Postado em 01/07/1998
Morro de pena da Pati, mas ela me azucrinar toda a noite já encheu. Hoje, nem pensar. Quase onze horas, à meia-noite tenho encontro com a Beth na DancheTeria, e a Beth eu não posso perder de jeito nenhum, nem com todas as pirralhas do mundo batendo na minha porta.
Mas ela continua, toc tocs levinhos, nunca entendi por que não usa a campainha. Ai, saco! Eu sei que não vou resistir. A Pati devia chamar Tadinha. Menininha de tudo, só dez anos, e fica a noite inteira sozinha. Iracema, a mãe, desaparece depois das oito, diz que trabalha num disk-pizza 24 horas mas, sabe-se lá. Volta às seis da manhã, num mau humor de bebida barata, doida pra esfolar a garota, um perigo. A vida é difícil com todo o mundo. Minha infância dava manchete. Então teve o dia abençoado que meu destino mudou. Mas noite sim, noite também, a criança acorda assustada, e vem me procurar.
Abro a porta. Seu rosto vermelho de quem chorou.
- Que foi, Patizinha? Pesadelo outra vez?
Balança a cabeça dizendo que sim, deixa escapar um soluço e me abraça.
- Que é isso, boba. Sonho é sonho, mais nada. Acordou, ele acaba.
- Eu sei... mas foi aquele de novo.
- O do susto?
- É. Só o finalzinho era diferente.
- Senta no sofá enquanto você conta. Quer um leite quente?
Aceita e eu começo a procurar os fósforos. Saco. Tenho que ser rápido por causa da Beth.
- Minha mãe brigou comigo.
Grande novidade. No prédio ninguém mais agüenta. Eu mesmo, dias atrás, achei demais. Oito da manhã e a mulher resolve quebrar toda a louça aos gritos de "te mato, acabo com tudo". Fui lá exigir silêncio, a porta estava aberta, a Pati num canto, mãozinha cobrindo o rosto (quem não tem pesadelo desse jeito?) e a Iracema um berro:
- Safada! Não lavou a louça? Quebro você que nem tou quebrando tudo, tranqueira do demônio.
Ia avançar em cima da menina mas eu avisei: Encosta a mão nela e você tá morta.
- Toma - digo passando o copo de leite - Quer dizer que tua mãe brigou de novo com você?
- No sonho, não de verdade.
Bebe devagar, goles curtos. Eu olho o relógio: onze e cinco. Ela coloca o copo na mesinha do sofá:
- Tem uma coisa que eu queria te dizer, mas jura que não conta pra ninguém?
- Juro - respondo.
- Por Deus?
- Não precisa tanto.
- ... A Iracema... ela não é minha mãe.
Só me faltava essa!
- E cadê a tua mãe?
- A Iracema disse que ela fugiu... pra fazer a vida. O que é fazer a vida?
- É... é... é quando alguém vai pro céu. É isso. Tua mãe tá no céu, brincando com Deus.
Aliviada continua:
- Então ela brigava comigo e me trancava no armário.
- Ela te tranca no armário?
- Quando eu sou ruim.
- E quando você é ruim?
- Ah, às vezes, sem querer, eu quebro uma xícara, ou faço xixi na cama. Ontem, eu peguei o batom dela e passei na minha boneca. Iracema ficou brava, disse que era importado, me marcou com o cigarro aqui, ó (mostra a marca no lado de dentro do braço, perto do pulso). Ardeu muito...
A gente se acostuma com essas coisas nos noticiários, mas ver de perto é diferente. A louca da Iracema fazer isso com a coitada da Pati é demais.
- Vem fazer um curativo - eu digo.
Lavo seu braço magro com sabonete, enxugo, ponho bandeide. Vou acabar perdendo a hora do encontro. Pergunto se está com sono.
- Eu tenho que sair, mas pode dormir no sofá.
- Não posso... Se ela sabe que eu venho aqui... Mas deixa eu contar.
- Conta.
- Aí ela me trancava no armário, só que o armário não terminava, parecia mais um corredor, sabe como é o corredor aqui do prédio quando apaga a luz?
- Sei.
- Então. Era parecido. Eu corria, porque ela vinha atrás de mim dizendo que ia me matar, acabar mesmo comigo. Daí, eu batia numa porta e você abria. No sonho, o teu quarto é igualzinho ao de verdade, só um pouco maior. Tem até esses livros e todas essas coisas esquisitas.
Onze e meia. Se eu correr, ainda dá tempo.
- Você me abraçava e eu não tinha mais medo de nada. Nem da Febem.
- Febem?
- A Iracema jurou que me manda pra Febem.
Tento acalmar minha vontade de espancar a safada da Iracema, arrebentar ela todinha.
- Aí eu chorava, contava tudo e você ficava esquisito.
- Esquisito como?
- Sei lá, tua cara mudava. Você dizia uau! E virava um vampiro voando pelo quarto. Mas eu não tinha medo não. Até achei gozado.
- Teve um filme parecido na televisão. Você se impressionou.
- A Iracema quebrou a televisão faz tempo.
Tenho que me apressar, tomar um banho rapidinho e chispar pro encontro. Mas posso deixar a Patizinha com essa maluca? Vai que ela manda mesmo a menina pra Febem. E eu tinha que estar no meio desse rolo? Penso rápido no que imagino seja a única solução:
- Pati, olha bem pra mim. Você jura que vai me dizer a verdade?
- Juro sim. Eu num minto.
- Jura que ela te bate, judia de você e vai te mandar pra Febem?
- Juro.
- E você gosta dela?
Fica em silêncio.
- Responde, Patrícia. Você gosta?
Ela olha pra mim mostrando um rosto que eu nunca tinha visto nela. Boca fininha, olho escuro parecendo rapina, e uma voz tranqüila quando responde:
- Se eu pudesse... matava ela bem devagarinho. Por causa do que ela diz da minha mãe...
Isso me anima. Quem sabe tudo dá certo? Aproximo meu rosto do seu.
- Escuta, você tem que confiar em mim. Confia?
Diz que sim.
Então digo uau!, sinto meus dentes crescendo e viro um vampiro. Vôo um pouco pelo quarto. Depois mordo a Patizinha com cuidado no pescoço e ela logo desmaia. Presto atenção pra não retirar muito sangue. Levo a pobrezinha até sua cama e cubro direitinho com o lençol. Vai ter um pouco de febre, de manhãzinha. Mas sei que vai dar certo. Que eu podia fazer? Deixar ela desamparada num mundo de gente ruim, se fácil fácil dava pra mudar seu destino? Foi como fizeram comigo, uma noite, há 200 anos. E não canso de agradecer. Em menos de 48 horas será uma linda vampirinha. Imagino o susto da Iracema quando encostar a mão nela de novo.
Volto pro meu apartamento e tomo um banho rapidinho. Amanhã, com calma, explico tudo pra Patizinha sobre sua nova vida. Vai achar um luxo descobrir que pode voar. Mas, por enquanto, penso em me vestir e correr ao encontro da Beth... e do seu lindo, delicioso, macio pescocinho. Uau!
Mora Fuentes é escritor, jornalista e autor O Cordeiro da Casa