No emaranhado de origens que é o Brasil, São Paulo aparece como o ponto de intersecção. Será possível determinar um traço comum entre as produções cinematográficas paulistanas?
Basta um olhar pouco mais atento para notar que certas "marcas" acompanham produções de um mesmo lugar. Nada de estereótipos degradantes. Só não é possível ignorar que a estética de diferentes produções pode ter muito em comum. Fica mais fácil entendermos o motivo, se considerarmos que um povo compartilha toda sua história. Logo, é natural que os cineastas, como parte disso, levem essas referências ao seu trabalho. O existencialismo do cinema francês; o inesperado, com um "quê" surreal, no cinema espanhol; a melancolia do cinema argentino; a densidade do cinema nórdico; a aura romântica e poética dos italianos. Por aqui, o resultado dessa equação é mais complicado. Qual é a cara do nosso cinema? Leve-se em conta a imensidão do Brasil, a mistura de culturas e a gritante distância econômica entre a região mais pobre e a mais rica do País. Torna-se impossível responder. Sabe-se que o eixo da produção nacional é São Paulo-Rio de Janeiro e que alguns lugares como Porto Alegre, Fortaleza e Recife começam a firmar-se como importantes pólos de produção. Mas, se é difícil dar uma cara ao cinema do País, São Paulo com todas suas cores e sabores não fica atrás. Terá o cinema paulistano um traço específico?
Trepidante
A despeito de dados oficiais que comprovem uma estética paulistana no cinema brasileiro, ao que tudo indica, a violência onipresente da maior capital do País não passa batida pelas produções paulistanas. Talvez esse seja o ponto em comum. Tome-se como exemplo três recentes produções que foram sucesso de crítica e bilheteria: Bicho de Sete Cabeças (2000), de Laíz Bodansky, Os Invasores (2002), de Beto Brant, e Carandiru (2003), de Héctor Babenco. Todos esses roteiros abordavam, de forma mais tímida ou mais explícita, a tensão que paira sobre o cotidiano paulistano. Era essa bomba-relógio que estava prestes a explodir, fosse no maior presídio da América Latina (Carandiru), no ambiente doméstico da periferia paulistana (Bicho de Sete Cabeças) ou no choque entre o submundo e o glamour da cidade. "Quando me perguntam se existe uma estética paulista específica no cinema, fico tentada a dizer que sim", diz a pesquisadora Regina Meyer, que de 1991 a 1995 coordenou o projeto Cinema e Metrópole. "Mas, para confirmar minha resposta, seria necessário fazer uma comparação com o cinema dos outros estados. De uma maneira geral, tendo a achar que a estética paulistana existe e se manifesta através de alguns traços." O trabalho de Regina resultou no roteiro do média-metragem São Paulo - Cinemacidade, dirigido em parceira com Marta Dora Grostein e Aluysio Raulino. No documentário, a cidade aparece representada por cinco atributos: transformação, anonimato, multidão, precariedade e dimensão, enquanto trechos de filmes já realizados em São Paulo se misturam a novas imagens. "O primeiro dos traços que detecto é a vontade de mostrar a cidade trepidante", volta Regina. "Muita gente, muito carro, tudo rápido, calçadas movimentadas e, é claro, muito barulho. Por isso o Anhangabaú é tão presente nos filmes paulistas. Além de ser uma marca reconhecível, possui todos esses ingredientes", analisa. A cineasta Tata Amaral endossa a tese. "Uma das imagens mais bonitas de São Paulo no cinema é a de uma personagem de A Margem, de Ozualdo Candeias. Mostra ela chegando ao centro da cidade, no Vale do Anhangabaú. Trata-se da representação da modernidade, da civilização, de tudo que o progresso poderia trazer naquela época (1967). O Vale do Anhangabaú é um lugar extremamente representativo na memória da cidade." Ainda de acordo com Regina, outro elemento muito marcante nos filmes paulistanos é a presença de edifícios recentes e lugares novos da cidade. "Talvez para marcar São Paulo como um lugar de renovação permanente. Há também a procura de imagens da periferia para marcar os espaços de algumas personagens. É a contrapartida paulista aos morros cariocas." Alguns filmes eleitos pela pesquisadora como dignos representantes da cidade são A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, e Céu de Estrelas, de Tata Amaral. "Em A Hora da Estrela, a personagem (Macabéa) anda pelo Brás e por outros lugares numa espécie de circuito "pobre" da cidade. A rua onde mora é típica dos cortiços paulistanos ainda hoje. As vitrines em que admira os parafusos, momento lindo do filme, são típicas do centrão. Em Céu de Estrelas, Tata Amaral retrata um típico ambiente urbano paulistano, sem sair de casa. Só na última cena é que se vê que a casa está localizada num dos bairros do centro." Ninguém arrisca afirmar categoricamente a existência de um denominador comum nos filmes rodados em São Paulo. Apesar de ter detectado traços semelhantes em muitos filmes, Regina não fala da existência de uma estética paulistana dentro do cinema brasileiro, já que, para isso, seria necessária uma detalhada comparação entre os cinemas de todos os estados, ou pelo menos dos que se vêm firmando como pólos. No entanto, alguns filmes são relacionados pela crítica como fiéis retratos de histórias tipicamente paulistanas. Nessas produções, São Paulo está de corpo e alma.
"Paulista até a medula"
A frase acima foi cunhada por João Mors Cabral, em texto publicado no site da Revista Contracampo, publicação especializada em cinema (www.contracampo.he.com.br), para descrever o filme São Paulo S.A. (1965), de Sérgio Person. "Já é criativo até no título", escreveu Luiz Zanin Oricchio, crítico de O Estado de S. Paulo, referindo-se à sigla S.A, usada para caracterizar uma sociedade anônima. "Person joga tanto com o mal-estar da sociedade industrial quanto com o anonimato da cidade grande. Bastante influenciado pela nouvelle vague, ele filma uma metrópole fria, impessoal, propícia para a alienação das personagens", diz o crítico, justificando o título. Apesar de quase quarenta anos desde que foi lançada, a produção continua sendo aclamada como ícone do cinema paulista. Nela, Walmor Chagas vive Carlos, um homem atormentado por uma crise existencial que se junta a um empresário (Antonio Zeloni) para montar uma fábrica de autopeças. Apesar do sucesso financeiro e do casamento com uma bela e elegante mulher (Eva Wilma), Carlos não consegue fugir de sua depressão, que chega ao ápice quando ele abandona tudo e passa um dia inteiro vagando sem propósito pelo centro da cidade. Praticamente unanimidade entre a crítica, é difícil encontrar quem não o tenha como resposta na ponta da língua, frente à pergunta "qual o filme mais paulistano de todos?". "Talvez, entre todos os filmes que tiveram São Paulo como cenário e até como tema, sejam Noite Vazia e São Paulo S.A., de Luiz Sérgio Person, os dois maiores", acredita Luiz Carlos Merten, crítico de O Estado de S. Paulo. Como já dito, não se trata mais de uma surpresa que São Paulo S.A. encabece a lista dos filmes que melhor representam São Paulo. Mas, de fato, Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khoury, tem elementos de sobra para dividir a menção com a produção de Person. "Os filmes de Khoury exploram muito a atmosfera paulista", esclarece Regina Meyer. "Em Noite Vazia, as duas personagens (Odete Lara e Norma Bengel) aparecem num prédio novo na avenida São Luiz. Quando os dois rapazes as abandonam, no raiar do dia, elas são deixadas, em elegantes vestidos pretos, estilo Mônica Vitti, na praça Roosevelt, antes da construção atual. É uma cena linda, a câmera se afasta com o carro onde estão os dois rapazes, um pouco acafajestados, deixando as duas para trás, diminuindo no horizonte. É uma cena triste e a praça serve muito bem. As personagens dos filmes de Khoury são paulistanas enquanto as de Person circulam por uma cidade específica."
Sexo e problemas existenciais "Naquela época (anos de 1960 e 1970), o cinema que valia era herdeiro do neo-realismo, e aí vinha aquele Khoury querendo falar de sexo e de problemas existenciais num país onde a estética tinha de ser da fome para colocar a cara do Brasil na tela", analisa Merten sobre a carreira do cineasta que morreu há menos de um ano. Acontece que o cinema de Khoury não era só a boca do lixo, nem da estética da fome, o que o deixou muitas vezes na berlinda, principalmente com a crítica. Mas, no fundo, mostrava o drama da típica elite paulistana, que nada mais é do que uma reação ao drama do país da estética da fome. Ela vive com um pé nos bairros chiques do Primeiro Mundo, mas pára o carro nos faróis dos países de Terceiro Mundo. São Paulo talvez seja a melhor representação da chamada Belíndia - expressão criada para traduzir esse dramático encontro entre o nível de vida desfrutado num país rico, como a Bélgica, e os bolsões de miséria, como os da Índia. Essa bomba explode nas periferias, mas a faísca também vira fogo nas classes ricas. Khoury filmava esse incêndio. "É com Noite Vazia que ele acha seu tom, o seu estilo. É uma maneira de filmar o sexo, impregnado de erotismo, e relatos que vão além do social, no rumo de uma investigação sobre o comportamento humano nas camadas mais favorecidas da sociedade brasileira. As pessoas no cinema de Khoury moram bem, comem bem, vestem-se bem, mas vivem mal, devoradas pelos sentimentos de solidão, incomunicabilidade e alienação", conclui Merten.
Boca do lixo
No final dos anos de 1960, um grupo de cineastas paulistanos iniciou um movimento chamado Cinema Marginal. Era o cinema produzido por quem freqüentava a boca do lixo paulistana, situada no centro da cidade, onde prostitutas, mendigos e malandros viviam a face mais underground da noite paulistana. Em bares daquela região, esses diretores se encontravam para subverter o cinema nacional. Surgiram no rastro do Cinema Novo, que criticavam, mas do qual se utilizaram. A prerrogativa mínima para a realização da sétima arte pregada pela turma de Terra em Transe, com apenas uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, também define o Cinema Marginal. Sonhavam com um cinema quase artesanal, feito com o mínimo de recursos. "Se não podemos fazer o melhor, façamos o pior", dizia Carlos Reichenbach, um dos cabeças do grupo. Mas, para eles, a aura intelectual do movimento, liderado por Glauber Rocha, não colava. A ordem era escancarar o submundo, mostrar a realidade brasileira sem um pingo de maquiagem. Apesar das farpas, o reconhecimento era recíproco. Se a técnica de Glauber serviu de pontapé para o Cinema Marginal, as críticas do pessoal da boca do lixo também tinham eco do lado de lá. "(...) A agressividade de Rogério Sganzerla contra o Cinema Novo, apesar das injustiças e das ingenuidades, era a única coisa que, aos meus olhos, fazia as perguntas que o Cinema Novo deveria ouvir", diz Caetano Veloso a Glauber Rocha em carta escrita durante o exílio em Londres. "Glauber Rocha tinha uma grande preocupação com o cinema, mas não com a política. Quando eu fazia fitas, todos as criticavam porque eu punha negros, pés descalços e a Igreja envolvida. Eu não tive receio. Meu nome foi esculachado diariamente", dispara Ozualdo Candeias, um dos mais emblemáticos cineastas da marginalidade, que em 1967 fez A Margem, filme em que mostra a vida das populações marginalizadas nos arredores da represa Billings, em São Paulo. Junto a O Bandido da Luz Vermelha, A Margem é um dos mais emblemáticos títulos desse movimento. Outros nomes como Carlos Reichenbach, João Silvério Trevisan, Andréa Tonacci e o crítico Jairo Ferreira também figuraram na constelação da boca do lixo paulistana e trouxeram às telas o mais genuíno submundo da metrópole.
À luz de Rogério Sganzerla - Ao tentar delinear as fronteiras do cinema paulistano, impossível não lembrar do cineasta de O Bandido da Luz Vermelha Nos anos de 1960, as mulheres da cidade de São Paulo estavam aterrorizadas por um homem que invadia suas casas na calada da noite e, com uma luz vermelha, iluminava o ambiente para passar horas conversando com suas vítimas antes de matá-las. Rogério Sganzerla, que batia de frente com o Cinema Novo, pegou a história e a levou para as telas de cinema, consagrando-a como um dos filmes mais marcantes produzidos no Brasil durante aquela década. Sganzerla, morto no início de janeiro, é considerado um dos mais fiéis representantes do cinema marginal paulistano. "Deve-se reconhecer que poucas vezes São Paulo, como protótipo da cidade nervosa, foi retratada de forma tão fiel", analisa o crítico Luiz Zanin. "O trânsito nas ruas, o movimento das pessoas, o desequilíbrio visual da arquitetura, tudo isso é tratado como um jorro visual criativo, entrecortado, cheio de paródia, ironia e raiva." Há quem ache até que o filme foi precursor de um estilo de mostrar a violência que quase trinta anos depois se consagraria nas mãos do diretor americano Quentin Tarantino, mas não sem, antes disso, ter precedido o genial Stanley Kubrick na maneira ácida de criticar a sociedade. "O Bandido da Luz Vermelha, que acompanhava o bafafá criado pelas ações de um ladrão, assassino e estuprador, representava uma metáfora da ação do poder repressor", analisa Rodrigo Fonseca, da Revista de Cinema, em seu texto O Cineasta da Transgressão. "Era uma violência estilizada, tataravó do estilo Pulp Fiction. Anos antes de Stanley Kubrick abordar realidade similar com seu Laranja Mecânica, Sganzerla chocava com sua experiência visual rica em referências à cultura nacional, incluindo MPB, literatura e o próprio cinema."
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