O escritor revela os bastidores de sua criação e conta que terminou de escrever sua primeira peça de teatro - onde Jorge Luis Borges é personagem
Ignácio de Loyola Brandão nasceu em Araraquara, interior de São Paulo, em 1936, no dia 31 de julho, dia de Santo Ignácio de Loyola. Fascinado pelas letras desde criança, tinha o costume de ler dicionários, chegando mesmo a trocar palavras com seus colegas por bolinhas de gude e figurinhas - lembrança que acabou se transformando no conto O menino que vendia palavras, primeiro a ser publicado pelo autor. Sempre muito ligado ao cinema, participa, em 1953, das filmagens de Aurora de uma cidade, semidocumentário dirigido por Wallace Leal; funda, no ano seguinte, o Clube de Cinema de Araraquara; e atua como figurante, em 1961, em O pagador de promessas, Palma de Ouro em Cannes em 1962, dirigido por Anselmo Duarte e baseado em peça homônima de Dias Gomes. Como jornalista, passou, entre outras, pelas revistas Realidade e Planeta e pelos jornais Última Hora e Folha da Tarde. Atualmente publica crônicas semanais no Caderno 2, de O Estado de S.Paulo. Em 1975, após o lançamento do romance Zero, o autor inaugura no Brasil, ao lado de alguns colegas escritores, um hábito que faz questão de manter: sair pelas cidades do País encontrando seus leitores em palestras, trocando idéias e observando - ato que ele considera a essência da sua inspiração. Em 1990, volta a dividir seu tempo entre a literatura e o jornalismo como editor da revista Vogue, onde permanece até hoje. Entre os vários prêmios que recebeu ao longo da carreira, Ignácio soma o Jabuti de Melhor Livro de Contos, em 2000, por O homem que odiava a segunda-feira. A seguir, trechos da entrevista exclusiva que deu à Revista E, onde fala sobre os sonhos de sua geração e o fazer literário.
Você está sempre escrevendo, sempre produzindo. O que está criando agora? Na verdade, eu acabei de escrever. É uma peça teatral. Muita gente vai cair de costas quando souber. Afinal, escrever uma peça quase aos setenta anos é um acontecimento. No ano passado, a Maria Bonomi me ligou convidando-me para almoçar e dizendo que ia me fazer uma imposição. Queria que eu escrevesse uma peça teatral sobre o autor argentino Jorge Luis Borges. Eu pensei e topei. Fui ao Jorge Schwartz, o grande especialista que organizou a obra completa de Borges, e ele me disse que eu devia começar justamente pela obra. Ele me deu livros sobre Borges e eu passei meses numa pauleira, fazendo mil anotações e procurando um fio condutor. Eu não queria fazer uma interpretação - não sou especialista -, tampouco queria fazer uma biografia, porque não era o caso. Então, o que fazer? Não podia ignorar o fato de que Borges tem muitos “donos”, gerou muitas associações, muitas agremiações, máfias, enfim, muitas leituras vindas de pessoas que se julgam “as” conhecedoras da obra dele.
Um homem que deixou muitas “viúvas”... Pois é, eu ia mexer em formigueiro. Mas, na verdade, não existe essa história de dono. De repente, assistindo a Oito e meio (filme de Federico Fellini, 1963), me veio o fio condutor. Oito e meio fala de um processo de bloqueio, um sujeito que está bloqueado, deu um branco na cabeça dele, e ele não consegue fazer o filme. Aí, eu pensei: “E o bloqueio?”. Nunca se leu nada sobre Borges ter bloqueios. Ele tinha uma memória fantástica, as pessoas liam textos para ele, que ele guardava na memória e nunca mais esquecia. E se ele esquecesse? Quando eu reli o Aleph (um dos títulos do autor relançado pela Editora Globo em 2001), que é um ponto no espaço que contém todas as circunstâncias e partes do universo dele, me veio: “E se ele descobrisse uma palavra que contém todas as palavras?” O material é Borges, só que adaptado. No momento em que ele encontra essa tal palavra, que pode ser Deus, ele esquece, porque não é permitido a ele ter essa palavra. Quando ele a esquece, bate um desespero, porque ele nunca tinha esquecido nada. Conversando com Maria Kodama, sua mulher, que é uma personagem da peça - a gente vai inclusive mandar o texto para ela, para aprovação -, Borges se lembra de que há personagens e pessoas que ele gosta muito de ouvir. Como, por exemplo, Richard Burton, o descobridor da nascente do Nilo. Grande tradutor, Burton traduziu As mil e uma noites para o ocidente com todo o erotismo. Juntos, Borges e Burton evocam Sherazade, e aí começa a viagem por meio do deserto em busca da biblioteca de Babel, onde estão todas as palavras, as já criadas, as não criadas, as que não são inventadas, as acabadas, enfim. Eles chegam na biblioteca de Babel em busca desta palavra. A história termina no momento em que ele entra na biblioteca. O final é uma surpresa, não sei ainda o que é.
Qual o nome da peça? Por enquanto chama-se A palavra esquecida. Mas é um título provisório, porque eu não encontrei um título de impacto. Aliás, meu desespero é o título. Tem gente que começa pelo título, eu não, eu acabo por ele. E, às vezes, no último minuto, como foi o caso de O Beijo não vem da boca (Global Editora - 2001, 5a edição), que teve três nomes antes de chegar a esse, que eu gosto muito.
E isso aconteceu com algum outro livro seu? Com o Zero (Global Editora - 2001, 12ª edição), que ia se chamar A inauguração da morte, porque era morte por toda parte naquela época, até o dia que eu olhei um outdoor imenso com um zero perdido e umas palavrinhas embaixo. Cheguei perto e estava escrito “zero de entrada e o resto em suaves prestações...”. Mas aquele zero assim ficou na minha cabeça: “zero é o início, zero é o fim”. Naquela época a gente era zero porque podia ser preso, ser morto, desaparecer, ser torturado, podia tudo. A vida valia zero. Zero era o título perfeito.
O que você acha dessa literatura que vem dos jornais? O autor que é jornalista de profissão, o material do jornal transformado em livro, as crônicas... É uma literatura dentro do jornalismo. Não é uma coisa que você faz de maneira apressada, porque tem de fechar a edição etc. É um assunto que você busca, pensa, desenvolve, reescreve. A crônica publicada em jornal tem o problema do tamanho, que é predeterminado. Isso exige prática e treino mesmo, até conseguir chegar à densidade em um curto espaço. Eu tenho quatro mil caracteres para preencher com minhas crônicas. Às vezes, tenho um episódio inteiro para contar, mas preciso reduzir ao máximo, acho que é um exercício muito bom. Acho que crônica é literatura sim. Algumas, poucas, podem permanecer. No meu caso, há crônicas que na verdade são um balão de ensaio para um conto. O homem que odiava segunda-feira (Global Editora - 1999), um livro de contos, foi primeiro uma crônica. Em um café da manhã, eu estava sozinho em casa, olhando a mesa, começaram a aparecer umas formiguinhas que vinham pela parede. Fiquei pensando: “Engraçado, formiga no décimo terceiro andar, por onde elas vêm?”. Não gosto de matar, e uma ficou ali perto do açúcar... Aí já começou a piração. Comecei a conversar com a formiga e fiz uma crônica, que teve um sucesso. As pessoas começaram a mandar e-mails, brincando que eu era louco de conversar com formiga, elogiando a formiga, comparando minha solidão com a da formiga, enfim. Eu retrabalhei a crônica e a transformei num conto, o primeiro de O Homem que odiava segunda-feira. Num dia eu entrei aqui na Vogue, e, no dia que se faz a seleção das moças para os editoriais de moda, fica cheio de meninas. Umas moças lindas, magrinhas, olhares, aquela coisa toda sonhando ser a Gisele Bündchen. Vim entrando e tinha uma delas agarrada a seu book de fotos. Ela me olhou e perguntou: “O senhor é daqui?”. Respondi que sim. E ela: “Será que eu vou ser a escolhida?”. Disse que não sabia - eu até gostaria de escolher as moças aqui, mas não sou eu quem escolhe. Ela me disse: “Eu preciso tanto ser a escolhida”. Perguntei por quê? Ela: “Me dói tanto ser desconhecida, me dói tanto ser anônima e não ser ninguém, eu não posso continuar assim”. Claro que eu subi para minha sala com aquilo na cabeça e dois dias depois eu escrevi uma crônica. Chamava A dor e o prazer do anônimo, de onde acabou nascendo O Anônimo Célebre (Global Editora - 2002).
A crônica serve para um tipo de diálogo com o leitor que o livro não possibilita? Por ser mais curta, ter uma tiragem maior... Eu vim descobrindo uma coisa: o leitor de crônica é um leitor de crônica. Raramente ele passa para o livro. É raro. E é gozado isso. Falo baseado em dez anos como cronista do O Estado de S.Paulo, um jornal muito lido. Isso não quer dizer que não haja leitor de crônicas que também leiam livros. Mas o processo foi ao contrário: era leitor de livro e foi ler a crônica. A crônica tem um público específico, ele está esperando que você diga coisas que ele queria dizer. No fundo o leitor do livro também, mas a crônica é mais rápida, está ali na mão, é barata (um jornal custa dois reais). Eles elegem os cronistas, há os cronistas mais lidos de um jornal, mais lidos de outro. Eu descobri também que o leitor de crônica é, ao menos no meu caso, mais velho; e o de livro, mais jovem. Isso eu afirmo com toda certeza. Eu chego nessas palestras, o auditório está cheio de universitários. Tem cara que leu O homem que odiava segunda-feira ou o Zero... O Zero ainda é lido, trinta anos depois.
Você foi um dos precursores dessa onda de escritor dar palestras, não? A relação entre autor e leitor mudou um pouco a partir dos anos de 1970 com o Antônio Torres e eu sendo convidados para rodar o País. Na época, muitos nos gozavam, diziam que era muita vaidade, que escritor tinha que ficar sentado escrevendo. Eu sempre fiquei “sentado escrevendo”, mas acontece que tem uma hora em que você tem que anunciar que fez um livro, tem que falar com as pessoas, deixar que elas façam perguntas. Não oferecer essa chance aos leitores era um preconceito. Hoje quase todos fazem isso, estão todos andando por aí. Outro dia eu fui a uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul e embarquei no mesmo vôo que Ruy Castro. Quando eu desembarquei, topei com o Maurício de Sousa. Quando o Ruy foi embora, chegou o Carlos Heitor Cony.
Parece que se espera hoje do escritor algo diferente do que nos anos de 1970, em plena ditadura. Antes queriam uma conversa mais política com os autores. Você concorda? Uma coisa curiosa que muda é o seguinte: nos anos de 1970 a maioria dos escritores era jornalista, a minha geração toda era formada por jornalistas, Ivan Ângelo, Márcio Souza, e por aí vai. Naquela época, o público queria saber da gente sobre o que a censura tinha proibido, afinal nós tínhamos essas informações. Eu era secretário do Última Hora e guardava tudo o que era proibido. Tudo o que vinha com o carimbo “vetado” eu colocava em uma gaveta. O Zero foi feito com parte desse material. Quando a gente ia às escolas, em vez de falar de literatura a gente lia aquelas notícias. Eram perguntas em cima de perguntas. No fundo, as pessoas queriam a informação e achavam que o escritor era quem ia dar. Hoje mudou, é um pouco a mistificação, um pouco a curiosidade, porque a maioria desses escritores aparece na mídia. Os leitores se identificam com os livros, vão porque gostam dos livros. Querem saber como é que o escritor fez, por quê, como é que faz, como virar escritor. A maior parte das perguntas segue por aí. Tem muito mais interesse pela literatura envolvido.
Seus livros às vezes nascem de acasos. Foi o caso do O Verde Violentou o Muro, não? O verde violentou o muro (Global Editora - 1989, 12ª edição) não iria ser livro, em primeiro lugar. Eu estava em Berlim, e estava fazendo O beijo não vem da boca. Mas em Berlim, uma cidade desconhecida para mim, uma língua desconhecida, eu andava muito a pé e de ônibus. Eu não dirijo, não sei dirigir. Em Berlim eu tinha vários caderninhos - eu adoro caderninhos, e tinha uns lindos lá -, e eu subia no ônibus e sentava no primeiro lugar da parte de cima e ia vendo os lugares. Decidia parar, descia e andava. Anotava coisas sobre a gente, entrava em um bar, bebia, continuava, entrava em uma cafeteria, depois ia até um lago, um parque, eu ia até o ponto final de algumas linhas, depois voltava. Fiz todas as linhas de ônibus, ia passeando. Eu fui para lá dizendo que tinha um projeto. Nem tinha, mas disse que tinha e acreditaram. Eu ia anotando principalmente tudo o que não me era familiar, antes que ficasse familiar depois de um tempo. Eu vejo quando amigos estrangeiros vêm a São Paulo e se surpreendem com cada coisa que a gente fala: “Por que eu não vi isso?”. Quando eu voltei para o Brasil, tinha quase setenta cadernos com anotações. Fui para Araraquara, estava escrevendo O beijo não vem da boca, e um dia entra um professor viu aqueles caderninhos todos e pediu para olhar. “O que você vai fazer?”, ele perguntou. Eu respondi: “Acho que um diário. É interessante, Berlim, o muro, pouca gente sabe o que é”. Eu pensei no seguinte: eu sou um jornalista, e sou um escritor, meu trabalho é relatar, não tem como eu não contar como é viver numa cidade que é neurótica por causa de um muro. Em Berlim o muro fechava a cidade inteira, “dentro” estava Berlim Ocidental, uma prisão, “fora” era Berlim Oriental. Uma Berlim dentro da outra. As pessoas não sabem disso.
Como tem sido sua rotina de escrever? Uma vez você contou que levantava às quatro da manhã, só para evitar o barulho das crianças. Você começa a ficar mais velho e passa a dormir pouco, não sei por que razão. Acho que pela mesma razão que criança dorme muito. Levanto às cinco porque é mais silencioso, a empregada ainda não chegou, não tem fax, e-mail, aspirador, programa de TV, não tem nada. Fico das cinco às nove e meia ali no meu lugar de escrever, meu escritório, que tem um janelão enorme que dá para um horizonte e eu vou vendo o dia nascer. Isso é muito legal, às vezes nuvens estão fechadas e vão abrindo, vem o sol... Isso dá uma tranqüilidade. Venho então para a revista e começo a pauleira aqui. Saio às sete e meia, oito horas, não quero escrever nada. Depois das cinco da tarde, nada do que eu escrevo presta. Nem aqui (na revista Vogue), nem em casa. Quero jantar, conversar, ver televisão, filmes, qualquer coisa. Já Bebel que a cidade comeu (Global Editora, 6ª edição) foi escrito inteirinho à noite. Dentes ao sol (Global Editora, 4ª edição) também, eu ainda morava em pensão e escrevia à noite. Mas depois o hábito mudou, muda com o tempo. Por exemplo: no final de semana eu não escrevo mais. Leio jornal, revista, pedaços de livro, saio para comer, demoro horas... Fim de semana agora é fim de semana.
No momento não parece a você que exista um consumo maior de literatura brasileira contemporânea? Acho que sim. Você chega em um lugar, estão lá setecentas pessoas; uma cidade pequena, setecentas pessoas em um auditório. Você vê que eles lêem muito, as perguntas mostram isso. Às vezes eu pergunto sobre literatura estrangeira, mas eles não têm interesse. Ou seja, de repente, você vê que os professores começaram a inverter o processo, antigamente eles ficavam dando os clássicos, e isso enchia. A grande maioria dos professores, hoje, começou a dar autores contemporâneos, que têm uma linguagem mais do dia-a-dia. É importante que nos últimos dez ou quinze anos tenha havido essa mudança na visão do professor. Era impossível. Meu filho leu Memórias de um sargento de milícias (livro do período do Romantismo, escrito por Manuel Antônio de Almeida) e dizia: “Pai, tem palavra que não tenho a mínima idéia do que é, tem frase que eu não entendo”. No momento em que você domina um pouco a linguagem, aí sim você vai para os clássicos. Uma coisa que tem ajudado é essa nova leva - Nelson de Oliveira, Fernando Bonassi -, gente que está trazendo uma mudança. É a primeira, depois da minha, que vem com um certo impacto de novidade, de visão do País - claro, tudo isso dentro desse número mínimo de leitores que nós temos.
De quando você começou a escrever até agora, experimentamos um arco da direita à esquerda, sonhos vividos e sonhos vencidos. Qual a sua sensação, o que sua geração deve deixar, em termos políticos, para o País? Difícil responder a essa pergunta, porque uma geração você só pode avaliar depois que ela termina, aí você avalia o que ela produziu, você analisa, você olha e diz se fizeram certo ou errado. Eu acho que foi uma geração que teve esperança, que tentou modificar as coisas nesse País, procurou isso. Se deram certo ou errado, não sei, a gente fez o que tinha que fazer. Acho que houve sempre a necessidade de modificar alguma coisa. Muitos sacrificados por aí, por razões as mais diversas, uma geração que foi vivendo uma desilusão em cima da outra, até agora. A menos que mude muito, essa tentativa que a gente fez de modificação está sendo decepcionante. Mas nesse Brasil as coisas sempre são surpreendentes, e amanhã pode ser que tudo mude, não sei, não digo nada antes que as coisas sejam concretizadas. Só acaba quando termina. É como num jogo de futebol: quando o juiz apita é que você sabe quem ganhou e quem perdeu. Apenas quero dizer que viver é bom, com todos os problemas, todas as preocupações e com toda felicidade. Os bons vinhos, as boas comidas, as belas mulheres, os amores, os maus amores, os bons livros, os maus livros. Fala-se muito sobre o grande romance da sua geração, dá para dizer qual é? Desde que eu comecei minha carreira, quarenta anos atrás, eu não agüento mais falar nisso. Por que o mundo acadêmico fica exigindo o grande romance? A gente tem que definir, primeiro, o que é o grande romance. Não é o romance que está aí? Será que você não vai ver daqui vinte anos que o grande romance foi um que ninguém prestou atenção hoje? O que é o grande romance? Eu gostaria que definissem isso. É Guimarães Rosa? Jorge Amado? Diz que não, negam tudo. Essa conversa me encanta pouco. Na verdade, nós não estamos preocupados com isso, nós estamos preocupados em escrever. |