Luís Fernando Pereira
Extraordinariamente, como frio de julho paulista abatendo as terras do Ceará, ele acabou acompanhando o mané do João à sessão. Não era medo, não era preconceito, nada destas coisas que diminuem a auto-imagem de um homem que se considera inteligente. Era só que não gostava destas expressões de religiosidade. O máximo que podia tolerar eram os e-mails litúrgicos do primo, que todo dia vinham dar em sua caixa postal, trazendo não só as leituras do dia, como também uma breve homilia composta pelo tal, coisa de cinco linhas, fazendo um paralelo entre a vida dos profetas e os desafios dos executivos modernos, e uma missa, semestre sim, semestre não, preferencialmente acompanhada de alguma cerimônia obrigatória, como um batizado ou um casamento. Quando o médium chegou à mesa branca, meio que amarelada na de fato, a toalha não devia ter sido trocada há algum tempo, as pessoas o cumprimentaram. Ele devolveu as saudações, muito gentil, vestido como quem vai passear num domingo num shopping qualquer. Enquanto ele se sentava, os assistentes dele pediram silêncio, apagaram as luzes, apenas algumas velas diminuindo a escuridão. João pediu a mão de William, que a concedeu não sem antes imaginar o que pensariam lá na empresa se o vissem naquela roda de tipos tão esquisitos de mãos dadas. E o mané do João ali, todo concentrado. Mas o amigo merecia compreensão. Não por ser mané. Ninguém, na opinião de William, tinha desculpa por ser mané. Daquele tipo que acha que todo mundo é honesto e que é só trabalhar firme que a empresa vai recompensar seus esforços, para citar coisas pequenas. Porém, caramba, o sujeito estava triste! E era um amigo. Isso era outra coisa importante: até mané pode ser bom amigo. A gente até não o respeita, mas é amigo. William às vezes parava e se perguntava, em meditações de mesa de bar, depois de umas três cervejas, sobre os mistérios da amizade. E aí pedia outra cerveja, a quarta, assim deixava de pensar bobagem e voltava a pensar em futebol e mulher. João perdera um cunhado. Ficara arrasado. Agora estava só triste, mas na época do fato ficara arrasado. O morto era jovem, deixara duas filhinhas. Definhou e, antes de partir, pedira a João para cuidar da família dele. Tocante, sem dúvida. Mas agora João queria informar o fantasma do cunhado de que estava tudo bem, as finanças estavam em ordem, as crianças bonitas, saudáveis, indo bem na escola. A casa, reformada e linda. Ah, se ele pudesse ver! Depois de muita conversa com a mãe, uma senhora católica que já tinha pedido conselhos a muito caboclo nestes tantos terreiros dos tempos idos, decidiu não falar nada do novo namorado da irmã. Sujeito bem apessoado, bem mais bonito do que ele e com uma carreira muito mais promissora. Já que também queria saber se ele estava em paz, com luz neste outro mundo que ninguém nunca viu, para que falar nisso, né? William concordou. Dada a seriedade de João ao comentar o fato, conteve o sorriso e, grave, disse que seria a coisa mais sábia a fazer. E o médium tremeu, balançou, cantou algo que parecia cantiga de vendedor de cocada daquela outra de sua meninice. E falou uns nomes de gente ali presente. Nada de citar o João. Começou a dar mensagens dos entes queridos a todos. Alguns choravam, outros se indignavam, uns poucos ainda faziam o sinal da cruz. William não pôde deixar de lembrar do filme de Fellini, aquele do barco fúnebre, onde um rapaz médium recebe a recém-falecida e, diante da pergunta de um homem que, emocionado, quer saber se pode fazer uma pergunta, recebe uma negativa do espírito, parecendo não estar lá muito disposta. Porém todas as impressões o deixaram quando ouviu João perguntar do seu cunhado. Estava tímido, porém ansioso. O médium não gostou muito, pelo jeito como olhou para um dos assistentes, que meio que respondeu, com um movimento de ombros e boca: "O que eu posso fazer?". - Qual o nome do finado? - de olhos fechados, perguntou o médium com certa irritação. - Francisco Ribeiro Prado. O médium se concentrou. Tremeu de leve. Olhos virados, mãos sobre a mesa. - Aqui não tem ninguém com esse nome. - Ele gostava de ser chamado de Chicão. Não quer tentar? Quem sabe... - Ele não está aqui. - Será que ele ficou melindrado com algo? Ai meu Deus! Será que aquele moleque do cemitério anda lavando o túmulo dele? Soltei cinqüenta conto na mão dele, Chicão. Cinqüenta conto, Chicão! O médium olhou para a cara do William, que só pensava em soltar a mão do João e da mulher que estava suando na mão dele do outro lado. Não gostava de mulher que suava. Quer dizer, gostava, mas sei lá... Enfim, que não lhe entendessem mal, por favor. Aquela mão estava lhe provocando sensações terríveis. - Tem alguém aqui que não tem fé. William virou o centro dos olhares. Com as mãos presas, esfaqueado por olhares, baixou a cabeça e balbuciou um Pai-Nosso. Quem sabe não desfazia a má impressão? - O senhor tem que ter fé. Não adianta ficar de mãos dadas e achar que basta. Por que ele não tinha dito antes? Já teria soltado as mãos há tempos! - Desculpe-me, estou aqui acompanhando meu amigo. - E está atrapalhando a vinda do... Como é o nome mesmo? - Francisco, mas acho que é melhor chamá-lo de Chicão. - Assim o Chicão não virá. Mas... Espere. - Chicão? - olhou para o alto João, procurando por algum sinal do cunhado morto. - Não. É uma tal de Júlia. Ninguém conhecia. João ficou decepcionado. Onde, diabos, estaria o Chicão! - Mm, sei... Que mais... Está bem... - o médium balbuciava, para felicidade de William, que não era mais o centro das atenções. - Olha, rapaz, como é o teu nome? - Eu? William. - Ela não gostou do nome. - Quem? - Júlia. - Não conheço. - Nem ela a você. - E aí? - Ela disse que a morte não é para ela. - E daí? - Nada. É a opinião dela, tem que respeitar. O senhor é de pouca fé. - Não é isso, não me levem a mal, quero saber o que isso tem a ver comigo. - Ela vai ficar com o senhor. - Mas ela está morta! - E o senhor vivo. Meio vivo, pela metade, segundo ela. Ela disse que seu nome é muito americanizado, sua vida muito tola, que o senhor tem pouca sensibilidade, mau gosto para mulheres... - Tudo isso? Ela disse tudo isso? - Ainda está dizendo. Um minuto... Mm, posso resumir, Júlia? Não? Está bem. Vamos lá então. Seu William, ela me disse que sua casa é horrível. Primeiro, por não ser casa, ser apartamento. Depois, por ser decorada de forma tão sem graça que parece pertencer a um morto, sem ofensas aos senhores que aqui estão presentes. O senhor, segundo dona Júlia... O quê? Desculpe. Segundo a grande e esplendorosa Júlia, mulher fascinante e repleta de charme, você tem uma vida desinteressante. Não conhece o seu país: preferiu ir para a Flórida, em vez de conhecer as praias do Ceará. E na convivência social, então, o senhor é um zero à esquerda. Insensível e sem coragem de mudar nada. Um mau caráter. Precisava ter acabado com a reputação daquele colega só para conseguir aquela promoçãozinha? - Não foi bem assim! E quanto à viagem, se eu fosse para o Ceará, teria que ir sozinho. Não gosto. E como ela sabe de tudo isso? - Pior. Não sabe ficar sozinho consigo mesmo, o que é sinal de imaturidade. E ela não quer dizer como é que sabe, pois é segredo de morto. Enfim, ela não pára de falar. - Sou tão mal assim? - Seu William, o senhor vai ficar sabendo. Ela vai ficar encostada no senhor. - Quanto tempo? - E eu vou lá saber? - Mas o senhor é um profissional. Faça alguma coisa! - Ela fala demais, seu William. Não vai dar não. - E encosto é coisa ruim? - Olha, vou ser sincero. Às vezes é bom, às vezes é ruim. Depende do gênio do morto. No seu caso, vai ser o inferno. A sessão acabou por aí. Houve um cochicho geral durante o chá. O médium sumiu lá dentro alegando uma dor de ouvido. William ficou taciturno, caladão. João comia os biscoitos e, inconformado, perguntava para si mesmo onde estaria o Chicão. Por Deus, onde? Na volta, William não falou muito. João também não. Apenas comentou que voltaria lá na próxima semana. Não convidou o William. - Está preocupado? - Um pouco, né? - Está sentindo alguma coisa diferente? - Ainda não, mas vai saber quanto tempo leva? - Calma, se quiser, eu te acompanho a algum lugar. A gente dá um jeito nisso. Sou teu amigo, não esquece. E outra, de repente, o homem lá ficou com raiva porque notou que você não estava acreditando. Vai ver, quis te colocar medo. - Quis não, João. - Vai saber. O cara pode ser um charlatão. Vê o Chicão! Como que ele não apareceria para mim, logo para mim! - Charlatão não, João. Ele, ela, sei lá quem, não falou bobagem não. - Aquele negócio da promoção te pegou, né? Fica tranqüilo, todo mundo erra. - Não é isso não, João. Sabe a Márcia, aquela com quem saí, que trabalha no RH? - Sei. Que tem ela? - Ela é feia para caramba! Nada a ver! Só fico com mulher meio estranha mesmo. E tem aquela outra, a Joyce. Ela é meio estrábica. - Calma, William. Não conheço muito, mas achei ela gente fina. Você só está impressionado. E sobre aqueles outros negócios que ele, ela, sei lá quem, disse... - Será que ela é bonita, João? - É sim, e eu nunca notei que ela fosse estrábica... - Ela não, João, a Júlia. Será que ela é bonita? - Que diferença faz? - Poxa! Já que ela vai ficar aqui, do meu lado, dando sopa, quem sabe eu consigo faturar mais uma. Pô, João, você tem que ficar mais ligado nas coisas. Que nem eu. Não perco uma! E convidou o amigo para uma cerveja. Aquela conversa toda sobre mulher, lá na sessão, acabou deixando o clima meio tenso.
Luís Fernando Pereira é autor de A Vida Lá Fora (Editora Ática/2002)
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