Postado em 06/05/2004
CECÍLIA PRADA
Uma das metas prioritárias de nossa política exterior é a reaproximação com os países africanos e o pleno intercâmbio cultural, diplomático e comercial dela decorrente. Nada mais necessário, portanto, do que uma reavaliação profunda dos laços que uniram historicamente Brasil e África para termos uma visão do seu inter-relacionamento e nos livrarmos de preconceitos e clichês que viemos assimilando desde os bancos escolares.
Quem vem realizando brilhantemente essa tarefa, há mais de 40 anos, é o diplomata, historiador e poeta Alberto da Costa e Silva, por muitos reconhecido como "o maior africanólogo brasileiro". Suas alentadas obras sobre esses temas, A Enxada e a Lança e A Manilha e o Libambo, são clássicos de leitura obrigatória e receberam prêmios importantes.
Em seu livro Um Rio Chamado Atlântico (Editora Nova Fronteira, 288 páginas), o autor reúne 16 textos publicados em jornais, revistas ou lidos em seminários sobre a história da África, desde 1961. Seu ponto de vista primordial é a necessidade de corrigir um "defeito de perspectiva que marca a rica bibliografia brasileira sobre a escravidão", ou seja, o estudo simplista que sempre se fez dela, como um fenômeno desligado da história da África. Muito ainda resta a ser estudado sobre o tráfico de escravos para o Brasil, sobre a diferenciação física, cultural e religiosa das várias levas de negros e as complexas circunstâncias políticas e interesses comerciais das nações européias na África, sobre as influências recíprocas do Brasil e de vários países daquele continente, presentes ainda hoje e que permitem ver as civilizações de ambos os lados do Atlântico sul como se fossem apenas ribeirinhas e espelhadas.
A África é assim a fronteira leste do Brasil, de onde proveio quase metade de nossos antepassados. Como diz Costa e Silva, "a escravidão foi o processo mais importante de nossa história", e "o escravo ficou dentro de todos nós, qualquer que seja nossa origem". Mas é impossível avaliar a imensa contribuição cultural do africano sem confrontar "o que tínhamos por herança da África com a África que ficara no outro lado do oceano, tão diversificada na geografia e no tempo".
A prática diplomática, os numerosos anos que passou no continente africano vivenciando sua realidade cotidiana e complementando-a com viagens, deram a Costa e Silva uma agudeza de visão rara – enriquecida com a seriedade de sua erudição. O que permitiu o levantamento de um leque de opções oferecido à curiosidade de pesquisadores. Alguns exemplos: o que teria acontecido se dom Pedro I houvesse acolhido as propostas de anexação de Angola e de criação de um protetorado brasileiro no Daomé, aventadas logo após nossa independência? Quais as funções desempenhadas pelos navios ditos "negreiros" nas relações comerciais e diplomáticas entre os dois continentes? Como se processavam realmente a compra e a caça de escravos? – estes não podem ser tomados como lotes uniformes, pois havia entre eles inclusive pessoas muito instruídas, banidos políticos, líderes religiosos. São exemplos os reis e grandes chefes que viveram secretamente como escravos (não seriam por acaso verdadeiros os "reis" dos reisados e dos maracatus?), ou os muçulmanos implicados na "revolta dos malês" da Bahia, em 1835, que poderia bem ser definida como um verdadeiro jihad.
Às especulações do historiador soma-se a prática da pesquisa detalhada in loco, ilustrada por desenhos próprios e fotos, sobre os vários aspectos do "espelhismo" de civilizações em ambas as margens desse "rio chamado Atlântico": sabemos como nosso caldo cultural foi enriquecido pela contribuição de elementos trazidos pelos escravos ao Brasil; bastante estudada foi sua influência na constituição da família brasileira, sua presença na formação de nossa nacionalidade. Mas pouco se conhece do mundo excitante que Costa e Silva vem descobrindo e divulgando há várias décadas, ou seja, a subsistência de núcleos populacionais de "brasileiros" – na maior parte descendentes de escravos retornados, como também de negros livres dedicados ao comércio com o Brasil Colônia (inclusive de escravos) – que criaram na Nigéria, em Benim, no Togo e em Gana uma cultura sui generis, com influências bem definidas do Brasil no seu modo de vida, na língua, na arquitetura, na comida, nas artes e até mesmo na política. E que de certo modo "abrasileiraram" cidades importantes – como Lagos, capital da Nigéria, que conserva até hoje um "Brazilian Quarter".
Muitos membros de tais comunidades – acrescidas com mulatos, cafuzos, caboclos e brancos que sempre "flutuaram" entre os dois continentes – exerceram papel relevante na vida política, cultural e artística e opuseram-se ao imperialismo europeu na África. Desses núcleos saíram, desde o início do século 20, poetas e intelectuais entrosados com negros de outras partes do mundo na criação de uma ideologia africana. E descendente de brasileiros, com sangue ameríndio, foi o primeiro presidente da República do Togo, Sylvanus Olympio.
Objeto de estudos avançados em meios intelectuais africanos, europeus e norte-americanos, a história da África ainda não recebeu no Brasil, segundo o autor, a devida atenção, apesar de trabalhos brilhantes desenvolvidos por personalidades como Pierre Verger e Luiz Felipe de Alencastro, entre outros. Alberto da Costa e Silva retoma essa temática e vai mais longe: "Não pode continuar o seu estudo afastado de nossos currículos, como se fosse matéria exótica", pois, afinal, "o obá do Benim (...) está mais próximo de nós do que os antigos reis da França".
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