O seminário TVQ - Criança, Adolescente e Mídia, realizado no Sesc Vila Mariana, reacendeu a discussão acerca da qualidade do mais popular veículo de comunicação. Fonte única de informação para um assustador contingente de pessoas, a televisão encontra-se na mira de uma sociedade preocupada com o seu conteúdo. A seguir, o jornalista Laurindo Lalo Leal e a presidente da TVE Rede Brasil, Beth Carmona, debatem o tema

As três combinações perversas da televisão brasileira por Laurindo Lalo Leal
A questão da qualidade da programação da televisão brasileira possui raízes fortes e muito bem escondidas. Criticar um ou outro programa considerado de mau gosto é importante, mas é pouco. Não basta analisá-los isoladamente, é preciso entender por que eles existem e conquistam audiência. Para tanto torna-se necessário compreender o modelo institucional de radiodifusão implantado no Brasil, cristalizado de tal forma ao longo dos seus oitenta anos de história que, hoje, parece ser único e imutável. A televisão surgiu em 1950 como herdeira do rádio, tanto no conteúdo como nas suas relações com o Estado e a sociedade. E ao longo dos últimos cinqüenta anos esse modelo vem se tornando cada vez mais refinado, garantindo a sua imutabilidade. Hoje a televisão brasileira se apóia em três combinações, que considero perversas e que explicam o misto de deslumbramento e apatia com que a sociedade brasileira se relaciona com o seu mais poderoso meio de comunicação social. Combinou-se aqui: 1) uma televisão de alta qualidade técnica com a impossibilidade de acesso da maioria da população a outras fontes de informação; 2) uma oferta aparentemente gratuita de programas na TV com a falta de regulação legal sobre o seu funcionamento; e 3) a lembrança ainda viva da censura com a ascensão e hegemonia do modelo neoliberal. Essas três combinações sustentam um veículo capaz de organizar a sociedade a partir de idéias e valores dos grupos sociais que o têm sob controle, estando ao mesmo tempo imune a qualquer tipo de acompanhamento crítico institucionalizado. Sua atuação sobre a sociedade é difusa, e o detalhamento das três combinações perversas acima mencionadas pretende lançar algum tipo de luz sobre ela. A primeira mostra uma avançada indústria televisiva, apoiada numa sofisticada rede de comunicações produzindo programas de alta qualidade técnica, com uma embalagem estética altamente sedutora. Essa beleza de luz, cores e sons transita em canais limpos, livres de ruídos e interferências inconvenientes. Com isso conquistam-se o olhar e a mente dos telespectadores, potencializando o poder intrínseco do veículo. A essa força quase irresistível combina-se a impossibilidade da maioria da população de ter acesso a outras fontes de informação e entretenimento. Em países ricos, onde a distribuição de renda é mais equilibrada, o poder da televisão é relativizado pelo acesso aos jornais, livros, filmes, peças teatrais e até pela possibilidade maior de viajar. Nas nações com perfil de renda semelhante à do Brasil, a televisão está longe de atingir os padrões tecnológicos alcançados aqui e é, portanto, menos sedutora ou ainda compete com outras faces da indústria cultural, como é o caso do cinema na Índia. O caso brasileiro é único em todo o mundo. Trata-se de uma combinação perversa que dá à televisão o poder de ser, para 95% da população brasileira, a única janela aberta para o mundo. Uma janela que recorta e edita a realidade segundo os interesses de quem a controla. E é sempre bom lembrar que estamos falando de uma concessão pública, outorgada pelo Estado em nome da sociedade. Não de uma empresa qualquer atuando apenas nos limites do mercado.
Ao receberem uma concessão, os beneficiados passam a usar uma faixa do espectro eletromagnético que é público, o que lhes impede de visar apenas a objetivos empresariais. Eles foram escolhidos para prestar um serviço de informação, educação e entretenimento e devem ser cobrados pela qualidade daquilo que oferecem à população. Afinal, eles estão se utilizando de um bem escasso e finito, pertencente a toda sociedade. No entanto, por uma segunda combinação perversa entre a oferta aparentemente gratuita desse serviço, que inibe a crítica, e a falta de qualquer regulação legal, estabeleceu-se no Brasil uma televisão com mais poderes do que aqueles que detêm os poderes da República. A cada quatro anos é possível renovar o Executivo e o Legislativo, e se buscam formas para um controle mais efetivo do Judiciário. A televisão que influi diretamente nos pleitos eleitorais, induzindo a eleição e a deposição de presidentes, que molda comportamentos e hábitos culturais e de consumo, não tem pela frente nada que cobre sua responsabilidade. O filósofo austríaco Karl Popper, um liberal empedernido, já via na televisão um perigo para a democracia. Aliás, ele até escreveu um livro com esse título, mesmo sem conhecer a televisão brasileira. A que ele conhecia, e criticava, não corre solta como aqui. Órgãos públicos reguladores, como os existentes na França, Alemanha e Reino Unido, por exemplo, acompanham todo o processo de atuação das emissoras, desde a abertura das licitações para concessão de canais, passando pelo acompanhamento do que vai ao ar, até o momento da análise das possíveis renovações. Tudo realizado de maneira transparente, com ampla divulgação até mesmo pela própria televisão. E aqui no Brasil, quem sabe quando começou ou quando irá terminar qualquer uma das concessões existentes? Ai está um dos principais desafios para a sociedade brasileira. Conter nos marcos da legalidade democrática o poder outorgado aos concessionários. E para isso é necessário enfrentar a terceira combinação perversa: o fantasma da censura, de lembrança ainda recente, usado para inibir qualquer proposta de controle social, combinado com a ascensão do modelo neoliberal, do deus mercado, segundo o qual a audiência representa uma escolha livre e soberana do telespectador, quando todos sabemos que as escolhas são feitas sobre ofertas iguais. Há concessionários que chegam a afirmar que dão ao povo o que o povo quer, escudados em pesquisas de audiência, que nada mais são do que "sanções do mercado", como bem mostra Pierre Bourdieu, no livro Sobre a Televisão. Quando aqueles que se apresentam como "donos da televisão brasileira" fazem afirmações desse tipo, estão, na verdade, revelando todo o seu preconceito em relação à imensa maioria da população, formada para eles por cidadãos de segunda classe. As pessoas não querem ver o que vêem na televisão, e inúmeras pesquisas mostram isso. Assistem porque não têm alternativas, dada a mesmice que é a marca registrada da televisão comercial aberta brasileira. Ela mais esconde do que mostra, em nome da liberdade que têm os seus controladores de decidir o que deve ser mostrado ou não. Cria-se dessa forma um poder no interior da sociedade que se protege com o discurso da não-censura, criando ele mesmo a censura que lhe interessa. A melhoria da qualidade dos programas da televisão comercial brasileira só se dará com o desvendamento dessas combinações que estão na raiz do modelo de radiodifusão adotado no País. E com uma ação afirmativa capaz de gerar uma quarta combinação, esta sim destituída de qualquer perversidade. Uma combinação entre a multiplicação da oferta de produtos culturais, com peso suficiente para diminuir a importância relativa da televisão, e a criação de um órgão regulador público responsável pelo acompanhamento da programação televisiva em nosso país. Os diferentes governos brasileiros têm demonstrado temor no enfrentamento dessas questões. O receio de represálias por parte dos concessionários é grande. Diante disso, cabe à sociedade exigir das emissoras mais responsabilidade social e dos governos mais coragem para enfrentar as três combinações perversas, sustentadoras do modelo de televisão vigente no Brasil.
Laurindo Lalo Leal é jornalista, professor livre-docente da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e autor, entre outros, de Atrás das Câmeras - Relações entre Estado, Cultura e Televisão (Editora Summus)

Alternativas e políticas para a melhoria da qualidade Os meios de comunicação, principalmente o rádio e a televisão, nunca foram vistos pelos governos brasileiros como bens públicos estratégicos, contrariamente ao que se deu em outras partes do mundo. Tomando como exemplo a Europa, mais precisamente Inglaterra e Alemanha, apenas para citar dois modelos, o assunto televisão mereceu, e merece ainda, grande investimento e atenção por parte de seus governantes. Para eles, a televisão pública é um bem instalado, a ser preservado, pois ela garante a expressão dos grandes temas nacionais e faz um essencial contraponto aos meios privados. A TV pública reflete a voz da sociedade. No Brasil, as regras de utilização da televisão, baseadas em concessões, sempre estiveram na esfera de exploração do direito privado. Com isso, as TVs brasileiras se desenvolveram com uma programação alinhada por parâmetros e imperativos comerciais, visando principalmente ao mercado de consumo, tendo como objetivo principal o lucro e uma política de mercado marcada pela competitividade. Porém é bom lembrar que por algum tempo a Rede Globo reinou sozinha e a debilidade de concorrência permitiu que ela formatasse um padrão de qualidade que acabou por desenvolver uma indústria, com produtos e profissionais qualificados, reconhecidos e apreciados dentro e fora do País. Este padrão imposto, e dentro do contexto político da época, uniu os corações do "Brasil grande". O padrão Globo sempre se pautou por um certo nível de qualidade estética e conteúdos aceitáveis pela maioria. Com o tempo e as mudanças na política e na economia do País, outras redes privadas tiveram a oportunidade de florescer, e SBT e Manchete surgiram, convivendo ainda com Record e Bandeirantes, para movimentar o panorama do setor. Aos poucos, e até os dias de hoje, outros atores entraram no cenário, incluindo a indústria de TV por assinatura. Canais abertos, de longo e baixo alcance, brigam pela audiência acirradamente. A concorrência selvagem, que busca os números a qualquer custo, passou a determinar mais fortemente os conteúdos, e o fenômeno da "baixaria" apareceu, abusando de temáticas como a violência, o sexo, a apelação, a exploração da desgraça e da miséria humana. A falta de regulamentação - ou melhor, uma regulamentação pouco eficiente -, junto a uma lei subjetiva, abriu a porta para outros excessos como a discriminação, o preconceito ou simplesmente valores não muito recomendáveis, desfilados diariamente e em qualquer horário, sem compromissos maiores com a ética e muitas vezes com os direitos humanos. Esses excessos foram longe demais e acabaram por colocar a discussão sobre a qualidade da TV na agenda social do País. Hoje, sociedade e governo começam a se dar conta da necessidade de uma televisão voltada para a população, com uma programação que valorize o público não somente como consumidor, mas fundamentalmente como cidadão. Ao largo desta história, as TVs educativas - no início presentes nas capitais como geradoras principais e hoje em grande número espalhadas por todo o País - sobrevivem a dificuldades de toda natureza. Criadas na década de 1970 e transmitindo uma programação mais caracterizada como educação formal - telecursos e aulas escolares -, hoje justificam sua existência como contraponto à TV comercial e aos grupos privados, servindo de parâmetro ao sistema, mostrando que a busca pela qualidade na programação pode apoiar o cidadão na sua educação geral, informal, e principalmente na formação de seus conceitos e opiniões. Sendo assim, como filosofia de programação, as TVs educativas se aproximam mais do conceito de TV pública hoje vigente na Europa e Estados Unidos, mas faltando ainda à grande maioria delas uma figura jurídica que lhes permita independência e sustentabilidade. Essas TVs enfrentam hoje o grande desafio de atualizar e qualificar seus quadros profissionais, orientando-os para uma perfil muito particular. Sem contar a questão tecnológica, outro ponto fundamental para o início de uma proposição para uma TV pública atuante e respeitada. Hoje todos queremos e falamos sobre a qualidade, e o aprofundamento desta discussão é bem-vindo. Reconhecemos com muita facilidade a baixaria, mas é preciso entender que a qualidade, como oposição ao termo baixaria, só aparecerá por meio da prática, das discussões entre profissionais, da escuta do público, da experimentação de fórmulas, da formação de jovens diretores e produtores com espírito público, da análise cuidadosa das pesquisas, da busca de novos modelos, da abertura dos mercados de produção e do investimento no setor da televisão pública. A qualidade de programação passa, certamente, pela formulação de políticas públicas, com definição de responsabilidades e criação de mecanismos efetivos e permanentes para que o público tenha assegurado o seu direito a uma televisão de qualidade, comprometida com a identidade nacional, com a cultura, a cidadania e a educação informal. A televisão é um poderoso instrumento de fortalecimento dos valores e costumes de uma sociedade e, por isso, deve ser considerada como estratégica. Países como a Austrália tiveram sucesso com políticas públicas voltadas para a produção audiovisual. Com a criação de mecanismos que garantiram por anos seguidos a produção e a exibição freqüente do produto nacional em horários nobres, a Austrália teve como alvo principal na TV o público infantil, o futuro da nação. Hoje, lá, a televisão e o cinema são considerados elementos estratégicos para a construção da identidade nacional . Para nós, hoje, é urgente a implantação de ações nesta direção. A televisão tem uma presença muito forte. As pessoas passam de três a quatro horas diariamente frente ao monitor. As crianças, principalmente, devem ser vistas como um público especial, mais vulnerável e permeável a conteúdos e em constante formação, merecedoras de atenção redobrada. Cabe à TV pública um olhar nesta direção, cabe a ela formar um público mais treinado, mais crítico, mais exposto à diversidade e à qualidade. Creio que vários passos já estão sendo dados a caminho de uma revisão de modelos. TVs e Rádios educativas e públicas têm se reunido freqüentemente para este debate. A classe política também tem se mostrado atenta e sensível a estas questões, por intermédio de campanhas e seminários especiais na Câmara. ONGs e a sociedade organizada realizaram várias ações efetivas, pela educação da sociedade e pela conscientização dos profissionais, como o evento TVQ, Criança, Adolescente e Mídia, realizado no Sesc, em São Paulo, em dezembro de 2003. O assunto também ganhará espaço privilegiado na IV Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes, em abril, no Rio de Janeiro, uma iniciativa da ONG Midiativa - Centro Brasileiro de Mídia Para Crianças, em parceria com a Multirio, empresa multimeios da Prefeitura do Rio de Janeiro. Este será um dos mais importantes fóruns de discussão, reflexão e apresentação de propostas concretas para o aperfeiçoamento e a qualificação da mídia que se produz para as novas gerações. Este encontro vai reunir os maiores especialistas deste setor no plano mundial que vêm se encontrando nos últimos anos para refletir e sugerir ações concretas relativas à situação mundial das mídias frente às crianças deste planeta. Representantes de todos os continentes estarão celebrando e/ou denunciando situações do bom e mau uso da mídia eletrônica e sua contribuição para a formação da personalidade das crianças. Teremos, então, uma grande oportunidade para chamar a atenção sobre a qualidade da mídia para crianças e adolescentes e ao mesmo tempo aprofundarmos discussões de alternativas e políticas para a melhoria da televisão brasileira.
Beth Carmona é diretora-presidente da TVE Rede Brasil e presidente da Midiativa
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