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PS
Estamos todos no underground

Postado em 01/04/2004

Não há registros de qualquer movimento, minimamente articulado, que reivindicasse o título de underground. São menos claros ainda quais seriam os elementos estilísticos e formais que identificassem um gênero ou uma estética underground. Isso talvez seja mais uma questão de estado que de propriedade. 'Estar', e não 'ser'. Ou quem sabe uma questão ética, e não estética.
Roy Schuker, autor do cartográfico Vocabulário da Música Pop (Ed. Hedra, 1999), não escreve nenhum verbete com esse nome. Entre outros semelhantes - gravadora independente, cenários alternativos, etc. -, o autor relaciona o underground com o conceito de autenticidade, vital, de acordo com Schuker, para a compreensão de muitos dos fenômenos do universo pop. Para ele, a autenticidade não determina apenas a produção de uma obra original e criativa, mas também sua integridade artística e comercial. E é pela integridade que se estabeleceu a distinção entre underground e mainstream (a parada de sucessos). Deixando de lado o anglicismo, podemos dizer que o embate se deu entre a arte e o mercado, o artesanato e a manufatura ou, para algumas vanguardas, entre a industrialização em série e o produto personalizado, quase individual, a música pessoal que só você ouve (o mercado faturou muito com a invenção do walkman para atender a esse anseio, mas a idéia de personalização musical continua válida e contemporânea).
Durante a explosão da indústria do entretenimento (final dos anos 1950 a meados dos anos 1970), havia consenso quanto ao repertório veiculado. Ao potencializar a difusão de seu conteúdo, com o avanço tecnológico - a aldeia global de McLuhan é dessa época -, a indústria propiciou a fruição de um repertório comum a todos. No Brasil, os lares estavam sintonizados nos festivais de música da Record, e a transmissão da primeira edição do Rock in Rio também obteve uma grande audiência. Hoje, essa indústria encontra-se esfacelada. Os canais abertos de TV e as estações de rádio se multiplicaram, surgiram as TVs comunitárias em UHF, a TV a cabo e seus inúmeros canais. Temos ainda a locação de vídeos/DVDs, a Internet e mesmo os celulares, mini-estações receptoras de tudo o que se produz para entretenimento e o mais novo alvo das gravadoras, que arregalou seus olhos para os serviços de ring tones. No Japão, com a febre do uso desses aparelhos entre os adolescentes e o dinheiro gasto com suas contas, há quem afirme ser esse um dos motivos para a queda na venda de discos. Quanto ao conteúdo, as atenções se dividem entre a novela, o cinema, o videogame, a pornografia, o culto televisionado e o futebol, entre tantos outros. Um jogo do Real Madrid, com Ronaldo, Beckham e Zidane, atrai tanto público quanto um show dos Rolling Stones ou da Madonna. Reflexo disso são as freqüentes notícias de fusão entre gravadoras. A última delas foi a aquisição da divisão de música da Time Warner pelo grupo Bronfman. Mas não pense que esses grandes conglomerados estão se expandindo, o que está acontecendo é que eles estão se dissolvendo. Neste cenário, contra quem se opor?
A cadeia produtiva da música perdeu sua estrutura radial de centro e periferia, prejudicial à diversidade e manutenção de práticas locais de música. O mangue-beat pernambucano, que já havia cunhado a feliz imagem da antena parabólica enfiada na lama, criou outra brilhante analogia, ao apontar as redes de rádio e TV como praticantes da monocultura. Os movimentos undergrounds podem ser mais claramente compreendidos se começarmos a tratá-los com a mesma preocupação que os ecologistas despendem ao desenvolvimento sustentável e às práticas não agressivas de utilização dos recursos naturais. Esteticamente, porém, continuamos no mesmo impasse: não há elementos únicos para identificarmos sua natureza. Uma das características mais marcantes seria o apego à baixa tecnologia, às gravações caseiras. Mas não foi dessa forma que o Nirvana vendeu milhões de discos?
É lugar comum dizer que estamos em um momento de transição e não sabemos ainda como o negócio da música vai se desenvolver, afinal até a Melo Diniz Produções, da personagem Maria Clara, de Celebridades, faliu. E não foi a pirataria que provocou isso. Mas nesse gramado - o rizoma de Deleuze? - não brilha apenas o Real Madrid, estique sua esteira, pegue sua própria música e aproveite o sol. Nunca houve tanto para escolher. Quem está 'ouvivendo' sabe disso.

Sérgio Pinto é graduado em música e técnico do Sesc


 

 

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