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Ficção Inédita
Quando abraço minha sombra

Postado em 01/09/2003

Whisner Fraga

Senti imediatamente todo o drama: que miserável desamparo, que solidão ali se revelavam! Sua pobreza era grande, mas a sua solidão como devia ser horrível! Bartleby, O Escriturário (Herman Melville)

"...e nossas sombras pelas paredesmoviam-se, aconchegadas como nóse gesticulavam, sem voz."
(Cecília Meireles)

Se a aflição supera o meu desejo de saber, encolho-me no meu silêncio, busca sem motivo no interior das coisas que me sustêm. O frio soprou seu gélido bafo em mim (como foi?) e percebi um certo tremor em meus músculos e até um fragmento daquilo que hoje chamo de dor, mas que antes não saberia nomear. Impus-me então o mormaço de outro corpo? Que nesse abraço severo dividiria a aflição? A revolta das células e o conspirar dos órgãos. Quem me exigiu a crença naquilo que meu espírito considera com um ardor soberano algo falso e inútil?
Quando a ausência me rebaixou ao sopé da solidão e do remorso. Brando assim o meu desvelo para com o que penso a meu respeito. Deve ter sido crescente o aprendizado. Primeiro engatinhei, depois senti a firmeza dos meus ossos e a coragem insurgindo contra a debilidade que herdei e, resoluto, ergui-me, sustentado por duas pernas vagarosas. Os passos para alcançar o colo de minha mãe: os joelhos ardendo em viva carne. O chão ao qual estava acostumado surgiu distante e mais alto e poderoso estive frente às formigas e outros insetos que me acompanharam durante os meses de reconhecimento. Então um frêmito me sacudiu e por pouco não pisoteei meus antigos companheiros. O poder que seduz as criaturas inferiores. Tateando com a limítrofe dificuldade os objetos que me circundavam, alvejando a mulher que ria do meu esforço, agrupando toda a intensidade de meus desejos para alcançá-la, sobrepujando o meu próprio vigor, o seu rosto a cintilação que me guiava, divisei bem perto a maldição de braços com a esperança. Percebi também que jamais alguém sofreria por mim, que o fustigo na minha pele não acarretaria qualquer sofrimento na epiderme de outrem. Enfim alcancei os peitos de mamãe, macios e suculentos, jorrando um líquido branco e quente que preencheu o meu estômago, embora dali tenha brotado apenas o necessário para amenizar a avidez da fome, pois eles não queriam que acreditasse em recompensas por um esforço que dependia antes da minha sorte do que de algum talento especial.
Não sei quando me vieram as frases, primeiramente desconexas e ininteligíveis, mais tarde apenas lacônicas. E a invasão, a pilhagem? Detalhes que se amalgamaram sorrateiramente ao meu caráter e hoje o lamento pela desatenção. Não haja culpa a não ser daqueles que se aproveitaram da veleidade de uma criatura incompleta.
As roupas chegaram e já controlava meu corpo e sabia a hora certa de ir ao banheiro para deixar no vaso o que meus órgãos não quiseram aproveitar. Cerrava a porta do quarto para me trocar e educadamente dizia "muito obrigado", "por favor". Quem se arriscaria a dizer que me calaria em tantos idiomas?
Como recompensa pelos sapatos lustrados e pelas camisas limpas e bem passadas, levaram-me à escola. Bendito dia. Com alvoroço eu tentava adivinhar o significado dos símbolos e depois a atração por Lucilene, pressenti que seria para sempre um desgraçado. A necessidade mórbida de substituir as mamas, de afagar com indolência as suas coxas brancas e frívolas... E que frialdade na sua condescendência comprada! Como conciliar o amor com a carne? E com a moeda. Arremessada imprudentemente contra meu peito esperançoso, a mágoa assolou um a um os sentimentos felizes que jurava possuir.
Façamos assim: que eu pense ter isolado o que de melhor há em você, que não arrebanhei o conjunto inteiro no leilão dos homens, que casta, sensível, inteligente, e apenas isso, e para complicar, mas também para aperfeiçoá-la, você verá apenas o naco bom das pessoas, mantendo então um sorriso constante e mais ainda: será esse sorrir a sua verdade. Mesmo que se aproveitem dessa inocência e, acredite, não tardará a acontecer.
Envelheci. Conheci sozinho os estragos dos anos e não me queixei. Era a morte que eu esperava viesse duelar comigo, o tabuleiro de xadrez sempre pronto, como no filme de Bergman. Os cabelos ralearam e a gengiva expulsou os dentes, como fossem intrusos na harmonia do riso. Nem assim soube da maturidade ou do conhecimento total sobre a mínima coisa. Com que arbitrariedade eu vi os fatos se desenvolverem, no curso interminável do acaso. Soube que as coisas que aprendi foram artimanhas do meu instinto e que só me serviam à sobrevivência.
Sempre uma réstia, o suficiente para deixar nas paredes ou ainda no chão o meu contorno deformado (que hoje penso ser mais exato do que o meu corpo). Ela, dia ou noite, infalivelmente a me acompanhar.
Nos amamos. Porque não havia outra esperança de humanidade que não esta, sutil e espectral. Não tivesse opção de refrear a mágoa que se acumulara, feito manancial de ruindades inesgotáveis.
Envergonho-me ao dizer que o amor se apresente tão disforme e talvez até um tanto frágil.
Mas nos amamos. Ainda assim.
Convulsiva e desesperadamente.
Numa dessas conversas que nos tomavam noites completas e durante as quais se consumiam dezenas de velas, lembro-me de falarmos da composição da sombra. Dela. O que seria? Matéria, onda? Invocamos os meandros da física quântica, tentamos uma explicação através dos quasares, dos quarks, até que, exaustos e sem chegarmos a lugar que nos permitisse qualquer conclusão, nos abraçamos, decididos a continuar a perquirição num outro dia.
De repente a vela se consumiu por inteira e a luz se extinguiu. A solidão apresentou-se arrogante e apressei-me em acender uma outra. Após, pouquíssimas vezes faltou luz em nosso quarto, tão dependente de mim era a sua vida, que a sua morte só podia ser culpa minha. De dia, janelas escancaradas, eu corria para perto do sol, e nas noites nunca faltaram artifícios para produzir um pouco de claridade.
Líamos livros, os seus gestos: mímicas dos meus, em tudo estavam dizimadas as pegadas da solitude.
Mas ainda nos atormentava a sua origem. Tantas teorias para explicar a minha própria, que não podíamos abandonar o assunto sem indagações. Paradoxal o nosso relacionamento, se disséssemos basta: sejamos felizes assim, sem o conhecimento, estaríamos fadados ao desgosto, pois a busca sempre nos moveu. Ela não poderia, portanto, ser evitada. A única saída para nós dois era a resposta.
O vinho nunca bastava para as noites de discussões calorosas. Bebíamos da mesma taça, falávamos pela mesma voz, mas percebia argumentos tão díspares!
Até que você se ergueu arrogante, ficamos frente a frente quando fui puxado pelo colarinho, um terrível esgar dominava a sua face escura, exigindo ardentemente uma explicação para tudo. Aflito, tentei abraçá-la, como se houvesse nesse gesto a única resposta cabível para aquela indagação e apática, você se aquietou e foi aí que senti a lâmina afiada da sua incompreensão. Sorrateiro, me desprendi do enlace e com um sopro apaguei a chama para nunca mais reacendê-la.
Só assim prosseguir em vasta escuridão.

Whisner Fraga é autor de Coreografia dos Danados
(Edições Galo Branco, 2002).

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