse tipo de iniciativa nunca promove o outro, ela sempre mantém o outro numa dependência crônica e não é autoprodutora. Nós, do instituto, acreditamos que não existem esses dois personagens, o que tem e o que não tem. Precisamos ajudar a criar oportunidades para que ele possa realizar seus potenciais e contribuir não só para a sua vida, mas também para o país. O país não oferece chão para seus próprios potenciais e capacidades serem desenvolvidos. A assistência só se justifica em caráter de exceção. O que propomos é desenvolvimento social e essa iniciativa possui uma outra base tanto conceitual quanto de investimento, onde você está preocupado com resultados e não com boas intenções. Boas intenções não mudam uma realidade. E a lógica da assistência está muito mais baseada em boas intenções que em resultados. Sendo o objetivo o desenvolvimento, estabelecemos as estratégias, para uma delas, fixamos as ações, avalia-se os resultados. Temos no país uma situação de qualidade de ensino público das piores do mundo. Isso se revela nos índices altíssimos de repetência na escola pública que nós temos nas primeiras quatro séries. Em cada mil que entram na primeira série, somente um terço chega à oitava série, os outros dois terços ficam repetindo até desistirem. A repetência e a desistência custam três bilhões de dólares por ano ao país, no fim de um mandato são 12 bilhões de dólares jogados no lixo. Há, além disso, o custo pessoal da criança, pois ela se sente um fracasso absoluto. Há também o custo social, cada brasileiro que sai despreparado é mais um brasileiro despreparado também para enfrentar o mercado de trabalho. E o custo político, porque temos também aí mais um brasileiro despreparado para votar. Então, os custos de uma má qualidade de ensino no país são enormes, sem falarmos na questão econômica global de uma mão-de-obra mal preparada. Uma mão-de-obra que tem três anos e meio de escolaridade não vai competir com uma que tenha oito ou nove, que é o caso da Europa, Argentina ou EUA. Para isso é preciso, antes de tudo, fazer um diagnóstico da situação. Precisamos fazer com que essas crianças tenham seu direito à educação assegurado. Ou seja, que sejam capazes de aprender, mas é preciso que a escola, por sua vez, seja capaz de ensinar. Onde reside o problema? O problema está na escola, não na criança. Com esse problema de repetência, as crianças ficam todas retidas nas primeiras séries, o fluxo todo fica afogado. É necessário trabalhar com causas, para que você possa, de fato, resolver a situação. É por isso que estabelecemos esses dois campos, o da ação direta e o da indireta, ou seja, a influência. As crianças que estão há cinco anos repetindo estão defasadas em relação à sua idade e à série em que deveriam estar. Quais são as soluções propostas pelo instituto? Nós criamos um processo no qual esse fato é corrigido por meio de estudo em classes aceleradas. A criança ganha de 2 a 4 anos no tempo perdido com a repetência. Isso foi implantado no ano passado em 15 municípios do país em diversas regiões... Em escolas normais? Em escolas municipais de lugares bem diferentes: capitais, cidades do interior do Estado, cidades litorâneas, no interior do país, cidades numerosas, cidades de poucos habitantes. Os perfis eram bem diversos para que o sistema pudesse ser aplicado em qualquer condição do país. Porque não é nosso objetivo resolver o problema de meia dúzia. No ano passado, foram atendidas 3.500 crianças com essa proposta, esse ano serão 25 mil. O projeto, denominado Acelera Brasil, é realizado junto com a Petrobrás e com o próprio Ministério da Educação. O problema não está na criança. Não. Ela não está conseguindo aprender porque a escola não está sabendo ensinar. A escola está sendo incompetente ao cumprir seu papel. Esse projeto cria, na verdade, uma tecnologia que resolve aquele problema público. E mais, a tecnologia social gerada dissemina essa estratégia para outras áreas que estão com os mesmos problemas e que precisam resolvê-los. Em resposta, o MEC abriu uma linha de financiamento, ou seja, a proposta de aceleração tornou-se política pública. No momento, estamos atendendo 24 municípios, mas há cerca de 5 mil procurando o local adequado para poder receber os recursos e implantar o projeto. Paralelamente à questão da educação, há a necessidade de preenchimento qualitativo do tempo livre. Como a senhora analisa esse tema? Estamos preocupados com que a criança tenha essa condição de desenvolvimento acelerado. Para isso, a escola é fundamental, e para isso também, fatores como arte e esporte também são. São atividades complementares à escola e que trazem para as suas competências particulares o desenvolvimento de habilidades essenciais. Tanto a arte como o esporte são usados como instrumentos de desenvolvimento. Não para transformar crianças em atletas ou artistas, mas em seres plenos. O esporte é um instrumento fantástico de desenvolvimento. Ele tem regras, discute hierarquia, estabelecimento de metas a médio e longo prazo. Todas as habilidades que necessitamos desenvolver para dar certo na vida em qualquer campo profissional. Você acaba, através de esporte e arte, fundando as habilidades e competências necessárias para essas crianças poderem ter alguma chance de serem incluídas socialmente. A senhora disse que o trabalho que o Instituto Ayrton Senna faz é de contribuição. A senhora acredita que os empresários estão mais sensíveis e participativos pela causa social? Na verdade está havendo um enorme despertar do país para si mesmo. Os empresários são um exemplo disso, mas não são os únicos. Há um sentimento de indignação contra os efeitos da má qualidade na educação sobre a produção direta deles. Imagine a situação: você precisa competir tecnologicamente e tem um maquinário de 500 mil dólares nas mãos de um operário que não entende o que está lendo. Então existe a consciência de que é necessário assumir essa questão. Os empresários estão cada vez mais comprometidos com essa necessidade de não apenas produzir bens e serviços, mas também participar e se co-responsabilizar pelo conjunto do desenvolvimento. O desenvolvimento de um país não pode ser identificado com o crescimento econômico, porque fosse assim, nós, como a sétima economia do mundo, deveríamos ter todos os nossos problemas resolvidos. Ou nós vamos encontrar uma maneira de crescermos juntos ou não haverá crescimento. Esse modelo está esgotado, nós temos o desafio de mudar o paradigma de desenvolvimento econômico para desenvolvimento social, que inclui ambos. Nós temos duas agendas para atender no país. A da transformação produtiva, que está sendo trazida pela questão da globalização e do desenvolvimento tecnológico, e a da equidade social, tão importante quanto a primeira. Se não resolvermos as duas, nós inviabilizaremos ambas. Mas, na sua opinião, o Governo está ciente desse fato? Creio que sim. Ele sabe que esse modelo não tem mais futuro, tanto é que ele está tentando fazer as reformas administrativas necessárias. E essa é a agenda indicada para viabilizar o país economicamente. Agora a agenda da equidade social não tem a importância que a transformação produtiva tem para o Governo. Ela ainda não é clara para as pessoas. Apesar de o Governo ter controle de vários setores da economia e desenvolvimento social, o Estado deixa de lado cada vez mais as áreas mais prementes da sociedade como saúde, educação etc. Qual o papel desses institutos e fundações para o desenvolvimento do país? Eu acredito que o enxugamento da presença do Estado em várias áreas tem um efeito imediato difícil para as organizações do Terceiro Setor, mas por outro lado, é importante que o Estado deixe de "executar", porque ele se revelou um péssimo executor. Esse talvez não deveria ter sido nunca o papel dele, talvez do Segundo Setor, por exemplo. Aí eu vejo que na medida em que o Estado desocupa espaços onde ele se mostrou ineficiente e incompetente, esses espaços devem ser foco de convergências de outras forças sociais como as do Terceiro Setor no gerenciamento desses espaços públicos. Cada um tem um papel, uma contribuição, uma competência para essa questão pública ser devidamente gerenciada. Decidir o que deve ser, por exemplo, uma educação de qualidade, ou um sistema de saúde, deveria ser o papel dos três setores e não exclusivamente do Estado como foi até agora. Creio que temos a grande oportunidade histórica de rever papéis de segmentos importantes na condução do país que nós não tivemos a oportunidade de exercer. Nós nunca nos sentimos responsáveis pelo destino do país. Sempre atribuímos isso ao Governo. O mundo vem sofrendo uma mudança muito profunda tanto nas relações de trabalho quanto nas profissões em geral. Existe, devido a esse problema, uma contradição: enquanto há déficit de empregos em algumas áreas, outras, como a informática, têm carência de mão-de-obra. Como a senhora analisa esse anacronismo? A nova ordem econômica mundial não se baseia mais na idéia de operário- padrão, habilidades específicas e normalmente de cunho repetitivo e mecânico. O novo perfil do mundo do trabalho deixou de exigir essa figura do padrão, passando a buscar o profissional polivalente, capaz de responder a mudanças sucessivas, adaptável a diversas circunstâncias e modificações e a requerer desse profissional muito mais as habilidades básicas que as específicas. As habilidades básicas dizem respeito a você ser capaz de ler e escrever concretamente, entendendo o que está lendo e escrevendo; capaz de fazer cálculos e resolver problemas; capaz de acessar informações e de trabalhar em grupo. Então, é um mercado em que não é possível você formar sempre as mesmas coisas com as mesmas formas. É preciso formar alguém com habilidades básicas e que seja capaz de estar um dia num lugar, amanhã em outro e depois em outra área completamente diferente. Além disso, ser capaz de estar não só numa posição de empregado mas também de estar no mercado, o que não quer dizer a mesma coisa. Estar no mercado não significa estar empregado. Você pode ser um protagonista, um empresário de algo. E habilidade crítica? Essa está dentro das habilidades básicas. Ler o seu entorno social e entender o que está acontecendo, e entender realmente, saber dar significado às coisas. Isso exige muito mais habilidades abstratas que manuais. Isso vai requerer das pessoas criatividade, sai do campo da repetição, da obediência, da reprodução. Entra no campo do aprender constante, a capacidade de aprender a aprender é mais importante do que saber determinado conteúdo específico de uma determinada profissão. Uma pessoa com essas características tem maiores chances de estar no mercado de trabalho que uma pessoa que saiba de cabo a rabo uma formação específica, porque essa formação hoje está lá mas daqui a dois anos pode ser que não esteja. No Brasil existem leis que permitem incentivos fiscais para projetos culturais. Não seria o caso de estender benefícios semelhantes também para projetos sociais? Como a senhora enxerga essa questão? Existe um trabalho muito importante do Comunidade Solidária sendo feito no sentido de reerguer o marco legal do Terceiro Setor, regido por inúmeras leis dispersas, pulverizadas, fragmentadas. Existe um trabalho muito sério do Comunidade Solidária no sentido de mapear toda a legislação trabalhista junto com a sociedade civil e o Governo para rever as posições que o setor tem em termos de legislação, inclusive no campo tributário. Já existem alguns encaminhamentos. Por exemplo, será permitido à pessoa física descontar do imposto caso faça doações para organizações do Terceiro Setor. E, no Brasil, essas instituições do Terceiro Setor que fazem um trabalho de contribuição, na sua maioria, são sérias? A grande maioria é muito séria, muito honesta. Existe também, dentro do campo dos honestos, aquelas situações em que a pessoa quer fazer mas não tem as competências necessárias para poder executar os seus fins. Isso já está em processo, mas nós estamos bem aquém do ideal. A intenção é boa, mas não há instrumentos... Principalmente instrumentos de gestão. As ONGs sofrem muito no campo da gestão, porque elas não têm pessoas formadas em administração ou economia. Elas não são da área, são pessoas que viram um problema e estão lá tentando resolver. E aí elas têm de entender do problema, da gestão, de financiamento, entender de tudo para poder fazer aquilo. Mas acabam não podendo arcar com tantos cargos diferentes, acabam fazendo de maneira amadora e, por isso, os resultados são sempre muito menores do que se fosse feito de maneira profissional. Uma parte do Terceiro Setor ainda é muito amadora. Mas já existe uma consciência para a necessidade de capacitação, existem organizações que estão se dispondo a fazer essa capacitação para organizações do Terceiro Setor. Já há muitos movimentos, mas é óbvio que nós precisamos caminhar bastante para mudar isso.