Há três décadas nascia o Festival Sesc dos Melhores Filmes; críticos, organizadores e público relembram sua trajetória
Há trinta anos, em 1974, o Brasil vivia sob a ditadura do governo militar chefiado pelo presidente Ernesto Geisel. Era um tempo de liberdade restrita. Filmes, livros, discos, discursos, tudo era severamente controlado pelo governo. A censura tinha a cara dos homens designados para exercê-la. Eram os censores que decidiam o que sairia nos jornais, nas revistas, nas novelas, nos livros e, claro, o que entraria em cartaz nas telas dos cinemas. Em meio a esse clima de repressão, quando a ordem da cidadania era tentar burlar as regras de qualquer jeito, nasceu o Festival Sesc dos Melhores Filmes. "Nosso grupo descobriu filmes, diretores, atores e alertamos colegas e espectadores sobre a importância de cada obra que corria o risco de permanecer ignorada. O aviso podia ser via jornal, recado ou telefonema. De repente um cinema, no centro ou no bairro, praticamente deserto, era invadido por públicos de todas as idades e aparências", relembra José Carlos Saffioti, técnico do Sesc São Carlos, um dos primeiros organizadores do Festival, que neste ano realiza sua 30ª edição.
Muito o que contar As primeiras edições do evento aconteceram no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação. Era lá que o pessoal do cinema se reunia para assistir (ver depoimento de Saffioti) e decidir, quais eram os melhores do ano, o créme de la créme da sétima arte nacional e estrangeira. Gente como Ismail Xavier, um dos mais respeitados professores de cinema do Brasil; os críticos Carlos Motta, que, junto com Rubens Biáfora, foi um dos mais importantes do Estado de S. Paulo. Inácio Araújo, da Folha de S. Paulo; Rubens Ewald Filho, do canal Telecine; Eugenio Bucci, atual presidente da Radiobrás; além de Leon Cakoff, organizador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e muitos outros eram presenças garantidas nesse cineclube. No primeiro ano, elegeram A Herança, de Ozualdo Candeias, como melhor filme do cinema nacional e Gritos e Sussurros, do sueco Ingmar Bergman, na categoria filme estrangeiro. Olhando para trás, percebe-se como o Festival já nasceu grande e acertou em cheio logo na primeira edição. Gritos e Sussurros consagrou-se como uma das mais brilhantes obras de Bergman. E Ozualdo Candeias firmou-se como um dos maiores representantes do cinema brasileiro. No entanto, trinta anos é muito tempo, o suficiente também para os arrependimentos, acanhadamente admitidos, porém "nominalmente" inconfessáveis. Esse foi o tom do balanço feito por Rubens Ewald. "Já votei errado muitas vezes. Mas isso não se faz... O melhor mesmo é evitar os erros de agora", diz ele, que acompanha o Festival desde o início. "Ao revermos determinado filme, devemos considerar a época em que foi realizado, mas na maioria dos casos ou resistiu ao tempo ou não. Aquela obra-prima de 30 ou 40 anos poderá desapontar. Muitas vezes nos perguntamos: isso é aquele grande filme que assisti? Creio que não!", brinca Carlos Motta, outro veterano nas votações do CineSesc. A entrada para o time dos "balzaquianos" acaba remetendo a uma certa nostalgia, com lembranças doces e outras nem tanto: o começo, quando se reunir para assistir um filme era praticamente um ato subversivo; os anos seguintes, pontuados pela expectativa da volta da democracia - e pelo êxtase de sua chegada; e a tristeza dos cineastas brasileiros, que durante o governo Collor praticamente não produziram nada e o Festival se viu sem candidatos brasileiros por pelo menos dois anos. Por outro lado, sobra a alegria de ter apresentado ao Brasil pérolas do cinema que estavam passando quase despercebidas, descobrindo muitas obras-primas que não encontravam espaço nas salas de exibição. Entre eles, Tampopo, de Juzo Itami; Paisagem na Neblina, de Mikis Theodorakis; Fogo e Paixão, de Isay Weinfeld e Marcio Kogan; Asas do Desejo, de Wim Wenders; e Abrasasas, de Reinaldo Volpato.
Os passos Cinco anos depois de seu lançamento, em 1979, já acomodado no lendário espaço do CineSesc, na rua Augusta, o Festival já contava com os votos de 50 críticos de todo o País reunidos nesse culto ao cinema. No ano seguinte, a votação foi aberta também ao público, que elegeu Bye, Bye Brasil, de Cacá Diegues, como melhor filme nacional e A Rosa, de Mark Rydell, como melhor estrangeiro. Em 1992, já sob direção da jornalista Ana Maria Cerqueira Leite, hoje assessora de imprensa do Sesc São Paulo, o Festival passou a ter uma cerimônia de premiação para os melhores filmes nacionais e estrangeiros eleitos pela crítica e pelo público. Esse julgamento, sob olhares profissionais e passionais, acaba sendo uma boa oportunidade para acabar de vez com a dúvida: público e crítica gostam das mesmas coisas? Sim e não. "Grande parte das vezes, ele votam igual", atesta Ana Maria, que acompanha o Festival há doze anos. "Críticos são mais cerebrais", completa Neusa Barbosa, do site Cineweb. "Até por condicionamento profissional. Em geral, por assistirem a um filme como trabalho, tendem a ser mais analíticos, comparar com outros filmes vistos, daquele diretor ou de outros, do mesmo gênero, etc. É isso, aliás, o que se espera de profissionais. O público, mesmo cinéfilo, tende a reagir mais emocionalmente aos filmes. A relação dos espectadores com o cinema é, talvez, mais dominada pela afetividade." De fato, como é possível conferir neste ano (ver box), muitas vezes o voto da crítica é o mesmo do público. É interessante notar também como os espectadores consagraram entre as produções de 2003 o formato de documentários, premiando os perfis cinematográficos do sambista Paulinho da Viola e do pianista clássico Nelson Freire. "Nem sempre concordo com a crítica", dispara Maria Helena Serrano, freqüentadora do CineSesc há mais de vinte anos. "O todo é que considero o mais importante em um bom filme." A premiação do Festival dos Melhores Filmes de 2003 acontece em 5 de abril (somente para convidados). De 6 a 22 de abril, os melhores filmes serão exibidos no CineSesc. Confira a programação e veja quem caiu nas graças da crítica e do público.
Uma longa história - por José Carlos Saffioti "Uau! Trinta anos com a bênção do Sesc! Criamos o Festival Sesc dos Melhores Filmes em 1974 no Teatro Anchieta, hoje Sesc Consolação. A turma se reunia para curtir o equipamento de cinema com projeção em 35 mm (hoje ainda ativo em São Carlos) que poderia funcionar somente às segundas-feiras, no Teatro. Nos melhores anos da democracia e nos piores anos da repressão, nosso grupo descobriu filmes, diretores, atores e alertamos colegas e espectadores sobre a importância de cada obra que corria o risco de permanecer ignorada. O aviso podia ser via jornal, recado ou telefonema. De repente um cinema, no centro ou no bairro, praticamente deserto, era invadido por públicos de todas as idades e aparências. Podia ser desde Pelos Caminhos do Inferno, do Ted Kotcheff, no Cine Copan, até Duelo do Destino, de Tomu Uchida, no Cine Nippon. O que estaria acontecendo? Era a Brigada dos Melhores Filmes do Ano em ação! Em 1980, um protesto conscientemente político contra a ditadura e a censura: votamos unanimemente no proibidíssimo O Império dos Sentidos (foto), de Nagisa Oshima (Japão), como melhor filme do ano. Um escândalo que a mídia e o público adoraram. Por essa e outras pressões, três dias depois o filme voltava ao cartaz. Contra todas as expectativas, em 1990, o CineSesc bateu vários recordes em São Paulo: de público, de renda e de permanência de um mesmo filme em cartaz, por muitas semanas (mais de um ano) numa mesma sala - o cult movie alemão Asas do Desejo, de Wim Wenders. O Leon Cakoff me contou que o diretor alemão ficou admiradíssimo com essa recepção do público paulista. Lembro-me que a última e emocionante capa da qual participei diretamente foi em 1991, na 17ª edição, destacando Paisagem na Neblina, melhor filme do ano pelo público e pela crítica, com aquela mão gigantesca de Theodorakis viajando sobre a cidade. Foi um encontro inédito de votação entre público e crítica que, a partir daí, passou a ser um fato corriqueiro. Se o Festival sobrevive há trinta anos, talvez sendo uma das atividades de mais longa durabilidade no Sesc, é porque tivemos a sorte, nesse período, de contar com homens sensíveis, inovadores e apaixonados por cinema."
Os melhores de 2003
A crítica elegeu:
Melhor filme
Cinema Nacional 1º) O Homem que Copiava 2º) Amarelo Manga 3º) Desmundo 4º) Nelson Freire 5º) Carandiru
Cinema Estrangeiro 1º) As Invasões Bárbaras 2º) Adeus, Lênin! 3º) Sobre Meninos e Lobos 4º) O Homem Sem Passado 5º) Arca Russa
Melhor diretor brasileiro
Jorge Furtado (O Homem que Copiava)
Melhor ator brasileiro Lázaro Ramos (O Homem que Copiava)
Melhor atriz brasileira Simone Spoladore (Desmundo)
Melhor diretor estrangeiro (empatados)
Peter Jackson (O Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei) Aleksandr Sokurov (Arca Russa) Amos Gitai (Kedma e O Dia do Perdão)
Melhor ator estrangeiro Javier Bardem (Segunda-Feira ao Sol)
Melhor atriz estrangeira Julianne Moore (Longe do Paraíso)
O público elegeu:
Melhor filme
Cinema Nacional 1º) Amarelo Manga 2º) Homem que Copiava 3º) Nelson Freire 4º) Lisbela e o Prisioneiro 5º) Paulinho da Viola - Meu Tempo é Hoje
Cinema Estrangeiro 1º) As Invasões Bárbaras 2º) O Filho 3º) Adeus, Lênin! 5º) As Horas 6º) Dez, Samsara e A Inglesa e o Duque (empatados)
Melhor diretor brasileiro Jorge Furtado (O Homem que Copiava)
Melhor ator brasileiro Lázaro Ramos (O Homem que Copiava)
Melhor atriz brasileira Simone Spoladore (Desmundo)
Melhor diretor estrangeiro Jean-Pierre e Luc Dardenne (O Filho)
Melhor ator estrangeiro (empatados) Olivier Gourmet (O Filho) Sean Penn (Sobre Meninos e Lobos)
Melhor atriz estrangeira
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Julianne Moore (Longe do Paraíso) |
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