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A capital do ovo

Postado em 06/05/2004

 


Foto: Nilza Bellini


Cultura japonesa e produção granjeira caracterizam Bastos

NILZA BELLINI

Na quietude de seu rústico quintal, repleto de orquídeas e pedras esculpidas pela natureza, o poeta e fotógrafo aposentado Masayoshi Miyazaki, de 84 anos, relembra, auxiliado pela filha Helena, a história da pequena Bastos, de pouco mais de 20 mil habitantes, na região de Marília, no oeste do estado de São Paulo. De memória tão nítida quanto suas fotos em preto-e-branco, que durante mais de 60 anos documentaram a evolução do vilarejo criado em 1928, Miyazaki mal fala português, mas não disfarça o orgulho por ter ajudado a construir essa que é hoje considerada a Capital Brasileira do Ovo.

Alheio à fortuna representada pela produção de cerca de 7,5 milhões de ovos diários, que tornam as 132 granjas bastenses e seus 12 milhões de aves responsáveis por 27% dos ovos consumidos no estado e 12% no Brasil, o gentil Miyazaki enxerga com seus olhos miúdos um valor muito maior nesses números: a capacidade do laborioso povo de Bastos de transformar a terra pouco fértil da zona rural numa bem-sucedida experiência comercial, que fez o lugar ter hoje um dos menores índices de desemprego do país, cerca de 3%.

Bastos já foi a mais oriental das cidades brasileiras. Na época de sua fundação, era um pedacinho do Japão enxertado no Brasil. Foi criada por Senjiro Hatanaka, representante de uma autarquia governamental japonesa, encarregado de conseguir terras em São Paulo para instalar famílias de imigrantes. Em meados da década de 1980, a fama de cidade próspera atraiu ondas de migrantes de estados mais pobres. Em contraponto, cerca de 3 mil nisseis e nikkeis bastenses retornaram ao país de seus antepassados. Hoje, Bastos tem pouco mais de 35% de sua população formada por japoneses e seus descendentes. Mas a forte cultura do país do sol nascente resiste, quase tão sólida quanto antes.

Não é raro encontrar brasileiros, sem traços orientais, empregados em suas lojas, supermercados e nas seis agências bancárias, arranhando expressões em japonês. Também é comum ver, no comércio local, lousas pretas com os nomes e preços de produtos escritos em ideogramas. O estímulo ao ensino da língua japonesa, adotado por muitas de suas escolas particulares, serve ainda àqueles que embarcam em vôos para o outro lado do mundo, ofertados pelas cinco agências de turismo da cidade.

Voltar para o Japão era o sonho das primeiras 19 famílias que se instalaram na colônia localizada nas terras do fazendeiro Henrique Bastos, grande proprietário rural no início do século 20, numa área adquirida por Hatanaka. Poucos retornaram. Trabalharam em lavouras de café, cítricos e amendoim, e iniciaram práticas exóticas, como a de criação do bicho-da-seda. Em 1929 importaram para nossas terras tropicais, pela primeira vez, um cítrico hoje saboreado pelo povo brasileiro, de norte a sul, como iguaria: a tangerina ponkan. O algodão que plantaram na década de 1940 foi considerado o de melhor qualidade em todo o país. Também foi nessa época que chegaram ao Brasil, pelas mãos calejadas dos moradores de Bastos, as sementes da melancia redonda, que muita gente imagina ser uma riqueza nativa.

Mas foi a avicultura que fez a fama da cidade. Em 1935, Bastos viu nascer sua primeira granja, com 50 aves tratadas pelas mãos de Kisuke Watanabe, pai do jurista Kazuo Watanabe, um dos autores do pré-projeto do Código Brasileiro do Consumidor. Outros filhos da terra como Shigeaki Ueki (ex-ministro das Minas e Energia e ex-presidente da Petrobras), Seishiro Kano (almirante da esquadra naval do Rio de Janeiro), Yoshio Kiyono (coronel do exército) e Reizo Nishi (coronel da polícia militar) sempre são citados, pelos bastenses, como exemplo de perseverança a ser seguido.

A disciplina e a persistência tipicamente orientais fizeram Bastos vencer todas as dificuldades ao longo de sua história. Uma delas é memorável. Ainda nos anos 1930, pesados presságios obscureceram a confiança dos bastenses. No início daquela década, o maior grupo de imigrantes no Brasil era o dos japoneses. Instalados em diferentes colônias, implantadas sobretudo no estado de São Paulo, eles sentiram que uma lei de 1934, restritiva à entrada de imigrantes, prenunciava problemas. O racismo explícito, influenciado por eugenistas do direito e da medicina, provocava entre os brasileiros desconfianças acerca das novas experiências associativas, que garantiam o sucesso das pequenas propriedades japonesas de base familiar, como as de Bastos.

À intuição de que tempos ainda piores viriam somavam-se as naturais dificuldades de adaptação desses imigrantes ao Brasil, de clima tórrido e língua complexa. O calor excessivo (Bastos registra, no verão, temperaturas médias acima de 35 ºC) fazia temer, nas margens do rio do Peixe e dos 11 córregos que banham o município, a proliferação de doenças típicas deste lado do mundo, como a temível maleita. A cidade, que já contava com quase 7 mil habitantes, perseguida pelo governo de Getúlio Vargas, vivia, desde 1937, a proibição de organizar manifestações culturais japonesas ou ensinar a língua da pátria de origem. Bastos ficou isolada como um campo de concentração.

O medo do banimento alastrou-se. E embora os bastenses mal pudessem alcançar as proporções do drama, por causa da distância, nada foi pior que o terror causado pela bomba atômica lançada em 1945 sobre Hiroshima, província de onde muitos haviam emigrado. Sem ruído, alguns bastenses deixaram de lado a inércia e passaram a discutir formas de combate às restrições, ao isolamento e à proibição de práticas que transmitiam valores como respeito aos pais e aos mais velhos, garantia da estrutura baseada no trabalho familiar, sob a liderança paterna. A reação, violenta, veio com a organização terrorista Shindo Renmei.

"Ainda hoje ninguém gosta de falar sobre isso", alerta a programadora Cecília Saito, responsável pela supervisão do sistema de informática implantado na prefeitura municipal. Mas livros e raros documentos registram, mesmo que incompletamente, parte da história. Com pelo menos 80 integrantes, a Shindo Renmei tinha como principal objetivo perseguir e matar qualquer japonês residente no Brasil que aceitasse a derrota militar do Japão. Cerca de 23 pessoas morreram e 147 foram feridas em um ano de atuação do grupo, entre janeiro de 1946 e fevereiro de 1947. O escritor Fernando Morais afirma, em seu livro Corações Sujos (como eram chamados os imigrantes que aceitaram a derrota), que metade dos cerca de 7 mil moradores de Bastos, na época, colaboraram financeiramente com a Shindo Renmei.

Bastos também registrou ataques que destruíram plantações de hortelã e galpões de criação de bicho-da-seda (ambos os produtos utilizados no esforço de guerra aliado). A audácia típica de imigrantes de qualquer raça prevaleceu, entretanto. As vítimas tentaram novos caminhos, com outras culturas, como a de cítricos. Mas foram a atividade avícola e a fiação da seda que abriram caminho para o progresso.

Uma modesta fábrica para trabalhar o fio da seda havia sido comprada, em 1940, pela Bratac, nome abreviado de Burajiru Takushoku Kumiai, que se traduz como Sociedade Colonizadora do Brasil. A produção deslanchou depois da guerra, e hoje a unidade fabril da Bratac em Bastos é a maior do gênero no mundo. Dos 67 empregados da época do início das operações, a organização passou a contar com 920 funcionários, atualmente, apenas naquela cidade. O Japão é o seu principal comprador, e é para lá que se destina 63% da produção.

Aniceto Pereira da Silva, 38 anos, não é empregado direto da empresa, mas vive do dinheiro que a Bratac lhe paga pelo trabalho de sericultura. Ele alimenta com folhas de amoreira milhares de famintas lagartas do bicho-da-seda – o ser vivo que mais come em relação a seu peso. A criação é feita em um galpão até que elas se encerrem em casulos, o que exige a atenção de Aniceto durante todo o dia.

Em Bastos, os sericultores produzem cerca de 100 toneladas de casulo do bicho-da-seda por ano. Embora os números da seda impressionem, o lavrador Aniceto – um dos 6,5 mil sericultores brasileiros que entregam casulos à Bratac – mal ganha para viver. Despesas com o arrendamento da terra, a compra de larvas, inseticidas ou caixas para a formação do casulo são descontadas do seu pagamento. "Quase não sobra nada", lamenta ele.

Se os expressivos números da Bratac não iluminam a vida dos sericultores, os impostos que a empresa recolhe animam o prefeito Natalino Chagas, apelidado de "Tubinho". Filho de agricultores cearenses que no final dos anos 1930 migraram para Bastos em busca de trabalho nas lavouras de algodão, ele exerce pela segunda vez seu mandato no município de 170 quilômetros quadrados de área. "Mantemos cursos gratuitos de informática para 400 alunos, além de uma legião mirim, composta por cem jovens de menos de 16 anos, e servimos ovos na merenda escolar", divulga.

O bonachão mandatário da cidade, inimigo de ternos e gravatas, infla-se mais ainda ao falar do principal produto local. "Produzimos cerca de cem ovos por segundo, e o primeiro frigorífico brasileiro de codornas está sendo instalado aqui", afirma.

O evento oficial mais importante do município é a Festa do Ovo, a maior do setor avícola do país. Realizada anualmente em meados de julho, atrai milhares de brasileiros em busca de negócios e praticamente dobra a população de Bastos. Diga-se, a propósito, que grande parte dos números registrados na cidade são quase inacreditáveis. Os ovos produzidos num único dia, transformados em omeletes de 15 centímetros de diâmetro colocadas lado a lado, cobririam cerca de três vezes a distância entre a Terra e a Lua.

Trabalhar com aves exige esforços tão astronômicos quanto as distâncias planetárias. As de Bastos consomem mensalmente 37 mil toneladas de ração, 23 mil toneladas de milho e quase 9 mil toneladas de farelo de soja. Em conseqüência, restam nas granjas verdadeiras montanhas de esterco. E a cidade aproveita até esse material de odor quase insuportável para humanos, mas atraente para milhões de moscas que zumbem em torno dos viveiros não desinfetados. Cerca de 5 mil toneladas de esterco são transportadas em caminhões com carroceria aberta e vendidas a R$ 80 a tonelada. In natura, ele aduba lavouras de laranja, café e soja. Em compostos fertilizantes, serve para outras culturas.

Mas também há problemas. No início deste ano, uma praga, a laringotraqueíte infecciosa das aves (LTI), doença respiratória virótica altamente contagiosa, afetou a produção de ovos na cidade. A moléstia se apresenta em duas formas: a severa pode matar até 70% das aves doentes; a moderada reduz a postura em 15%. "Foi um susto enorme", diz Shigeyuki Toyoshima, o presidente do Sindicato Rural de Bastos.

A doença não afetou as codornas de Fábio Katayama. Veterinário, aos 26 anos ele concilia as atividades de representante de produtos agrícolas com o trabalho no sítio do sogro, onde há 30 mil codornas. A distribuição de ração e a coleta de ovos são mecanizadas, mas a embalagem, não. Em mangas de camisa e calça jeans, o veterinário passa a maior parte das horas dos finais de semana, auxiliado por dois empregados, encaixotando ovos.

Katayama já enfrentou fases duras com a atividade. "Em volumes pequenos como o meu, a codorna dificilmente gera bons lucros", afirma. Espera melhores dias com a instalação do frigorífico de codornas da família Nakanishi, anunciado para meados deste ano, e cuja expectativa já atrai desempregados de toda a região. "Recebemos uma média de dez solicitações de emprego por dia", reclama, impaciente, James Nakanishi. Atual administrador da Granja Nakanishi, uma das dez maiores da cidade, ele avisa: "Não há vagas".

Edson Yoshikawa, de 60 anos, dono da Artabas, a principal fábrica de implementos avícolas do país, comemora o desenvolvimento da avicultura. "Cada vez mais granjas modernas estão sendo implantadas também no nordeste", revela. Sua empresa, de origem familiar, exporta 15% da produção de sofisticados equipamentos para a mecanização da avicultura, e 40% é vendida para as granjas de Bastos. Em razão de suas atividades, Yoshikawa conhece vários países do mundo. Nas horas de lazer, entre muitas opções, ele tem uma preferência: freqüentar o Bastos Golf Clube, um dos melhores da modalidade do interior de São Paulo.

Com sede própria e 35 anos de existência, o clube está numa área de 20 alqueires. Seu gramado, chamado green pelos praticantes, tem 18 buracos (holes). É considerado o cartão-postal da cidade. Termos como "honra" para definir o privilégio de participar de uma partida, o respeito pela exuberante vegetação, o cuidado para não machucar a grama estão entre as normas de etiqueta do esporte, naturalmente obedecidas.

No Japão, são cerca de 15,7 milhões os praticantes do golfe. Mas, além da influência cultural, há mais razões para Yoshikawa elencá-lo entre suas preferências. Seu filho Leonardo, de 24 anos, formado em educação física, é golfista profissional ligado à Federação Paulista de Golfe. Ele começou a jogar no campo de Bastos, numa época em que o esporte era quase desconhecido no país. Atualmente, calcula-se em cerca de 20 mil o número de golfistas brasileiros, um crescimento superior a 550% nos últimos cinco anos. Investir nesse esporte pode ser muito promissor. Quem sabe, até mais que na difícil avicultura.

Fortunas, ovos, seda, empregos, exportações, temas recorrentes entre os moradores de Bastos, já não interessam a Masayoshi Miyazaki. Ele não documenta mais a história da cidade. O velho fotógrafo quer agora, apenas, cultivar orquídeas e desenhar em nanquim as letras que compõe emocionados haicais, publicados em livros e revistas, brasileiros ou internacionais. De coração forte e gentil, ele somente deseja que Bastos faça renascer velhas práticas culturais, como as do Clube de Fotos Artísticas, que reunia amigos para excursões fotográficas. Uma idéia que agrada aos bastenses descendentes de qualquer etnia.


Registro da imigração

O acervo do Museu Histórico Regional de Bastos é um dos mais importantes do país sobre a imigração japonesa. Nele estão mais de 5 mil objetos, como livros editados pelos imigrantes, fotografias, utensílios domésticos, vestimentas, peças religiosas e instrumentos musicais.

O prédio, onde já funcionou o primeiro hospital da cidade e da região, é o único remanescente dos primórdios da colonização. Localizado em frente à Praça Kunito Miyasaka, popularmente conhecida como Praça da Omelete, por causa de suas luminárias com formato de ovo, está dividido em seções. Na parte central fica a marítima, onde se destaca uma ossada de baleia, que faz recordar a discutível prática japonesa de caça a esses mamíferos.

Reformado em 2000, o edifício guarda bandeiras japonesas que eram içadas nas escolas da década de 1930, enquanto os alunos recitavam o "Kyoiku Tchokugo" (Reescrito Imperial para a Educação do Povo). Quimonos negros dos antigos professores são exibidos na seção de vestimentas e peças típicas orientais, onde também ficam roupas usadas pelo primeiro grupo de Teatro Japonês do Brasil e uma farda de um ex-soldado do exército nipônico, o bastense Wakiyama, que até morrer, há poucos anos, trajava a farda todos os dias de manhã para passear pela cidade.

A vedete da seção de maquinários antigos é a primeira máquina de lavar ovos patenteada no Brasil, desenvolvida na cidade, no final dos anos 1950. Peças de "soroban" (ábaco japonês) estão expostas em vitrines que também guardam instrumentos musicais. Rochas que contêm fósseis, recolhidas por bastenses no solo da região e classificadas na Universidade de São Paulo (USP), ficam na seção de paleontologia. O conjunto mais destacado de objetos é um altar de bonecas que simbolizam a família real, doado por um grupo de japoneses especialmente para ser guardado no Museu de Bastos.

 

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