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Tradições vivas

Postado em 06/05/2004

 


Festa do Divino em São Luís do Paraitinga / Foto: Rafaela Müller


Herança cultural caipira sobrevive à onda de modernidade

RAFAELA MÜLLER

"Amanheceu, peguei a viola, botei na sacola e fui viajar..." Como canta Renato Teixeira em uma de suas músicas sobre os costumes caipiras, a viagem pode ser longa e ter variados destinos.

Ela dura até meses, quando quem sai pela estrada é uma folia do Divino como a de São Luís do Paraitinga, no interior de São Paulo. Na cidade e na área rural cheia de pequenos sitiantes, o grupo percorre casas e mais casas entoando versos religiosos. À noite, uma delas serve de pouso, e a viola se une a outros instrumentos para fazer festa. Danças e músicas profanas – algumas herdadas de tempos remotos, outras do repertório sertanejo mais atual – adentram a madrugada. No final da viagem, acontece outra festa, bem maior – a Festa do Divino –, possível graças às doações de cada morador.

Outras vezes, é somente quando anoitece que a viola sai em viagem. Nas folias ou ternos-de-reis, que percorrem outras tantas casas pelo Brasil afora, entre o Natal e o Dia de Reis (6 de janeiro), a cantoria, formada às vezes por seis vozes em alturas diferentes, acorda moradores a altas horas. O grupo revive a viagem dos três Reis Magos da tradição cristã, que saíram em busca do menino Jesus, andando apenas à noite – para despistar o rei Herodes, que queria matar a criança.

Mas quando a viagem é de mudança, acontece de a viola ficar na sacola por mais tempo que o previsto, "pendurada na parede" da casa nova, como conta José Alves Rodrigues, o Capitão Reis, de 77 anos, mestre de folia-de-reis. "Quando vim do interior de Minas pra [cidade de] São Paulo, em 1962, larguei a viola pro lado e meti o peito no serviço, porque tinha que trabalhar para tratar dos filhos e da mulher." Depois de quatro ou cinco anos, no entanto, o instrumento "parou de juntar barata", diz o violeiro, rindo. "Como tinha uma porção de ‘mineirada’ por aqui, falamos: ‘Vamos cantar uma folia-de-reis?’ Começamos a ensaiar, a vizinhança escutou, gostou e aí foi..." Com algumas mudanças aqui e acolá em relação ao jeito de fazer a peregrinação – ou "giro" – no campo, a folia do Capitão Reis canta até hoje na capital paulista, em bairros próximos do Rio Pequeno, e em Osasco, e já tem um CD gravado.

Outros que levaram a viola para a cidade grande às vezes voltam a colocá-la na sacola e viajam para o interior na época de festas. Oliveira Alves Fontes, o seu Oliveira, de 58 anos, morador de Guarulhos, na Grande São Paulo, desde 1968, sempre vai para Santa Fé do Sul, no extremo noroeste do estado, onde viveu sua infância, para participar da festividade. "Só que hoje não tem mais roça lá, é só plantação de laranja. O dono da fazenda na maioria das vezes mora na cidade e fica só um caseiro tomando conta. Então muda um pouco, a gente faz o giro de carro, porque tem menos casa competente pra cantar", explica ele, testemunhando algumas das transformações por que passou boa parte do espaço rural brasileiro nas últimas décadas – entre elas a queda da produção de gêneros alimentícios para subsistência, o aumento das grandes lavouras e da pecuária em larga escala e o amplo uso de tecnologia nesses setores.

Jovem e ancestral

A viagem dessa cultura caipira prossegue também pelas gerações. Na "roça" e em cidades interioranas, a regra é a transmissão oral, por convivência e participação, desde criança, nesses costumes que integram um ciclo de festas. Mas, nas cidades maiores, alguns jovens se interessam em retomar a herança de seus pais ou avós, ou em compreender a sonoridade dessas tradições.

"Cresci ouvindo meu avô falar dessas coisas. Quis aprender, e ele me ensinou. Gosto muito dessa cultura. Acho que está no sangue", fala o jovem paulistano Lucas Tadeu Góis de Oliveira, de 17 anos. Além de participar da folia-de-reis, ele toca na dança de São Gonçalo, em que palmas e batidas de pé, acompanhadas de versos na viola, louvam o santo protetor dos violeiros e pagam promessas.

"O pessoal novo, que nasceu e mora na cidade, está se interessando", confirma Badia Medeiros, de 64 anos, morador de Formosa (GO), cidade de 84 mil habitantes, próxima do Distrito Federal. Nascido em uma fazenda no norte mineiro, ele é mestre de folia-de-reis e do Divino e dançador de catira e lundu – danças profanas em que a arte também está no bater dos pés. Hoje, ensina essas tradições na cidade.

Viagens e histórias não faltam, mostrando uma diversidade de tradições de origem interiorana que hoje se reinventa em um espaço rural em transformação e na área urbana, com mais ou menos dificuldade.

Misturas e lutas

Entre essas viagens, as mais longas foram as que trouxeram a viola de Portugal ao Brasil, no século 16, e aquelas que, posteriormente, espalharam a sonoridade do instrumento pelo país.

Música e dança foram muito utilizadas na conversão de índios ao catolicismo, num processo que misturou elementos culturais ibéricos – religiosos e profanos – aos dos povos nativos do Brasil. Na origem do catira estaria, segundo pesquisadores, uma dança indígena, o cateretê. Já no canto em desafio do cururu é possível reconhecer, entre outras heranças, a dos menestréis europeus (assim como no repente nordestino). Provavelmente usado pelos jesuítas para fixar temas sacros entre os índios, o cururu existe até hoje como dança religiosa em Mato Grosso e como canto em improviso, em geral sobre temas profanos, no interior de São Paulo.

Elementos negros também se mesclaram pouco a pouco, contribuindo em especial para a diversidade rítmica, perceptível no jongo, samba-lenço e batuque de umbigada. Danças dramáticas como congada, moçambique, catupé e marujada são outros exemplos. Elas se ligam à devoção por São Benedito e outros santos protetores dos negros – resultado da conversão dos escravos ao catolicismo. Alguns grupos ainda fazem a "embaixada", dramatizando lutas entre mouros e cristãos ou entre povos africanos. Mas, em geral, dança-se hoje apenas em um cortejo, no qual os instrumentos de percussão são presenças marcantes.

Esses cruzamentos interculturais fazem agora parte da tradição e são vistos de forma positiva, por enriquecê-la. Isso não significa, no entanto, que tenham sido pacíficos. "Ocorreram confrontos entre os dominadores, portugueses e seus descendentes, e os nativos e negros escravizados, resultando em processos de resistências e preservações de traços culturais", escreve o etnomusicólogo Alberto Ikeda, da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), na apresentação do livro São Paulo de Corpo e Alma (2003).

A roça se transforma

A cultura caipira desenvolveu-se principalmente entre os "sitiantes" – pequenos proprietários de terra, ou parceiros e arrendatários (que cultivam uma área pertencente a outros em troca, respectivamente, de parte da produção ou do pagamento de uma quantia em dinheiro, e têm direito de morar no local, plantando uma "roça" para sua subsistência). Segundo Antonio Candido, em sua obra clássica sobre o tema – Os Parceiros do Rio Bonito (1964) –, esses sitiantes vivem em agrupamentos "de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas".

Hoje, ainda há "alguns bolsões de pequenos produtores em que essa rede de parentesco e vizinhança estabelece elos importantes para a sobrevivência", afirma a socióloga Maria Helena Rocha Antuniassi, do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da Universidade de São Paulo (USP). "Nessas regiões há grande possibilidade de as festas tradicionais acontecerem com regularidade e de maneira semelhante à de antigamente", diz a pesquisadora, dando o exemplo do vale do Jequitinhonha (MG).

Alguns municípios paulistas do vale do Paraíba, como São Luís do Paraitinga, vivem uma situação híbrida. A área rural ainda é marcada pela existência de sitiantes, ligados por folias e outras festas. Mas, nos últimos anos, a pecuária leiteira, pouco competitiva, e a produção de gêneros alimentícios vêm cedendo espaço a setores como o de lazer e turismo e o reflorestamento com eucalipto. Muitos sitiantes migraram para cidades maiores, como Taubaté.

De modo geral, no entanto, a realidade do espaço rural mudou muito nas últimas décadas. "No período militar, houve uma opção clara do governo pela grande lavoura, que passou a depender menos de parceiros e arrendatários", analisa Antuniassi. Nessa conjuntura, mesmo o Estatuto do Trabalhador Rural (1963) não impediu sua expulsão do campo. "Antes, quem tocava dois ou três alqueires de café tinha direito de cultivar meio alqueire de arroz, feijão, etc. Hoje ninguém planta, é só salário mínimo", conta o Capitão Reis. "O fazendeiro só produz para ele, então aquelas colônias acabaram, mudou todo mundo pra cidade. E agora, com esse maquinário, ainda mais."

"Usada em larga escala, a tecnologia tira os moradores da fazenda, e eles são o suporte material dessas festas caipiras", confirma Antuniassi. Mas seria simplista vê-la apenas como vilã, pois, quando utilizada por sitiantes ligados a essas tradições, ela os ajuda a alcançar competitividade e, assim, a manter a propriedade da terra. A pauperização da população rural, decorrente muitas vezes da falta de políticas para o pequeno produtor, é que pode dificultar mais a continuidade dessa cultura. Não só por expulsar os moradores da terra, mas também porque essas "práticas festivas estão baseadas em trocas. Se você não tem o que dar, não é parte da rede", diz a socióloga, referindo-se ao ritual estabelecido por grupos como as folias, que distribuem bênçãos e são compreendidas como presenças do Divino nas casas, levando os moradores a retribuírem com donativos para a festa comunitária.

Apesar da migração intensa para as cidades ocorrida nas últimas décadas, o grau de urbanização que aparece no censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – 81,2%, em 2000 – pode não dar conta da complexidade da realidade, alerta o economista José Eli da Veiga, da USP, em seu livro O Brasil é menos Urbano do que se Calcula (2002). Isso porque, de acordo com os critérios adotados, não são diferenciados os moradores de metrópoles, efetivamente urbanos, dos que vivem nas sedes de municípios de pequeno porte e baixa densidade demográfica, nos quais a economia e a vida estão muito mais atreladas ao setor primário e ao espaço rural.

De devoção a folclore

"A migração é fator relevante, potencializa o dinamismo das manifestações populares, estimulando trocas e conseqüentes transformações na música que convencionamos chamar tradicional. Pode também favorecer o afastamento e o esquecimento, quando, no novo meio, não é possível manter os encontros e as condições propícias à sua prática", escreve a pesquisadora Juliana Saenger no livro Tocadores (2000).

Quando esse novo meio é a grande cidade, a presença mais intensa de estímulos culturais externos e a forte exclusão social a que alguns migrantes se vêem submetidos podem dificultar a recriação dos espaços de convivência caipira. "Mas, em muitos casos, as redes de parentesco e vizinhança persistem", afirma Antuniassi. Ligados por uma origem – e, às vezes, uma saudade – comum, os caipiras auxiliam-se mutuamente e continuam a confraternizar com suas danças e músicas, que passam até a falar dessas adaptações, como a moda de viola de seu Oliveira:

"Essa viola de pinho
Que estão vendo em minhas mãos
Ela é feita de madeira
E veio lá do sertão
Hoje vive na cidade
Com a sua tradição
No folclore brasileiro
Na mão desse violeiro
Alegrando os corações".

Mas viver na cidade implica adaptar-se a seu ritmo. Não há mais a possibilidade de deixar o restante da família tocando o trabalho da roça e sair para a folia-de-reis, por exemplo. Assim, algumas folias urbanas giram apenas no entardecer ou, durante o dia, nos finais de semana. Às vezes, é preciso começar a peregrinação antes do Natal ou estendê-la por mais tempo em janeiro, para conseguir visitar todas as casas. Em Poços de Caldas (MG), cidade de 140 mil habitantes, sete folias-de-reis percorrem a cidade e, às vezes, a área rural. "Mas na roça é complicado, não tem mais fartura, o salário é pequeno, então não compensa a gente alugar um carro para ir, porque arrecada pouco", fala o mestre de folia-de-reis José Henrique Cunha Santos, de 40 anos, conhecido como Fafi.

A folia do Capitão Reis, em São Paulo, faz sua festa final na Casa dos Violeiros de Osasco, com direito a apresentação do grupo no palco. Na cidade, os caipiras passam a lidar mais com o fato de serem "representantes" de um tipo de cultura. "Prestam contas não só para seus santos, mas também para prefeituras e entidades culturais", diz o antropólogo José Rogério Lopes. Outras vezes, tornam-se importantes para o turismo local.

"Vira folclore", diz o folião mineiro Fafi. "Pra mim, é uma devoção, mas pra quem está assistindo ou fazendo uma reportagem, é folclore", explica. "E às vezes só esse lado aparece, e não o religioso. Hoje, quando as congadas se apresentam na Festa de São Benedito [de Poços de Caldas], há menos tempo para expressar a devoção", exemplifica. Seu Oliveira ainda fala de outra diferença: "Quando a gente apresenta a folia-de-reis, os versos já são mais decorados. No giro, você faz um verso para a pessoa que está cumprindo promessa, outro para a imagem do santo pendurada na parede..."

Esses novos contextos, no entanto, ajudam a adaptar o sentido das tradições ao mundo atual, segundo José Rogério Lopes: "Pode ser que um menino se sinta mais estimulado a ingressar no moçambique ao ver que as pessoas gostam de assistir do que devido a uma promessa que o pai fez para ele entrar", fala.

As promessas, que entram como motivação de muitos dos folguedos caipiras, são hoje menos freqüentes que há algumas décadas. Fafi dá sua explicação: "A escolaridade aumentou, então nem tudo é visto como milagre". O crescimento de religiões protestantes, especialmente nas cidades, também contribui para a queda da prática, essencialmente católica. Mesmo assim, ela continua forte – basta ir até Aparecida do Norte (SP) para comprovar.

Muitas mudanças, muitas continuidades. O que importa é que "essas tradições são atuais, e não algo morto, antiquado", diz o antropólogo Marcelo Manzatti, referindo-se a uma das conotações negativas que o termo "caipira" com freqüência carrega. A prática da música tradicional, escreve Juliana Saenger, "vem, desde sempre, sofrendo alterações e influências, em um sistema dinâmico, não estático. (...) Diferente do patrimônio histórico material, a preservação das tradições musicais não implica, necessariamente, a restauração de uma suposta forma original, e manutenção de todas as suas características através de sua proteção de influências ‘externas’. Por se tratar de manifestação artística que ao longo do tempo é praticada por diversas pessoas, é inevitável que ganhe várias contribuições, tanto da criação e da competência de seus praticantes, como das novas condições que o meio acaba por colocar". Como diria Guimarães Rosa, em Grande Sertão – Veredas:

"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isso: que as pessoas não são sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam".


Do mato

A denominação "cultura caipira" refere-se hoje a hábitos da religiosidade popular e da diversão de origem rural do homem do centro-oeste e sudeste do Brasil, além de boa parte do Paraná – embora a delimitação exata seja difícil.

Foi nessa região que o caboclo (do tupi caa-boc, "procedente do mato") desenvolveu "traços de semelhança física e cultural", passando a ser chamado, no século 19, por uma "designação tipicamente paulista: caipiras", segundo escreve J. L. Ferrete, em Capitão Furtado: Viola Caipira ou Sertaneja? (1985). Alguns estudiosos associam o termo "caipira" "à contração das palavras tupis caa (mato) e pir (que corta), no sentido completo de cortador de mato", diz ainda o autor.

Segundo o violeiro e pesquisador Roberto Corrêa, a incidência dessa cultura também foi marcada pela irradiação da música das duplas caipiras. O gênero, lançado em disco em 1929 graças ao trabalho pioneiro do produtor musical, escritor e também caipira Cornélio Pires (1884-1958), passou logo depois a fazer parte da programação das rádios e dos roteiros de shows de toda essa região.

 

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