Postado em 09/03/2004
Jean Ramos no Areal do Costa Leite /
Foto: Cristiano Sant'Anna / Índice
Solo do sudoeste gaúcho sofre processo de arenização
DANIEL CASSOL
Jean Ramos, de 27 anos, nasceu e foi criado no pampa. Da figura do gaúcho imponente, porém, pouco lhe sobra. Veste uma bombacha surrada, tênis, camiseta e boné. Seu cavalo, emprestou ao irmão, que está participando de um rodeio. Auxiliar de serviços gerais da Escola Costa Leite, Jean é um homem simples como todos os moradores da localidade de Jacaquá, única região do interior do município de Alegrete formada por pequenas propriedades rurais. De pé sobre uma pedra, Jean vê se estender a seus pés uma paisagem insólita: em vez dos infindáveis campos e lavouras característicos do lugar, uma mancha de areia de 83 hectares, equivalente a cerca de 111 campos de futebol, que avança sobre os quintais das casas.
"O finado meu avô dizia que o Areal do Costa Leite começou por causa de uma briga de touros", conta Jean. Folclore à parte, a verdade é que há 50 anos a mancha de areia não passava de 100 metros quadrados e hoje, além de colocar em risco o que ainda resta das propriedades das redondezas, ameaça inclusive o pequeno cemitério que fica no alto da coxilha.
Semelhantes a essa, outras manchas de areia brotam nos campos de dez municípios do Rio Grande do Sul próximos da Argentina e do Uruguai (Alegrete, Cacequi, Itaqui, Maçambara, Manoel Viana, Quaraí, Rosário do Sul, São Borja, São Francisco de Assis e Unistalda). Em 1992, o Ministério do Meio Ambiente considerou a região uma área de atenção especial. Dados do Atlas da Arenização produzido por uma equipe do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1999 mostram que a degradação atinge 3.670 hectares (36,7 quilômetros quadrados), aos quais se somam mais 1,6 mil hectares em que são encontrados focos de arenização. No total, isso representa 0,26% da região sudoeste do estado. O que numericamente diz pouco na prática se traduz em um grave problema ambiental, que se reflete na destruição dos campos e no assoreamento dos rios, com efeitos na capacidade produtiva da região. "Existem areais em expansão, mas, por incrível que pareça, verificamos locais em que houve retrocesso", explica a professora Dirce Suertegaray, uma das organizadoras do Atlas.
O fenômeno não pode ser chamado de desertificação, porque um deserto é caracterizado pela escassez de chuvas, enquanto a região de Alegrete tem média pluviométrica anual de cerca de 1,5 mil milímetros. Alia-se a isso um solo extremamente arenoso assentado sobre um arenito conhecido como formação Botucatu. As chuvas torrenciais acabam criando sulcos na terra frágil, que resultam em fendas – as ravinas. Ao longo do tempo, essas ravinas vão se expandindo pela ação das enxurradas e formam as voçorocas, grandes crateras no campo que dão origem aos areais a partir da ação de fatores como o vento, que espalha a areia sobre os campos. "Os areais podem surgir independentemente do uso do solo, mas não se pode negar que a pecuária e principalmente a agricultura intensificam o processo de arenização", afirma Dirce. Para o professor da UFRGS Roberto Verdum, que também participou da organização do Atlas e desenvolve pesquisas na região, esse é um debate que vai definir a atitude perante os projetos de recuperação das áreas. "Não é uma questão meramente conceitual. É preciso compreender o fenômeno na sua origem e não fazer confusão", diz.
Herói e vilão
Confusões e polêmicas marcam a trajetória da discussão sobre a arenização no sudoeste gaúcho. Muito disso por conta dos diversos mitos criados ao longo do tempo, mas também porque os areais ocorrem numa região peculiar, que reúne os maiores municípios em extensão e a maior concentração de terras, enquanto apresenta o menor PIB e a menor densidade demográfica do estado. A economia, baseada na pecuária extensiva praticada em grandes latifúndios, viveu nas décadas de 1960 e 1970 o boom da lavoura de soja e de outras culturas como trigo e sorgo. Impulsionados por incentivos governamentais, agricultores da região norte do Rio Grande do Sul resolveram ampliar a lavoura para o pampa, que oferecia terras baratas.
A nova dinâmica provocou uma intensificação no processo da arenização. E o alarme soou na imprensa: um deserto ameaçava o pampa. Pecuaristas culpavam a exploração indiscriminada do solo e o uso de máquinas pesadas pelo problema, enquanto os agricultores acusavam o excessivo pisoteio do gado sobre um solo malcuidado. O pivô da polêmica era o Deserto de São João, uma área de mais de 200 hectares de pura areia em plena expansão localizada no município de Alegrete.
É nesse momento que entra em cena um personagem à parte nessa história. Ao mesmo tempo vilão e herói, o eucalipto é lembrado recorrentemente como saída para conter o avanço dos areais, por ser uma espécie de crescimento rápido que barra a ação dos ventos e pode ser aproveitada economicamente. Especialistas apontam, porém, uma série de contra-indicações: o plantio de florestas numa área originalmente de campo não ataca a origem do problema – a erosão do solo pela chuva –, e tem agravantes como atração de formigas, retenção excessiva de líquido e empobrecimento do solo.
Em 1976, a Secretaria Estadual da Agricultura iniciou um projeto de recuperação das áreas degradadas através do florestamento por eucaliptos, mas os resultados não foram satisfatórios. A árvore voltou a ser apontada como solução em 1989, na gestão do secretário Marcos Palombini, que solicitou à empresa Riocell (atual Aracruz Celulose) um projeto para a área do Deserto de São João.
Em um primeiro momento, as árvores foram plantadas numa faixa de 50 metros de largura de solo fértil ao redor do areal. À medida que o solo se estabilizava, mais árvores eram dispostas no interior daquele cinturão de eucaliptos. "Hoje não existe o Deserto de São João", orgulha-se Palombini.
A questão é que a maior parte dos eucaliptos foi plantada em locais originalmente não atingidos pelo areal, o que na época levantou especulações sobre interesses da empresa em transformar a região em um pólo de abastecimento. "A quem interessa incorporar essas áreas ao processo produtivo?", indagava a professora Dirce em seu livro Deserto Grande do Sul – Controvérsia, questão ainda hoje debatida, embora a empresa, localizada na região metropolitana de Porto Alegre, negue os rumores. "Para sermos competitivos, precisamos de florestas mais próximas da fábrica", afirma Renato Rostirola, gerente da área florestal da Aracruz. Informação não confirmada em matéria divulgada pelo jornal "Zero Hora" no dia 14 de janeiro: na apresentação dos resultados de 2003, o diretor presidente Carlos Aguiar comunicou que a empresa fará parcerias com o governo e com prefeituras dos municípios da metade sul do estado para garantir que o suprimento de madeira atenda a expectativa de aumento em 50 mil toneladas na produção de celulose da unidade gaúcha da Aracruz em 2004. "O governo gaúcho tem interesse em reflorestar a metade sul, mas não tem um modelo para fazer isso. Estamos oferecendo o nosso", disse Aguiar. Fato é que a própria empresa não considera o plantio de eucaliptos uma técnica de recuperação dos solos, mas de "incorporação das áreas ao processo produtivo". Para a professora da UFRGS, é preocupante o impacto socioambiental do florestamento por eucaliptos, uma espécie exótica no pampa: "É uma monocultura como a da soja, e como tal deve ser combatida".
O panorama atual é perigosamente semelhante ao vivido há três décadas, quando começou o avanço da soja. Pesquisa divulgada pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) em novembro do ano passado mostra que as áreas ocupadas pela lavoura desse grão aumentaram em 36% nas regiões da campanha e da fronteira oeste. Só em Alegrete o crescimento foi de 65%.
Questão histórica
Ex-tratorista, José Pedro Libardi viveu dez anos no Mato Grosso e voltou de lá em 1996. Hoje dirige uma possante caminhonete pela estrada que corta sua lavoura de soja em terras que alugou no município de São Francisco de Assis. Está acompanhado do vice-prefeito da cidade, o geólogo Cláudio Medeiros, que se entusiasma: "Pode colocar aí na reportagem: este é o homem que transforma areia em soja".
Medeiros tem razão: parte da lavoura de Libardi está plantada literalmente em cima da areia – resultado de um manejo da terra pouco comum por aquelas bandas. O uso de plantio direto – sem o emprego de arado – e de curvas de nível a fim de reter matéria orgânica garante a produtividade bem acima da média local e traz menos prejuízos ao solo. "Esse cuidado muito pouca gente tem aqui", afirma Libardi. Se por um lado a técnica ameniza a degradação do solo, a excessiva utilização de dissecantes põe em risco os recursos hídricos e pode, inclusive, contaminar o Aqüífero Guarani, maior reservatório subterrâneo de água doce do mundo, sobre o qual a região está localizada. O plantio direto vem ganhando adeptos, porém ainda não é uma prática totalmente difundida na área.
Uma das raízes históricas da arenização no sudoeste gaúcho diz respeito à estrutura fundiária. "Numa grande propriedade, uma mancha de areia é insignificante. Um produtor que tem 5% de sua fazenda atingida por processos erosivos muitas vezes não acha interessante investir na manutenção da área", explica o professor Roberto Verdum.
Libardi conta que tem travado uma verdadeira batalha com o proprietário das terras que arrenda. Pede auxílio na recuperação do solo ou isenção do aluguel caso tenha sucesso, mas inutilmente. Seu interesse é tornar as terras degradadas agricultáveis novamente o mais rápido possível. Essa tarefa demanda altos gastos, o que, segundo ele, torna a região pouco propícia para pequenas propriedades.
No entanto, nessa mesma área o professor Roberto Verdum está trabalhando em um projeto simples e barato. Desde 1999 ele vem estudando a dinâmica da formação das ravinas e voçorocas e da ação das chuvas. A técnica consiste em colocar barreiras – galhos, pedras e telas – nos sulcos para que a terra não seja arrastada pela chuva, permitindo a recomposição da vegetação original. Hoje, a área estudada está totalmente recuperada. "Podemos fazer o controle para o uso da pecuária ou regular o solo para plantio", explica Verdum. A idéia do professor é estender o experimento. Para isso, encaminhou um projeto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que teve parecer favorável, embora ainda não disponha de recursos.
Projetos como o de Verdum, que demandam o isolamento de uma área durante um grande período de tempo, encontram dificuldades para ser aceitos na região. "Do ponto de vista produtivo, é um processo muito lento. Mas, nos locais extremamente degradados em que não haja capacidade de investimento, isso é interessante", diz. Acostumados com uma renda anual, os lavradores querem resultados rápidos. Os criadores, por sua vez, utilizam as áreas atingidas pelos areais para colocar o gado. Assim, a recuperação ambiental fica em segundo plano.
Para o engenheiro agrônomo Ivo Mello, presidente da Fundação Maronna, uma ONG que trabalha com desenvolvimento rural em Alegrete, é fundamental que se isolem os areais do gado. Foi o que ele fez na propriedade de seu sogro, na localidade de Cerro do Tigre. Nunca mais precisou mandar tirar areia para desentupir os bueiros localizados próximo aos trilhos de trem que cortam a fazenda.
"Ninguém planta soja em áreas degradadas, essas ficam para o gado. É o grande erro das pessoas", lamenta. No entanto, Mello reclama que o índice de lotação de pecuária estabelecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não considera a existência dos areais, indicando uma capacidade irreal da região. Mesmo que o proprietário isole os areais do gado, ele tem de provar a produtividade de sua terra. "É preciso um projeto que apresente viabilidade econômica e seja ecologicamente sustentável", recomenda. Por isso, ele acredita que o plantio de eucaliptos pode ser uma alternativa, porque se trata, em última análise, de uma lavoura.
Aliar recuperação ambiental e econômica é a aposta da Embrapa Clima Temperado de Pelotas (RS), que há três anos trabalha com revegetação de áreas atingidas pela arenização e introdução de espécies comerciais. "As duas coisas podem ser feitas juntas", defende Rogério Coelho, coordenador do Projeto Fronteira Oeste, executado em parceria com a Universidade Federal de Santa Maria, a Fundação Maronna e outras unidades da Embrapa. O órgão vem estudando a composição da flora dos campos da região e fazendo um levantamento dos solos com o objetivo de desenvolver tecnologias de regeneração de locais degradados e também inseri-los na cadeia produtiva.
A Secretaria da Agricultura esboçou, no ano passado, uma tentativa de sanar um dos principais problemas dos projetos de recuperação: o isolamento entre eles. Atual coordenador do Programa Pólos de Produção da secretaria da qual já foi o titular, Marcos Palombini reuniu um grupo de trabalho em Alegrete mas não obteve o resultado esperado. "Aparecem muitas propostas, mas os efeitos demoram a surgir", conta. O estudo que está em curso é um tanto inusitado para a região, acostumada aos grandes rebanhos: introduzir plantações de bambu e da chamada uva-japonesa.
Caminhos possíveis
Além de esparsos, os projetos de recuperação carecem de continuidade. A solução viria a partir da estruturação de uma política pública de combate à arenização, tarefa que vem sendo assumida pela Secretaria do Meio Ambiente de Alegrete, que há um ano e meio elegeu o Areal do Costa Leite para desenvolver uma série de experimentos. Desde então, técnicos do órgão têm plantado eucaliptos, capim-elefante e outras gramíneas, distribuindo mudas aos moradores, extremamente interessados em salvar o que resta de suas terras. O empenho da comunidade é tanto que um projeto de educação ambiental foi implantado na escola local, congregando pais e alunos em visitas ao areal.
O sucesso da iniciativa levou ao desenvolvimento do Plano de Gerenciamento da Arenização do Sudoeste Gaúcho, que conta com a participação de secretarias de outros seis municípios da região, embora seja considerado, por muitos produtores, "coisa de ambientalista". O projeto já conseguiu a liberação de R$ 200 mil do Conselho Regional de Desenvolvimento (Coredes) para a criação de uma política pública estadual para prevenção, controle e recuperação das áreas degradadas.
Todos os projetos, porém, esbarram na falta de recursos e apoio governamental, no desinteresse de alguns proprietários e até mesmo na necessidade legítima dos agricultores e pecuaristas que querem produzir. Se já é difícil romper velhos dogmas para criar alternativas de produção e uma mudança de postura em relação à terra, muito mais distantes ficam idéias como a de criar assentamentos e áreas de preservação ambiental. A tradição econômica, cultural e política da região, ao contrário dos solos, é extremamente sólida.
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