Postado em 09/03/2004
Foto: Gabriel Cabral
Carta de 1988 tornou o país praticamente ingovernável
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
No dia 9 de outubro de 2003 o jurista Ives Gandra da Silva Martins esteve no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde fez uma palestra, seguida de debate, com o tema "Reforma Administrativa e Desburocratização". Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate pode ser lido na edição impressa da revista.
Vamos fazer um rápido histórico e diagnóstico da realidade brasileira e em seguida analisar os problemas que o governo Lula tem de enfrentar interna corporis, em função dessa realidade. Depois disso, apresentaremos algumas sugestões de natureza pessoal, sobre a forma de encaminhar a reforma administrativa e a desburocratização.
A rigor, partimos do princípio de que a primeira reforma em que o governo deveria ter pensado é a administrativa. A tributária tem o objetivo de trazer recursos para a administração pública. É o tamanho da máquina, a estrutura oficial e a dimensão do governo que vão, evidentemente, quantificar os valores que a sociedade deve pagar, através de tributos, para sustentar o Estado. Então a reforma deveria mostrar que tipo de Estado gostaríamos de ter. E a partir daí quantificar os instrumentos mais adequados para cobrir suas necessidades.
No governo Fernando Henrique houve uma reforma administrativa, com a emenda constitucional número 19. O projeto original até que não era ruim. Mas, diante da grande pressão, recebeu emendas e ficou muito aquém do que se esperava.
A origem do problema decorreu propriamente da formatação da Constituição de 1988, que tornou o país praticamente ingovernável. Sinto-me muito à vontade para falar, porque, juntamente com o professor Celso Bastos, redigi um comentário sobre a Carta brasileira em 15 volumes. E quanto mais me debruçava sobre os estudos constitucionais, mais verificava a inviabilidade daquele texto. O mastodôntico Estado brasileiro nasceu de um vício de origem: o fato de terem sido criadas, logo de início, oito comissões, divididas em 24 subcomissões, que trabalharam sem nenhuma espinha dorsal, sem nenhum projeto. Foram produzidos 24 textos e não havia comissão de sistematização capaz de conciliá-los.
Cito um exemplo interessante: o constitucionalista Alberto García Lema era procurador-geral do governo Carlos Menem na Argentina. Quando Menem pensou em mudar a Constituição do país, García Lema, com quem eu já tinha um relacionamento anterior, esteve algumas vezes reunido comigo e com Celso Bastos. Discutíamos, entre outras coisas, as falhas da Carta brasileira. Ele chegou à conclusão de que deveria fazer o que não fizemos, para não correr o mesmo risco. Levou a seu presidente uma proposta de um grupo de juristas, de todos os partidos, que prepararam o anteprojeto, com 129 artigos e apenas 17 disposições transitórias – era praticamente uma Constituição de princípios, e não uma Carta com legislação ordinária, resoluções do Banco Central, portarias e decretos. Ela foi aprovada em pouco mais de três semanas, pois os partidos já estavam de acordo.
No caso brasileiro, todos os que tinham disponibilidade de tempo passaram a exercer pressão sobre os constituintes. Os grandes lobbies eram fundamentalmente de servidores públicos. Nossa Constituição é dividida em dez títulos, sendo nove ordinários e um de disposições transitórias. Um dos títulos mais permanentes é o das disposições transitórias. Começamos com 70 e poderemos ter 99. É um tipo de Constituição para ser comprada em banca de jornal, por sua provisoriedade. Aprovamos 46 emendas em pouco mais de 15 anos, enquanto a Carta norte-americana teve 26 emendas em 216 anos. Isso por causa daquela conformação de 24 subcomissões, todas elas produzindo um texto isolado, sem discutir com as demais, o que deixou os próprios relatores sem condições de apresentar um texto coerente. Quando tudo chegou à comissão de sistematização, pensou-se até em fazer um novo projeto, o que levou à formação do grupo Centrão, para tentar salvar algumas das conquistas, principalmente da ordem econômica, já que a maioria dos deputados e senadores de linha não esquerdista ou socialista foi para essa comissão. Grande parte dos parlamentares esquerdistas concentrou esforços na ordem social, o que resultou numa Constituição cheia de conflitos e com dispositivos realmente curiosos.
No artigo 242, por exemplo, há um dispositivo que diz o seguinte, no parágrafo 2º: "O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal". Para se preservar o colégio, ele se transformou em princípio constitucional. Há outras curiosidades: nas disposições transitórias se definiu que se deveria criar, através de uma comissão mista, "exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro". E se diz que, "apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de 60 dias, a ação cabível". Isso não existe, pois o foro de nosso endividamento é fora do país. Não consigo imaginar o procurador-geral da República em Nova York para propor a "ação cabível". Absolutamente fora da realidade.
A Constituição já teve 46 emendas, e cada vez que é discutida uma nova proposta as pressões daquilo que se chama de direito adquirido ocorrem de tal maneira que não se consegue avançar. Vejam, por exemplo, a emenda constitucional 20, que teve como relator o deputado Luiz Humberto Prisco Viana, e que saiu absolutamente deformada. Os direitos adquiridos foram todos garantidos, apesar de não se pretender isso. Criou-se apenas um pouco de extensão no prazo, e chegamos a 2003 sem equacionar tudo aquilo que podia ter sido resolvido em 1998. Porque, ao se pretender ganhar demais, não se conseguiu absolutamente nada. Se não tivessem sido garantidos os direitos adquiridos naquela ocasião, quando o déficit da Previdência Social era menor, hoje já estaríamos numa posição muito melhor. Estaríamos também com um novo regime jurídico que pelo menos asseguraria a administrabilidade da Previdência.
Passamos então a ter uma Constituição em que os direitos e garantias fundamentais foram extremamente valorizados e a federação ficou de tal tamanho que não cabe dentro do Produto Interno Bruto. Criou-se estatutariamente uma federação que tornou o Brasil ingovernável. O número de estados cresceu e deixamos de ter territórios. O território, aliás, passou a ser uma figura spielberguiana, pois só existe na Constituição, onde há mais ou menos uma vintena de artigos dedicados a ele. Não temos nenhum território no Brasil e nunca teremos.
Em compensação, multiplicamos os estados. O de Tocantins, por exemplo. Quando foi criado, praticamente não tinha cidades. Como o Fundo de Participação dos Municípios outorgava recursos ao município de Palmas, fez-se um acordo com o prefeito daquela capital quase inexistente para que todo recurso recebido fosse transferido para o estado. Passados quatro anos, um novo prefeito não quis abrir mão do dinheiro. A questão foi para os tribunais e até assinei um parecer a esse respeito. O tribunal terminou reconhecendo que não poderiam transferir os recursos do município para o estado. Isso porque se criou um estado que não tinha capital, não tinha população, etc.
Se analisarmos os estados existentes, veremos que alguns surgiram por razões exclusivamente políticas, e não deveriam ter deixado de ser territórios federais. Há estados cuja população é menor que a de um bairro paulistano, como é o caso do Acre, que tem menos habitantes que São Miguel Paulista. Com a possibilidade de se criarem municípios por lei complementar exclusiva e por plebiscito, passamos de 3,9 mil para 5,5 mil municipalidades, com todos os seus vereadores remunerados. Só depois é que se foi corrigindo isso através de emendas constitucionais. A população era a mesma, mas o custo político cresceu assustadoramente, pois aumentaram o Poder Judiciário e o Legislativo. Nos Estados Unidos há estados que têm só um representante na Câmara dos Deputados, enquanto nossas unidades federativas, por menores que sejam, têm cada uma pelo menos oito deputados garantidos. Isso deu origem a uma estrutura que cresceu assustadoramente, e os burocratas passaram a ter equiparação. Assim, se aumentavam os salários de um dos poderes – Judiciário, Legislativo ou Executivo –, os demais elevavam os seus também. Isso gerou problemas que são os chamados "esqueletos econômicos", ainda hoje discutidos na Justiça, sobre direitos de servidores que se consideram prejudicados. A todo momento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) geram passivos monumentais para o Poder Público.
Temos, portanto, uma federação ingovernável. Até porque, comparando com outras, a nossa é diferente. Quando comentamos a Constituição, tomamos por modelo 50 Cartas de diferentes países e de 23 federações. A nossa é a única que cria poderes municipais impositivos, o que faz de cada entidade federativa quase uma República própria. Hoje a "autonomia das entidades federativas" chega, muitas vezes, a significar quase uma soberania, pois prefeito e vereadores de uma cidade têm a autonomia de uma verdadeira entidade federativa. Não se trata de um condado, como na federação norte-americana, em que os municípios somente têm poder impositivo em decorrência de concessões do Estado, e não por força da Constituição.
O crescimento da máquina administrativa de imediato criou um problema, que é fulcral em uma reforma administrativa: o direito adquirido. Na ação direta de inconstitucionalidade (Adin) 2.010, o STF entendeu, no julgamento da lei com a qual se pretendia tributar os inativos, que eles não poderiam ser tributados porque havia um direito adquirido. Mais: haveria também um efeito de confisco sobre os inativos. Tenho a impressão de que houve um erro básico por parte do governo Fernando Henrique Cardoso quando pretendeu instituir uma tributação de 25%. Se tivessem colocado uma de 11%, que é o que se paga na ativa, é evidente que seria até difícil dizer que o inativo deveria ser imune. Mas o certo é que o STF, na Adin 2.010, declarou que o direito adquirido tem de ser respeitado. É ainda uma medida liminar.
O direito adquirido quem o tem é a sociedade contra o Estado, não este contra aquela. Vale dizer que, embora o interesse público tenha de prevalecer, os detentores do poder, enquanto se beneficiam de sua posição, não podem ter direito adquirido contra a sociedade.
Minha tese é que, em matéria de Previdência, só podem prevalecer os direitos adquiridos em relação ao regime geral. O STF declarou que "todos os servidores públicos têm direitos adquiridos em relação a todos os benefícios dos artigos 37 a 42 da Constituição", coisa que o cidadão comum não tem. O regime geral para nós vai até dez salários mínimos. Para mim isso não caberia, porque não posso promover uma soma de felicidades: justamente quem deveria servir à sociedade é que se serve dela. Mas, admitindo que o STF entendeu que isso cabe, embora em medida liminar, podemos interpretar: cabe até onde? Até o limite de dez salários. Não se podendo receber mais do que esses dez salários mínimos, é evidente que o regime geral se aplica até dez salários mínimos; acima disso pode-se tributar. Entendo que, pela própria ação do STF, a partir daí não existe regime geral. Ora, em nível de legislação ordinária, isso poderia representar, só com a mudança no STF, que não enfrentou o problema na Adin 2.010, uma grande economia por parte do governo, que poderia cobrar já de todos aqueles que estão recebendo mais do que dez salários, que são os grandes geradores do déficit. Sabemos que dos 3 milhões de aposentados do serviço público, da União, estados e municípios, pouco mais de 2,3 mil estão no regime geral e recebem até dez salários mínimos. Há cerca de 600 mil que ganham acima disso e, por essa pretendida imunidade do regime geral, nada pagam e ainda argumentam que não devem pagar nada.
Isso leva a algumas incongruências monumentais. Vejam o caso de um desembargador ou ministro do STF que já tivesse tempo para se aposentar. Ele paga para trabalhar porque, se se aposentasse, receberia rigorosamente o que está ganhando, e deixaria de recolher a contribuição previdenciária a que está obrigado na ativa. Por exemplo, os ministros José Carlos Moreira Alves e Sydney Sanches, o desembargador Sérgio Augusto Nigro Conceição, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, já concluíram o tempo de aposentadoria e estão pagando para trabalhar. Poderiam receber rigorosamente o mesmo que na ativa, deixando de descontar as contribuições. Mas não são todos que pensam dessa forma.
Geramos um déficit do segmento público da Previdência – 3 milhões de aposentados – que o ministro Ricardo Berzoini apresentou como de R$ 54 bilhões em 2002, contra apenas R$ 18 bilhões do segmento privado, com mais de 20 milhões de aposentados. O governo entrou com um projeto que parecia absolutamente coerente para equacionar o problema. Mas, em função dos lobbies, ele foi sendo gradativamente desfigurado. Hoje estamos com um projeto que, se aprovado no Senado sem outras distorções, representará uma economia de R$ 2 bilhões a R$ 3 bilhões, no máximo, no que diz respeito àquele déficit de R$ 54 bilhões. Isso é apenas uma sinalização de boa vontade, porque não vamos resolver os grandes problemas enquanto não se discutir a fundo o direito adquirido. Poderíamos ter uma sensível melhora nas contas públicas se na Adin 2.010 o STF equacionasse definitivamente o problema, estabelecendo o regime geral, mas até o limite dos dez salários mínimos.
Há mais coisas que preocupam na Constituição. Tivemos 46 emendas e com elas não equacionamos praticamente nenhum problema. Ainda temos uma federação que continua a crescer. Foram 40 emendas no processo ordinário e seis no revisional, e temos hoje diversas emendas só de disposições transitórias. Estamos com um processo de desvinculação de receita da União, pelo qual vinculações que eram importantes, como a da educação, são prejudicadas na tentativa de administrar o país, como se não precisássemos investir em educação. Temos a composição dos juros, de um lado, o déficit da Previdência do outro, e uma estrutura administrativa que não desincha, que é a terceira perna do tripé. Ele é formado por uma estrutura esclerosada, privilégios dos servidores e juros altos, o que leva a uma federação que não cabe no PIB.
Dentro desse contexto, veio o projeto de reforma tributária. Quem examina essa proposta percebe que ela vai complicar a vida das empresas, não beneficiará o sistema tributário, e vai representar um aumento efetivo de carga tributária. Os aspectos considerados positivos – a lei complementar 87, mais abrangente, e a redução de cinco alíquotas – serão absolutamente inviabilizados pela aplicação do chamado regime de destino em 11 anos. Nenhum país do mundo tem o regime de destino no Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que é o nosso Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). A União Européia aprovou esse regime há dez anos, mas até agora não tiveram a coragem de aplicá-lo, porque acreditam que vai trazer mais problemas que soluções.
O deputado Mussa Demes, um dos poucos que conhecem em profundidade o direito tributário, reconhece que o regime de destino não vai funcionar, porque não permite cobrança adequada. No regime de destino, ou se cobra tudo na origem ou tudo no destino. Se se cobrar no destino, não haverá fiscalização suficiente, porque não se terá o controle de origem. Se se cobrar na origem, vai depender de uma série de fatores, como, por exemplo, o estado não se utilizar desses recursos, e fazer uma fiscalização adequada.
Queremos aplicar um sistema pelo qual se pretende, na verdade, aumentar a receita dos estados importadores líquidos, que querem receber mais. Ora, se os importadores vão ganhar mais e os exportadores não querem perder, a conta não fecha. Mais: para simplificar a vida das empresas criou-se um dispositivo monumental. Por esse dispositivo, a lei complementar, se for aprovada, preverá a obrigatoriedade da prestação, por meio eletrônico, de informações relativas a cada operação, e no momento de sua realização, por parte de todas as empresas que fizerem operações interestaduais. Então o empresário que estiver vendendo um produto precisa de um sistema integrado de informações, contendo dados de todas as administrações tributárias do Brasil, com seus 27 estados e 5,5 mil municípios.
Todas as empresas passarão por 27 fiscalizações, além da do seu município e da da União. E dizem que isso é para simplificar a vida das empresas e lhes dar mais competitividade. Por que criaram o dispositivo? Porque é a única forma de controlar. É evidente que um dispositivo como esse vai ser o inferno astral de todas as empresas e, ao mesmo tempo, o paraíso da parte da fiscalização menos idônea. E não haverá mais a privacidade necessária aos negócios.
Ora, esse regime vai representar um aumento de carga tributária, pois vamos sair de uma alíquota média de 18% ou 19% para possivelmente 23% ou 24%. Serão poucos os tributos na primeira, segunda, terceira e quarta alíquotas, quase tudo irá para a última alíquota, a de 25%. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, em 2003 tivemos um aumento da carga, que chegou a 37,5%. Fora isso, ainda há outros instrumentos com viés redistributivo que vemos no Partido dos Trabalhadores (PT), como se tentou com a progressividade do imposto sobre heranças e doações e a progressividade (esta foi aprovada) nas operações imobiliárias para os municípios. Aqueles em dificuldades vão fazer uso disso, e há possibilidade até de se reintroduzir o imposto sobre grandes fortunas, fora o que estamos ouvindo da Receita Federal sobre um aumento do imposto de pessoas físicas de 27% a 35%.
Considera-se que quem recebe no Brasil o equivalente a US$ 750 por mês, sem descontos, ganha uma fortuna, e por essa razão deve entrar na faixa dos 27,5%, sem direito a nenhuma espécie de dedução. Isso não acontece em nenhum país desenvolvido do mundo. Temos aí um processo de emburrecimento nacional, pois quem coloca os filhos em escolas que não valem nada pode deduzir, mas se pagar um pouco mais pela educação não pode, pois ultrapassa aquele limite miserável que é colocado para a dedução.
Dentro desse contexto, estamos com uma tributação excessiva sobre circulação de bens e serviços, sob o viés que sempre foi característico do partido que venceu as eleições, que é retirar da sociedade para fazer a redistribuição através da progressividade e de mecanismos para cobrar daqueles que têm mais. Na verdade, isso elimina a pouca poupança que temos, abrindo espaço para os recursos estrangeiros, sobre os quais o governo não tem nenhum controle.
Não há nenhuma intenção de mudar a estrutura administrativa desta federação que não cabe no PIB. Em vez de fazer a reforma administrativa, estão partindo para mudanças com o objetivo de conseguir mais receita. O governo promete que isso não vai representar aumento de carga tributária, mas como é que o presidente da República pode dizer que 27 governadores e 5,5 mil prefeitos não vão aumentá-la, se lhes dá os instrumentos para tanto?
Não pretenderam reduzir o tamanho do Estado, até ampliaram o número de ministérios, mas querem aumentar a receita com um projeto em que os estados importadores líquidos possivelmente ganharão (não tenho certeza, porque não vai ser tão fácil assim, pois a aplicação vai complicar a vida de todos) e em que os estados exportadores líquidos certamente perderão. Mas quem mais vai perder, decididamente, será o contribuinte.
E temos o partido político, que é o que me preocupa. Um dos problemas que vemos no presidente Lula é que ele tem dois tipos de ministros: os que não são de seu partido, que entendem de economia e de desenvolvimento e que estão fazendo um trabalho adequado – têm inclusive servido de aval a investimentos estrangeiros, como é o caso de Luiz Fernando Furlan, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, de Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, de Roberto Rodrigues, na Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Percebemos que esses estão fazendo aquilo que mantém a imagem de um presidente que está conseguindo consertar a casa. Mas temos também os ministros políticos, que vêm com toda aquela concepção de república socialista, aquela em que se tem de tirar dos outros para dar ao governo. Não que este seja um bom redistribuidor de riqueza, porque nunca foi. Dentro dessa linha, a meu ver ele terá problemas se, por acaso, em algum momento os bons ventos que estamos vivendo mudarem. Em última análise, aquilo que decide se um país vai ou não crescer decorre fundamentalmente de quem está agindo bem na economia, e esses não são petistas.
Vejamos o caso da agricultura. Não existe razão para haver dois ministérios, um para reforma agrária e outro para agricultura. Coloca-se um cidadão extremamente competente e conhecedor, como é Rodrigues, no Ministério da Agricultura, e para a reforma agrária um ex-participante do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que violenta a lei, pois descumpre ordens judiciais. E se percebe que a cúpula do partido, apesar das críticas ao MST, não pretende tomar nenhuma medida. Quando um juiz determina a prisão de alguém que invadiu terras, que foi avisado e evidentemente quis continuar invadindo, toda a direção do PT vai visitar essa pessoa. E dizendo que ela fez muito bem ao descumprir a lei, porque fez isso contra nossos adversários, não contra nós. Esse juiz é ainda altamente criticado porque fez cumprir a lei. É o próprio partido que desmoraliza o Poder Judiciário.
O que o ministro Maurício Corrêa afirmou na revista "Veja" é uma realidade: ele se disse absolutamente convencido de que estamos a caminho de um partido único. Se analisarmos o PRI mexicano e a partilha de cargos entre todas as legendas, vamos verificar que estamos a caminho de um partido único. E aqueles que detêm o poder dentro do Estado e do partido não pretendem que haja redução no tamanho do Estado. Até porque todo o partido sempre trabalhou à luz dos servidores públicos.
O que quero mostrar é que estou convencido de que estamos razoavelmente iludidos ao pensar que as coisas vão bem economicamente porque temos gente competente, e que os outros ministérios são de menor importância na medida em que não podem atuar diretamente na área econômica. Porque eles têm um projeto não para quatro ou oito anos, mas de permanência no poder. Para as próximas eleições têm recursos como nenhum outro partido, e nunca se gastou tanto em publicidade. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o ex-prefeito Celso Pitta era uma carmelita descalça em matéria de publicidade. Ele gastou apenas um terço da verba, e mesmo assim sofreu ações por improbidade. O que a prefeita atual, Marta Suplicy, tem em disponibilidade para a eleição é monumental.
A própria imprensa me preocupa, porque hoje está em uma situação muito difícil. Aliás, todo o sistema de comunicação no Brasil está em dificuldades financeiras. É evidente que vamos ter a possibilidade de ajuda do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), mas não sei até que ponto não correremos riscos no futuro.
ISAAC JARDANOVSKI – Já está estruturado um Proer para a imprensa, o que significa que o governo vai ter um maior controle sobre os meios de comunicação.
IVES – Como a mídia está fragilizada economicamente, se receber ajuda oficial haverá uma contraprestação de serviços cuja extensão desconhecemos, apesar da qualidade dos dirigentes de nossos jornais.
Então me parece que o governo evidentemente não deve partir para a redução do tamanho do Estado, do número de ministérios, não deve fazer uma reforma administrativa nem política. Mesmo na reforma do Judiciário que eles pretendem, o grande complicador é o próprio Executivo, nos três níveis, pois responde por 65% de todos os recursos que chegam ao STF e ao STJ. Como o governo não quer pagar, recorre até as últimas instâncias. Atulham o Judiciário com processos e depois o atacam pela lentidão.
Como se poderia pensar numa redução do Estado? Em primeiro lugar, creio que se houvesse vontade política e pressão teríamos condição de reduzir um número considerável de ministérios. Há pastas que foram criadas por razões de concessão política. Se o governo resolvesse efetivamente enxugar a máquina, poderia administrar um número menor de ministérios, evidentemente com cargos menos políticos e mais técnicos. Em segundo lugar, precisaríamos criar uma burocracia profissionalizada, que não existe no país. Nos governos parlamentaristas, quando há uma queda do gabinete, o que os sustenta é a burocracia. Cai o primeiro-ministro, mas o chefe de seção, o diretor-geral, aquele que chegou ao ponto máximo, continua administrando. No Brasil, o cidadão pode morrer como chefe de seção. É o seu máximo. Todos os cargos mais elevados são de confiança e distribuídos de acordo com a linha política daquele que governa. Na burocracia realmente profissionalizada, os cargos de confiança são para aqueles que estão na carreira e se afinam mais com o governante. Lembro-me de que, quando Yoshiaki Nakano era secretário da Fazenda, em São Paulo, quis fazer uma reforma administrativa e chegou à conclusão de que poderia realizar a fiscalização com apenas 10% do efetivo. Bastaria informatizar inteiramente o sistema.
Mas é difícil mudar certas estruturas de raciocínio. Como acontece mesmo no Poder Judiciário: ao se chegar ao hall de entrada do STF vemos ainda os processos todos costurados com linha, apesar da informatização existente, pois a qualquer momento posso obter as informações sobre as decisões do dia anterior. Um controle de fiscalização informatizado poderia reduzir o efetivo de fiscais. Em reunião que fizemos aqui na Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Conselho de Estudos Jurídicos, o ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Américo Lacombe, contou que só conseguiu informatizar o tribunal por um erro. Diz que foi durante o governo Itamar Franco, que em seu primeiro ano não tinha orçamento por causa do impeachment de Fernando Collor. O contador do tribunal errou as contas em três zeros e, graças a isso, houve uma verba extra, com a qual se informatizou a Justiça Federal em São Paulo.
Falemos do excesso de documentação. O cidadão, para provar que existe e para poder trabalhar, quantos documentos é obrigado a ter? E a dificuldade para obter tais documentos? Existe uma multiplicação documental e de procedimentos que encarece profundamente a administração direta.
Outro aspecto preocupante são as agências. Temos somente duas com poder regulatório, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), pois a própria Constituição lhes deu esse poder. Mas as agências de execução, que têm mais agilidade, não vão fazer leis. Poderíamos simplificar, como foi feito no modelo norte-americano. Aqui criamos uma agência e uma autarquia ao lado. Na verdade, a agência virou autarquia com outro nome. Lembrem-se da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel): chegamos até à necessidade de o presidente Fernando Henrique montar um ministério para tirar sua competência.
Se adotássemos a terceirização, poderíamos ter um modelo mais adequado. O Estado ficaria com a Justiça, a segurança pública, os militares, agentes fiscais, e poderíamos terceirizar o que não é fundamentalmente uma carreira de Estado. Poderíamos ter um Estado que exigiria menos da sociedade e que seria mais eficiente. Não estamos vendo projetos nessa linha. O governo Lula pretende tirar força das agências. Em vez de melhorar seu perfil, quer eliminá-las. Não planeja modificar o nível de carreiras de Estado, mas, ao contrário, ampliar o número de pessoas em cargos de confiança. Mais do que isso, quase mais nada se faz no governo por licitação. É tudo por urgência, mesmo as coisas que não são urgentes. Para fugir do processo de licitação, terminam escolhendo, ou por convite ou por regime de urgência, empresas que, segundo a imprensa noticia, são vinculadas a simpatias anteriores, etc. É evidente que assim o Estado não vai diminuir.
Só vejo a possibilidade de partirmos para uma desburocratização se o governo tomar consciência de que é a sociedade que pode levar o país para a frente, e não a administração pública. Se ele não atrapalhar, já vai fazer muita coisa. É evidente que tem seu papel corretivo para evitar abusos do poder econômico, dar agilidade às agências, mas deveria manter bem remuneradas as carreiras de Estado e adotar ao máximo a terceirização, além de estabelecer critérios modernos e utilizar burocracia profissionalizada.
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