Postado em 09/03/2004
Foto: Henrique Pita
Dicionário de temas culturais preenche lacuna editorial
CECÍLIA PRADA
Na complexidade pós-moderna em que vivemos neste início de século, o termo "cultura" inclui-se sob mil sentidos e implícita ou explicitamente em qualquer atividade de nosso cotidiano, pontuando conversas, acalorando debates, reforçando técnicas de publicidade e marketing, esboroando-se na demagogia dos comícios ou enchendo a boca em sisudas teses universitárias. Por acaso não nascemos e vivemos dentro, de e com uma determinada "cultura"? Não é ela, em qualquer lugar e plano, o caldo essencial, obrigatório de uma civilização – e no qual flutuam, consciente ou inconscientemente, todos os seres humanos?
O Dicionário Sesc – A Linguagem da Cultura, de autoria de Newton Cunha, lançado pelo Sesc São Paulo no final de 2003 em publicação da Editora Perspectiva, é uma alentada e singular obra referencial de 780 páginas e 2,5 mil verbetes que responde a essas e inúmeras outras perguntas e consiste em uma importante contribuição para a formação de todos os que de uma forma ou outra se ocupam dos vários aspectos, disciplinas, expressões e eventos de caráter cultural. Segundo Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo, esse trabalho representa a busca de uma teorização que esclarecesse melhor e complementasse uma práxis de mais de 50 anos: "Nesta instituição que trabalha essencialmente com os conceitos do mundo do não-trabalho, definindo campos, procurando aprofundar doutrinas do lazer, da sociologia do trabalho, surgem a cada dia questões culturais da esfera específica das várias artes, das várias disciplinas envolvidas. Nossos técnicos, muitos dos quais são mestres e doutores em suas especialidades, sentem necessidade de um embasamento maior para sua prática. É isso o que oferecemos agora, com muito orgulho, neste Dicionário, uma original obra de referência – não existe outra igual, no Brasil. Ela antes de mais nada reflete o trabalho que sempre fizemos, trocando a massificação infantilizada da cultura pela popularização humanista do saber e das experiências estéticas. O trabalho de Newton Cunha afinou-se extraordinariamente com um sonho que mantínhamos há muito. Nós nos sentimos orgulhosos de poder estimular sua pesquisa e lançar agora essa obra".
Ousadia e dedicação
Formado em jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes (ECA), com pós-graduação em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e em sociologia do lazer pela Sorbonne, Newton Cunha, de 54 anos, conta 32 anos de carreira como agente cultural do Sesc e já publicou A Felicidade Imaginada: Relações entre o Trabalho e o Lazer. Desenvolveu seu projeto de um dicionário da cultura em 1965 e trabalhou nele sozinho durante sete anos – coisa inédita no gênero, pois dicionários e enciclopédias são sempre realizados em equipe. Conseguiu a aprovação e o encorajamento de Danilo Santos de Miranda, que o afastou de suas funções habituais para permitir que se ocupasse de sua obra em regime de dedicação plena. No ano 2000 o Sesc tornou também possível ao pesquisador passar três meses na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, para complementação de seu trabalho. Diz Newton: "Apesar da amplitude do mercado editorial brasileiro, do grande número de títulos lançados mensalmente, ressentimos ainda a falta de publicações atualizadas, essenciais para pesquisas como essa que empreendi. Em Portugal há uma quantidade muito maior de traduções, em todos os campos. Por exemplo, há uma grande enciclopédia inglesa em 17 volumes que encontrei traduzida para o português, e que no Brasil ainda não é conhecida. O acervo da Fundação Gulbenkian é de 140 mil obras".
Por sugestão do diretor do Sesc São Paulo foi ainda acrescentada ao projeto original uma parte histórica relativa às várias manifestações artísticas brasileiras nos últimos 30 anos, realizada por profissionais de cada área: Cássia Navas (dança); Dilmar Miranda (música); Ismail Xavier e Leandro Saraiva (cinema); Katia Canton (artes plásticas); Maria Isabel Villac (arquitetura); Nelly Novaes Coelho (literatura); Silvana Garcia e Fátima Saadi (teatro). Contribuíram também, com uma leitura crítica do Dicionário, os professores e ensaístas Roberto Romano, Jacó Guinsburg e Arthur Nestrovski.
Diz Newton Cunha: "Para traçar um panorama atual das artes temos de adotar novos critérios, pois no final dos anos 60 e durante a década de 70 assistimos ao desaparecimento de escolas e movimentos artísticos, em plano mundial. Já não surgem mais grupos de pessoas que defendam princípios formais e estéticos. Ou, antes, surgem de maneira esporádica, apenas, como o grupo dinamarquês Dogma 95, no cinema. É muito mais complexo e difícil, portanto, lidar com as várias manifestações artísticas. Pude ver isso no meu trabalho, pude sentir a perplexidade do agente cultural diante das decisões, as dúvidas do tipo isso é arte?, isso merece ser exposto e divulgado?, isso pode ser considerado um fato cultural ou representa apenas um modismo? A necessidade de buscar parâmetros, de estudar a conceituação dos fenômenos artísticos, me levou a aprofundar a minha pesquisa, e a parte relativa à história da arte brasileira complementa-a, ajudando a situar o leitor diante do que está lendo, vendo, ouvindo".
Método
Sobre dois termos fundamentais de seu projeto, as matrizes cultura e arte, Newton Cunha estabeleceu duas linhas mestras e complementares: o tratamento de 54 termos genéricos, como "literatura", ou expressões historicamente delimitadas, como "civilização clássica", englobados, em linguagem emprestada a Dilthey, como "termos compreensivos", merecedores de análise mais aprofundada e de espaço maior (mais exemplos: "Bauhaus", "futurismo", "lazer", "Renascimento", "retórica", "teatro", etc.); e o tratamento de cerca de 2,5 mil vocábulos ligados a esses temas maiores e deles decorrentes, classificados como "termos explicativos", e que englobam termos técnicos ou expressões correntes nos campos das artes e da ação cultural – tais como "acorde", "bambolina", "inspiração", "nibelungos", "sinfonia", "tauxia", "workshop", etc.
Da verdadeira interação dialética que assim se estabelece, como se fosse uma teia cultural, entre maiúsculas e minúsculas (ou entre idéias e fatos), resulta uma obra sui generis mas que, para seu autor, é "apenas um ponto de partida para outras pesquisas mais alentadas e rigorosas, uma pequena viagem introdutória aos conceitos dos quais a arte se utiliza". Outras metáforas de que se serve para explicar como se processou seu trabalho são a de "árvore" e a de "labirinto".
A metodologia da árvore, bastante conhecida, transparece assim: "A partir desses dois troncos principais (cultura e arte) foram surgindo os galhos, que por sua vez davam origem a outros". Corredores interligados, labirinto, links – esse é o mundo da cultura, a biblioteca infinita sonhada por Borges. O leitor, fascinado, pode passar horas brincando nela, em uma técnica que, se sempre foi instrumento privilegiado de dicionaristas, com o lúdico pleno da Internet floresce hoje mais do que nunca. Diz o autor: "Se partirmos de um termo qualquer, como ‘literatura’, automaticamente ele nos leva a outros, como ‘história da literatura’, ‘gêneros literários’, etc. O livro é assim, realmente, uma espécie de labirinto, ou seja, você entra por um corredor, sai em outro e assim vai".
Abrangência
O Dicionário Sesc – A Linguagem da Cultura transcende as várias obras referenciais especializadas nos campos da arte e do conhecimento – não concorre com elas, é diferente, complementa-as. E não apresenta também verbetes biográficos. O interessado pode consultá-lo no início da pesquisa sobre dado tema, ou após ter colhido informações sobre assuntos específicos. Lidando com conceitos, não tem pretensões acadêmicas, não pretende esgotar os temas de que trata, mas apenas funcionar como "um fio da meada", de muita serventia principalmente para estudantes ou autodidatas que queiram se situar dentro do panorama geral das artes, ou aprofundar o conhecimento de discussões estéticas. O seu autor diz que poderia ter dedicado muito mais tempo a esse trabalho, pois "os vínculos que se vão estabelecendo entre os vários conceitos ou idéias conduzem ao infinito, o que, de maneira prática, significa a lugar nenhum – donde a necessidade que se tem, a um dado momento, de colocar um ponto final". De modo algum decisivo, porém, porque "o realizado pode, quem sabe, sustentar novas adições e bem-vindas reformulações em tempos futuros".
Uma consulta rápida à obra basta para nos dar a idéia da seriedade de seus propósitos. O termo "arte", por exemplo, é definido em uma árvore que se estende por 40 substanciais páginas, abrangendo da expressão latina "ars gratia artis" ao movimento artístico e social inglês "Arts and Crafts", do século 19, levando no seu arrastão 65 verbetes – entre termos principais e intertítulos –, da etimologia da palavra "arte" e de suas primeiras conceituações no pensamento greco-latino aos grandes debates históricos e diversos conceitos emitidos através dos tempos, em âmbito mundial (Kant, Nietzsche, Heidegger, Boécio, Hegel, Schiller, Cassirer, Barthes, Umberto Eco, Kandinsky, Klee, etc.). E abrangendo manifestações de todo tipo (da arte pré-histórica ao pós-modernismo), nas mais diversas regiões do planeta. Com a vantagem de incluir, como já dissemos, a história da arte e dos debates conceituais acontecidos no Brasil. E remetendo, é claro, para links especiais, distribuídos pela obra toda.
Política e prática
Marcando presença na vida cotidiana e no mundo cultural brasileiro há quase seis décadas, o Sesc é sempre facilmente associado com atividades voltadas para o lazer, a cultura, o esporte e a recreação, atendendo não somente aos comerciários como a outros segmentos populacionais – desde 1963, por exemplo, tornou-se pioneiro no trabalho realizado com idosos.
Poderia, portanto, à primeira vista, parecer diferente, ou uma alteração de patamar, o lançamento pela instituição de uma obra como o Dicionário – que representa uma teorização e se situa entre as mais sofisticadas no campo da alta cultura.
Seria mais natural que houvesse saído do âmbito acadêmico. Mas, para o diretor Danilo Santos de Miranda, não há o que estranhar, pois na realidade há vários Sescs: "A instituição foi sempre vista através dos seus acontecimentos, uma vez que a maior parte das pessoas freqüenta nossas unidades para utilizar seus serviços e não para procurar modelo de ações voltadas para a reflexão, para uma visão do mundo. Mas é preciso não esquecer que o propósito educativo esteve sempre presente em todas as nossas propostas. Procuramos provocar de uma forma sutil, inteligente, o usuário a pensar na sua vida, nas suas possibilidades, a assumir plenamente sua responsabilidade social, sua potencialidade de ação na vida pública".
Donde a diversidade das várias manifestações e promoções culturais da instituição, em diferentes níveis, do mais popular ao mais elevado. Para se tomar apenas um exemplo, a exposição Uma Viagem de 450 Anos (Sesc Pompéia), utilizando um mesmo suporte, malas de madeira do tipo usado pelos imigrantes, reuniu artistas afamados, como José Roberto Aguilar, Antonio Peticov e Maria Bonomi, a outros desconhecidos, que até expunham pela primeira vez.
"O encontro do diverso é uma provocação constante", diz Danilo Santos de Miranda, "e na variedade dos eventos que criamos há uma continuidade de educação informal e permanente, que agora atinge um ponto alto com a publicação desse trabalho de infra-estrutura intelectual que é o nosso Dicionário." As obras de referência formam um jeito próprio de refletir sobre a realidade do país, e uma das preocupações do Sesc tem sido sempre a nacionalização do debate cultural. Diz também Danilo: "Não produzimos no Brasil muito pensamento autóctone. Estamos ainda subordinados demais ao que nos vem do exterior. Há excesso de influência estrangeira até no nosso cotidiano. Por exemplo no campo da Internet simplesmente incorporamos as palavras do inglês, como site, enquanto em toda a América Latina e em Portugal se usa sítio..."
Nesse sentido o Sesc, voltando-se agora para a publicação de obras fundamentais como o Dicionário, está apenas explicitando o que sempre foi implícito, subjacente a todas as suas atividades – o propósito de incrementar uma cultura nacional. Estão em andamento outras publicações do gênero. Além disso, nos simpósios que realiza, continua a instituição a incentivar os mais sofisticados debates intelectuais. Como exemplos: sobre sociedade e cidadania, o Colóquio São Paulo 450-Paris, que reuniu no Sesc Vila Mariana de 26 a 28 de janeiro intelectuais, arquitetos e artistas brasileiros e franceses, para debaterem o futuro das metrópoles. E, no campo das ciências sociais, os seminários Ética e Cultura, realizado em 2001, e Educação e Cultura, em 2002, além do encontro Sociedade e Valores Humanos, que acontecerá nos dias 30 e 31 de março e 1º e 2 de abril em Bauru (SP), em parceria com a Universidade Estadual Paulista (Unesp).
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