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Entrevista
Jacques Marcovitch

Postado em 01/06/1998

As empresas de telemarketing garantem que em dois anos, devido ao crescimento extraordinário do setor, criarão um milhão de postos de trabalho. Há, entretanto, uma ressalva para tamanha abundância: os ope-radores e vendedores deverão ostentar diploma universitário.Ausente o requisito sine qua non, o jovem postulante ficará alijado de mais uma fatia do mercado. A intensa internacionalização de produtos é um dos responsáveis pela carência de empregos. Outro culpado pelas vagas rarefeitas é o desenvolvimento tecnológico voraz.

Diante do panorama atual a Universidade não deve apenas providenciar o diploma redentor. Seu papel é maior. Na entrevista exclusiva que se segue, o reitor da USP, Jaques Marcovitch, fala sobre os desafios que se descortinam.

Alguns dados econômicos demonstram que as profissões vêm mudando. O que parece é que, não só no Brasil mas também em outras partes do mundo, há uma dificuldade por parte das pessoas para se adequarem a essas mudanças.

O que as universidades em geral, e a Universidade de São Paulo, em particular, vêm fazendo para acompanhar essas mudanças?

Em primeiro lugar é preciso analisar a dimensão dessas mudanças. A espécie humana viveu uma primeira transição dramática quando ela migrou da palavra falada para a palavra escrita, no Egito antigo. Essa primeira migração possibilita o acúmulo de conhecimentos que teve suas consequências na agricultura especialmente. Vamos passar alguns milênios para chegar a 1500, quando a espécie humana atravessa uma segunda transição, passando da palavra escrita para a palavra impressa. Os manuscritos se transformam em livros, em jornais impressos, e a partir daí, novamente, há uma explosão de conhecimento disponível que está na origem da revolução científica de 1600 e da revolução tecnológica de 1800. Chegamos, portanto, 500 anos depois testemunhando uma terceira migração: a da palavra impressa para a palavra digitalizada. A Universidade, quando apreende essas evoluções, percebe o quanto ela deve estar ao mesmo tempo sintonizada ao seu tempo e à frente dele. Diante da profundidade dessas transições, a Universidade pode antecipar uma nova revolução científica. E, em seguida, antecipar uma revolução tecnológica que deve, ao mesmo tempo, integrar e dividir a sociedade humana.

Como a Universidade administra o contraponto desse movimento, ao mesmo tempo integrador e divisor?

À medida a qualidade de vida se aprimora, a esperança de vida aumenta. Formar um jovem hoje, que nasceu em 1980, significa que ele poderá viver até 2080. Portanto, a Universidade tem de dar a ele conhecimento acumulado, bem como prepará-lo para que ele possa lidar com essa grande transição que projeta uma revolução científica e uma nova revolução tecnológica. E também, à medida que a comunidade atual vive por mais tempo, nós temos que saber fazer dessa vida uma vida criativa, construtiva, promissora. Mas, simultaneamente a essa integração, é possível visualizar, devido a violência e terrorismo, que há fragmentação social. A sociedade está se dividindo nas grandes cidades. E é nesse quadro que a Universidade se insere e percebe o tamanho do seu desafio.

Como a Universidade vem se saindo nessa batalha?

O desafio que a Universidade tem de enfrentar é complementar a sabedoria dos mais velhos com a capacidade inovadora dos mais jovens. E a Universidade, por excelência, é um espaço de encontro de gerações. Há outro ponto: as redes eletrônicas permitem a esse jovem um acesso à informação, uma capacidade de "navegar" maior que a do próprio professor que está orientando o seu projeto acadêmico. Mas aquele professor acumulou uma experiência que dá a ele um sistema de valores, um quadro de referências e uma sabedoria de que esse jovem carece. A cada ano são 140 mil que batem à porta da USP e deles são escolhidos 8 mil. Nós esperamos que esses 8 mil vejam nessa oportunidade mais do que a possibilidade de se tornarem bons profissionais ou pesquisadores, mas que se tornem ao mesmo tempo lideranças exemplares. E para isso, a relação entre essa juventude inovadora, criativa, instrumentada, com essa capacidade de lidar com os novos meios eletrônicos, complementa e é complementada por aqueles que podem trazer a importância da sua sabedoria.

O jovem que ingressa na Universidade, apesar de possuir o domínio sobre os instrumentos novos, não está menos preparado do que um jovem de 30 anos atrás para enfrentar as novas realidades do mercado?

Eu penso que essa geração que está chegando agora, pelo fato de se sentir melhor informada, revela, de forma mais explícita, a carência de valores e de rumos. Nós, daqui a dois anos, vamos comemorar os 500 anos do descobrimento, um dos primeiros movimentos de globalização de outrora; 500 anos depois, do mesmo modo que no passado, também chamamos esses jovens de "navegadores". Ou seja, usamos o mesmo termo para a descoberta das novas terras de hoje no espaço virtual. Mas navegar implica em riscos, isolamento, riscos de afundamento, e navegar implica em se manter sempre flutuando e sabendo qual é o rumo que está se procurando.

Mas e os jovens que não têm esse nível de informação tecnológica e sofrem com o desemprego e vêem que o mercado necessita cada vez mais de trabalhadores especializados? O que a Universidade pode fazer para beneficiar essa parcela da população que é alijada do domínio tecnológico?

Primeiramente, eu penso que esse é o preço da dualidade socioeconômica que o Brasil paga e que, de alguma forma, é a representação do que ocorre em escala mundial. Nós temos aqui essas realidades heterogêneas convivendo uma com a outra. A Universidade, em primeiro lugar, deve assumir a sua responsabilidade com o ensino de primeiro e segundo graus. A USP, particularmente, vem se comprometendo com as escolas públicas para transmitir ao maior número possível de professores de escolas o conhecimento científico e tecnológico que ela tem. É evidente que isso não é suficiente. Existe toda uma dimensão sociopsicológica-cultural- econômica que precisa ser movimentada.

Qual é, então, o compromisso primordial da Universidade?

Eu acho que a Universidade tem um primeiro compromisso de não apenas zelar pelo conhecimento acumulado, mas ajudar o avanço desse conhecimento. É por isso que os jovens procuram a Universidade, pois ela detém na competência dos seus professores a sabedoria, o conhecimento, as informações e os dados que são úteis para uma formação universitária. Portanto, ela tem um primeiro compromisso com este zelo pelo conhecimento e pelo avanço desse conhecimento. Ela tem um compromisso paralelo: dar formação aos jovens. Esse compromisso é fundamental para oferecer uma esperança e uma perspectiva de solução. Os jovens que saem hoje da Universidade são a nossa principal esperança para que esses problemas estruturais sejam problemas enfrentados e depois resolvidos. E é evidente que simultaneamente a universidade tem uma interação com empresas, com agências governamentais, com organizações não-governamentais e com sindicatos. Essa interação com a sociedade é simbiótica, alimenta a pesquisa e a formação dos recursos humanos. Eu enfatizo essas atribuições para que a Universidade assuma a sua responsabilidade com relação ao problema da exclusão, por exemplo.

Partindo desse princípio, qual é o objetivo do jovem que ingressa em uma Universidade?

Tanto os jovens de classe média quanto os menos abastados procuram na Universidade um meio de ascensão social. Procuram primeiro consolidar uma identidade. Ele vai competir com outros para entrar na Universidade, e ele sabe que essa universidade vai dar a ele uma forma de ascensão social. Aí surge o primeiro desencanto, porque ele percebe que não basta só o diploma. Quando ele se forma ele reconhece que o diploma é uma condição necessária, mas não é uma condição suficiente se ele não tiver estruturado o seu quadro de referências, o seu projeto de vida, para fazer desse diploma um meio de colocar o seu conhecimento a serviço de uma causa maior. Eu acho compreensível e, aliás, necessário, que o jovem consiga materializar no diploma seu objetivo. Eu faço votos que tenhamos a possibilidade de formar gerações que possam ajudar na transformação do contexto no qual nós estamos.

Trinta anos atrás arrebentava um movimento mundial desencadeado por reivindicações juvenis. Parece que os jovens atuais padecem de lassidão de espírito muito grande. Por quê?

Os jovens que lideraram o movimento de 68 nasceram imediatamente depois da Segunda Guerra. Esse jovem, que não conheceu a guerra, não encontrou na geração anterior respostas às perguntas que ele formulava. Ele sabia dos erros e dos acertos das gerações anteriores, mas não encontrava, especialmente na Universidade, respostas aos problemas que ele enfrentava. Aqui, em maio de 68, acontece algo semelhante, mas ao mesmo tempo diferente. Maio de 68 ocorre quatro anos após a revolução. A juventude brasileira de então viveu as turbulências do Governo Juscelino, do Jânio, do Goulart, e da revolução de 64. Ele também formulava perguntas que não tinham respostas. São essas intranquilidades que acabam provocando essas turbulências. Trinta anos depois, nos encontramos diante de uma geração nascida na década de 70 isolada pela tecnologia. Os meios eletrônicos geram uma vida desagregada: uma televisão em cada quarto, um computador em cada quarto. A tendência de desagregação cultivou a dimensão individual. O meio universitário é uma exceção, porque é uma atividade tipicamente coletiva. Vejo que hoje o jovem também procura na Universidade o espaço de referência grupal.

E a semelhança a 68?

Semelhante à medida que os jovens trazem perguntas novas à quais os mais velhos não conseguem responder. A questão do emprego versus tecnologia é tipicamente uma pergunta formulada. O que é uma sociedade sem empregos? Essas são perguntas que as gerações anteriores não conseguem responder. À medida que desaparecem certos empregos, surgem novos. É o caso tipicamente dos EUA. E esses novos empregos colocam a Universidade no centro da discussão. Então ela tem de antecipar as demandas da sociedade para ajudá-la a formar jovens que possam se inserir no mercado de trabalho numa Era desconhecida.

Na teoria, essa é uma bela imagem. Mas, na prática, como se encontram as universidades brasileiras?

É um problema sério, porque no sistema universitário nós temos um segmento público que não tem crescido, um segmento confessional de qualidade e temos um sistema privado heterogêneo, que é dirigido de um lado por educadores, na sua minoria, e por investidores, na sua maioria. Os investidores fazem da educação um projeto de prazo limitado: enquanto há retorno esses investidores permanecerão no mercado, mas no dia em que não houver mais interesse, eles abandonam. Eu vejo isso com muita apreensão. É preciso que Estado e sociedade assumam a gravidade desse problema. A questão se coloca em como canalizar esses recursos para a expansão dos sistemas de qualidade.

A saúde financeira da USP interfere na qualidade do ensino?

Sobre a gestão financeira da USP, ela sempre foi extremamente conservadora. Mas ela tem preservado esse equilíbrio ao longo dos últimos anos e isso continua e continuará. Às vezes, essa postura inibe uma expansão de corpo docente ou de vagas porque nós não queremos em nenhum momento criar situações constrangedores com dificuldades orçamentárias para as atividades que estão se gerando. Dito isso, nós percebemos que há espaço para expansão. Ainda este ano, nós já aprovamos uma modesta expansão de vagas.

E como a Universidade administra questões novas, como a expansão da expectativa de vida, por exemplo?

Um bom exemplo é o curso de odontologia, que aumentou a graduação de quatro para cinco anos, pois existe hoje uma geração de pessoas mais idosas que demandam um conhecimento na área de odontologia que não era familiar até agora. Lidar com a terceira idade prolongada implica num conhecimento novo técnico necessário. Por trás dessa atuação existe uma dimensão humana. Percebendo a falta de espaço no currículo regulamentar para debates sobre a questão nacional e o momento que estamos atravessando, os alunos de algumas de nossas unidades organizaram seu ciclo de formação complementar e recorreram a professores da Universidade, que passaram a dar suas palestras sobre as dimensões complementares.

E como o interesse transdisciplinar da comunidade universitária reflete-se na comunidade?

Se você observar o número de pessoas que saíram do meio acadêmico e ocupam hoje os postos-chave tanto no setor empresarial, no setor sindical, no governo e nas ONGs, é possível enxergar nas funções de liderança da sociedade egressos ou docentes da Universidade prestando sua colaboração nessas funções. Nós nunca devemos esquecer que a Universidade é feita de pessoas, mas também de empresas e ONGs e sindicatos. O Dieese tem se utilizado de ex-alunos e às vezes docentes de universidades estaduais para colaborar nessas responsabilidades. Até as redes de tevê se alimentam de nossos egressos. O papel da universidade é, de um lado, assegurar os recursos humanos que por ela passaram do vestibular até a formatura, depois temos uma outra interação por meio da pesquisa, anunciada via publicações científicas mas, também, de vez em quando, pela imprensa diária. E, mais importante, via extensão universitária: o XI de Agosto (Centro Acadêmico XI de Agosto, diretório estudantil da Faculdade de Direito da USP) tem uma história de extensão que começa com o Departamento Jurídico, fundado em torno de 1910, e que mostra bem como a Universidade está comprometida com essa exclusão praticamente desde o seu nascimento. A Faculdade de Medicina e a Faculdade de Saúde Pública nascem, no final do século passado, para lidar com questões tipicamente de saúde pública.

Há uma crítica muito severa de que o investimento que o Estado faz, seja no graduando, seja no pós-graduando, não é revertido em prol da sociedade que o financiou, indicando que o resultado da produção científica é inútil ou mesmo ridículo. Isso realmente acontece?

Às vezes, a crítica vem da seguinte forma: será que o tema que foi pesquisado é o mais relevante para a sociedade no momento em que foi concluído o trabalho? Eu acho que essa crítica não se sustenta por dois motivos: primeiro porque o que temos observado é que há vários temas ao longo da história que podem parecer para um leigo, num determinado momento, de importância secundária, mas rapidamente, de um momento para o outro, eles se tornam prioritários. Eu penso que nós vamos ter sempre exemplos que mostram como a chamada pesquisa exótica e inusitada começa a ter um impacto. E a Fapesp está levantando uma centena de projetos mostrando como eles tiveram repercussões diretas no desenvolvimento social, econômico e cultural do país. Mas, o que se espera de uma atividade de pesquisa de pós-graduação é criar nos jovens uma inquietude e um inconformismo daquele que saberá buscar a solução para um problema. Então quando se começa uma tese com a definição da hipótese para terminar nas conclusões, o que se treina é um indivíduo a formular um problema, equacionar esse problema, diagnosticar e analisar um problema e propor soluções.

O senhor tocou na questão do vestibular. Não há injustiça nessa seleção?

Nós entendemos que o vestibular deveria sempre se abrir para colher da sociedade o seu segmento mais amplo e mais representativo. No semestre passado 21% de alunos que ingressaram no vestibular em 98 eram provenientes de escolas públicas. Nós estamos tentando compreender como, apesar das dificuldades que as escolas públicas estão enfrentando, esses jovens ocupam, felizmente, 21% das vagas que foram oferecidas no ano de 98.

Mas o senhor há de convir que é um número irrisório.

É pouco, mas demonstra que existem espaços de escolas públicas. A expansão desses 21% é hoje o nosso desafio. Para aumentar esse índice estamos propondo uma parceria da USP com as escolas públicas de 1º e 2º graus para que eles possam se beneficiar da nossa experiência para ajudá-los na sua formação. Agora, aumentar esse índice envolve muito mais. Eu espero que a iniciativa de reforma do ensino de 1º e 2º graus que o Governo do Estado está assumindo seja também frutífera. Tenho a impressão de que nós precisaremos sofisticar e aprimorar as formas de seleção para que sejam escolhidos os melhores. A Universidade, transformando seu vestibular, transformará a sociedade. Os processos de transformação devem se dar pelos nossos egressos. Aquele indivíduo que veio de uma classe social mais modesta será mais transformador da sociedade que aquele que vem da classe alta. As grandes transformações que ocorrem na sociedade acabam se dando pela classe média. O fato de nós termos uma expressiva presença de classe média na Universidade mostra um sinal de esperança. O que não quer dizer que eu não gostaria de ter mais pessoas das classes menos favorecidas. A chamada classe superior da sociedade não está na universidade pública. Ela evita um vestibular tão competitivo quanto o nosso.

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