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Em Pauta
Auto-estima

Postado em 01/09/2003

O brasileiro mudou? Se por um lado é certo que passou a monitorar mais de perto as ações dos políticos que elege - e se mostra menos conformado com as desigualdades sociais - por outro, seu otimismo tem sido, cada vez mais, bombardeado por fatos que o jogam para baixo. Como anda esse "novo" brasileiro num cenário de tantas mudanças? Diferentes visões são discutidas por Gilberto Dupas e Roberto DaMatta em artigos exclusivos.



O churrasco presidencial e o brasileiro
por Gilberto Dupas

Falar do que está acontecendo com a auto-estima do brasileiro no conturbado início do novo século exige, antes de tudo, uma rápida olhada no que foi o furacão econômico dos anos 1990 nesse país onde, segundo Sérgio Buarque de Holanda, um dia habitou o homem cordial.
Para isso, ainda que por um instante, temos que percorrer a última metade do século XX. Enquanto os brasileiros que ainda resistiam nas zonas rurais oscilavam de 30 a 40 milhões, aqueles que foram expulsos do campo pela mecanização - mais os já nascidos nas cidades - construíram a explosão urbana do Brasil: de 13 milhões de citadinos em 1950 para 137 milhões no encerrar do século. O primeiro grande inchaço foi devido ao êxodo para as metrópoles, dando origem aos cinturões de pobreza que formaram um imenso estoque de reserva de mão-de-obra barata e pouco qualificada na periferia das grandes cidades, mal acomodada no desemprego ou subemprego. A partir dos anos 1980, com o que chamei tempos atrás de saturação dos faróis de trânsito e dos baixos de viaduto, a explosão populacional passou a se concentrar nas cidades médias e pequenas. Enquanto a população rural veio se reduzindo desde então em média 1% ao ano, a metropolitana crescia 1,8% e a urbana restante pulava 3,2% a cada virada de calendário. Cerca de 42 milhões de brasileiros foram assim acrescentados às nossas cidades não-metropolitanas de 1981 a 2001, transformando também clássicos paraísos paulistas como Ribeirão Preto e São José dos Campos em zonas tensas de confronto entre a riqueza e a exclusão.
Nestes últimos vinte anos, as chamadas duas décadas perdidas, nosso PIB arrastou-se de forma medíocre, com um crescimento médio per capita quase nulo (0,4% ao ano). Do lado da economia, em apenas dois momentos o brasileiro teve razões de entusiasmo: o fugaz Plano Cruzado (em 1986) e o Plano Real. De resto, já havíamos suportado quase tudo, inclusive hiperinflação e confisco de poupanças. A partir de 1994, com o real, garantiu-se finalmente um salto no rendimento dos mais pobres e a esperança de que o país se estabilizasse e voltasse a crescer. Mas, a melhoria dos ganhos dos salários só durou dois anos, a partir daí iniciando um longo declínio que ainda não parou e já cortou em 20% a renda real média dos salários desde então. A estabilização em boa parte ocorreu; no entanto, o crescimento ficou enredado na armadilha da política cambial e da vulnerabilidade externa que a abertura econômica - operada como panacéia - acabou causando.
A partir de 1996 os salários e ordenados iniciaram uma queda contínua como parcela do PIB nacional, recuando de 29% para 26%. Embora essa situação tivesse sido amenizada por conta de acréscimos no pagamento de aposentadorias e outros benefícios, estudo recente de Sonia Rocha (com dados da PNAD-IBGE) mostra que - desde então - o percentual de brasileiros pobres não parou de crescer: foi de 33% para 35%. No entanto, enquanto na zona rural e nas regiões urbanas ele ficou mais ou menos estável, foram as metrópoles que continuaram acumulando tragédias. Nelas a população pobre teve um crescimento ininterrupto, que passou de 31% em 1995 para 37% em 2001. Na região metropolitana de São Paulo, os abaixo da linha de pobreza tiveram seu recorde nacional: cresceram 45%. Em seguida tivemos Porto Alegre (27% de aumento) e Belo Horizonte (13%).
As causas desse desempenho assustador são várias. A estabanada abertura comercial e a necessidade imperiosa de competir obrigaram a produção local a uma profunda e contínua reestruturação preventiva, com automação radical e terceirizações. Nesse novo paradigma, uma eventual recuperação do crescimento econômico não basta, necessariamente, para uma elevação do emprego. O que de fato ocorreu foi uma elevação contínua do desemprego de 1995 a 2002, crescendo cerca de 60%. Enquanto o IBGE indicava uma evolução de índice metropolitano de 5% para 8%, o SEADE - incluindo o desemprego "oculto", isto é, os desalentados e as ocupações muito precárias - registrava em São Paulo um avanço de 12% para 19%. Enquanto isso o emprego flexível avançava continuamente sobre o trabalho formal, levando o setor informal a representar mais de 56% da mão-de-obra metropolitana brasileira em 2002, depois de ter se mantido num patamar de 42% até 1990. A referência no imaginário social, no entanto, continuará a ser - ainda durante muito tempo - estar empregado no setor formal, com as garantias a ele associadas de direitos trabalhistas e previdenciários. Essa situação afetou a estabilidade da renda auferida e dos esquemas de proteção social, gerando uma forte sensação de insegurança quanto ao futuro do emprego e uma exclusão social crescente.
Esses fenômenos - que fazem parte da mudança do paradigma do emprego no Brasil no pós-abertura dos anos 90 - acarretam importantes conseqüências psicossociais. O incentivo à iniciativa individual e a idealizada sensação de "não ter chefe" estão inevitavelmente contaminados com as responsabilidades da contrapartida de "ser seu próprio chefe". Tudo passa a depender do próprio indivíduo, até a "invenção" e a estabilidade do seu próprio trabalho, além de questões como assistência médica e aposentadoria. Além do mais, férias, feriados e fins de semana do trabalhador informal têm sabor de renúncia de renda, e não mais de direito adquirido. Finalmente, o setor informal padece de uma relação muito mal resolvida com o Estado. Ao mesmo tempo em que as autoridades vêem nesse setor uma "solução" para a questão do emprego, tratam-no freqüentemente como marginal, já que nosso sistema tributário o encara - muitas vezes justificadamente - como agente de evasão fiscal.
Ao lado desses números desanimadores dançam as novas realidades internacionais: uma globalização implacável que reduz empregos e exige contínuos saltos de competitividade; os grandes países exigindo sempre mais abertura econômica para os outros e permitindo-se imensos subsídios e proteções; e, finalmente, o império norte-americano resolvendo impor-se como o detentor da única verdade e ameaçando que "quem não está com ele" nessa prepotente e imprecisa cruzada para mudar culturas e regimes "estará contra ele", assumindo as devidas conseqüências.
Em meio a esse caos, quando até nosso futebol anda claudicando, haja estoque de auto-estima para o tradicional otimismo brasileiro. A última grande esperança foi Lula. Herói tipicamente nacional, legítimo representante - rural e urbano - do nosso povo, ele sempre sinalizou a grande mudança com o resgate da miséria. Para ganhar as eleições e domar a penosa herança virou o "Lulinha, paz e amor". Agora, enfrenta o duro e solitário desafio de governar. Construindo um "pacto de circunstância" com as elites nacionais e internacionais - que sonham poder ser ele o grande mago capaz de conciliar rígida ortodoxia fiscal e monetária com crescimento econômico e redução da pobreza - Lula carrega o pesado andor deixando por enquanto no chão o complicado Fome Zero para abrir espaço ao santo das reformas, até agora com sucesso relativo. Enquanto isso o brasileiro vai levando, tapando buraco aqui e acolá, fazendo graça e divertindo-se com o Casseta & Planeta. Afinal, bem ou mal Lula é o brasileiro que finalmente chegou lá. E não é pouco vê-lo convocar os ministros a bater uma bolinha na Granja do Torto; sair do Alvorada em carro blindado, com chapéu de palha e camisa do Corinthians; e terminar a manhã de sábado tomando um chopinho com churrasco cuja carne crua cada ministro trouxe um naco. É para nenhuma auto-estima de brasileiro botar defeito, especialmente se acabar dando certo. Afinal, não resolvemos pagar para ver?

Gilberto Dupas é economista e autor, entre outros, de Tensões Contemporâneas Entre o Público e o Privado (Editora Paz e Terra, 2003)


Como Vai Nossa Auto-Estima?
Por Roberto DaMatta

O tema é revelador e significativo. Num mundo constituído por unidades políticas marcadas pelo nacionalismo, essa visão exaltada e muitas vezes fanatizada das qualidades e virtudes nacionais, deparar-se com um país que sempre leu a si mesmo negativamente e, no limite, com extremo pessimismo, é uma nota dissonante no tal "concerto das nações".
Mas o fato é que em termos de amor próprio o Brasil tem sido como um samba de uma nota só. Aquela nota recorrente da auto-crítica negativa e impaciente, marcada pelo "narcisismo às avessas", denunciado por Nelson Rodrigues, e pela autoflagelação confundida com radicalismo chique e com "consciência crítica".
Não cabe nessas linhas tentar explicar isso, mas pode-se dizer, sem medo do erro e do exagero, que a consciência colonizada jamais foi devidamente discutida no Brasil. De fato, a visão exógena de si mesmo, ou seja, a visão do Brasil pelos olhos alheios tem sido um tema recorrente da nossa vida intelectual. Assim, temos lido a nós mesmos pela ótica evolucionista do racismo crasso, do positivismo comtiano, da antropologia vitoriana de Marx e Engels e do empirismo quantitativo dos índices, cifras e tabelas produzidas pelos cientistas políticos e economistas. O resultado é sempre um assustador desvio ou até mesmo perversão porque no nosso desenvolvimento, éramos retardatários e inadimplentes. Nossa sociedade que foi sede do reino português, que teve escravismo capitalista, que foi uma aristocracia burocratizada e modernizou-se pelas mãos do Estado e sem deixar de hierarquizar-se não se encaixava em nenhum "modelo de desenvolvimento". E como as sociedades não estudam Sociologia ou entram em partidos políticos, estava tudo fora do lugar e de ponta-cabeça. E, para complicar ainda mais esse quadro, éramos mestiços, mas tínhamos um formidável carnaval e um excelente futebol.
Não seguíamos, esse era o ponto, as linhas mestras de uma França, Inglaterra ou Estados Unidos, idealizados e tomados como modelos. A diferença inevitavelmente ressaltada por uma comparação feita de fora para dentro era tomada como sinal de inferioridade racial, histórica e, sobretudo, política. Numa palavra, líamos (e ainda lemos) o Brasil por meio de ausências, faltas e desvios.
A oscilação entre autoritarismo e liberdade levou as elites a uma crítica razoável, mas exagerada a qualquer sentimento de auto-estima. Confundindo regime político com o próprio país, institui-se o axioma segundo o qual gostar do Brasil era ser conivente com a "ditadura" e com a "direita": com "tudo isso que aí está", como dizia o PT. Causava arrepio ver na avaliação de qualquer obra de gênio produzida no Brasil, o azedume que sustava o elogio.
Ser de elite significava ser de "esquerda" e ser de "esquerda" tinha como base, entre outras coisas, ser do contra e duvidar, desconfiar e não aceitar um Brasil lido de dentro porque esse Brasil era "ideológico": era uma leitura mistificada (enganadora e ardilosa) de si mesmo.
Dentro deste quadro, esboçado aqui com exagero sem o qual, como dizia Weber, não há Sociologia, não cabia - exceto em raras ocasiões - uma inconfortável questão, qual seja: será mesmo possível mudar o que não se gosta? Será mesmo possível salvar o que, de tão errado e mal-feito, não se ama ou se quer? Como gostar de um país que, depois de 500 anos, não tem o que comemorar?
Mas como, eis o dado extraordinário de nossa história contemporânea, iniciada em janeiro deste ano com a posse do Lula como presidente da República, não amar esse país que elege (e elege pacífica e serenamente) um operário e, com ele, a "esquerda" para administrá-lo em âmbito federal? Se tudo era uma porcaria, de onde saiu esse carismático Lula e esse partido fiel as suas promessas?
Ao lado disso, coloca-se a pergunta não convidada pelos tratados de ciência política: é possível governar sem amor? Sem patriotismo? Sem distinguir governo de regime, e governo e regime da própria sociedade com seus costumes e valores?
Sim, a auto-estima cresceu. E cresceu precisamente porque, pela primeira vez na nossa história, a esqueda decidiu jogar o jogo da democracia e aceitou as regras de uma convivência liberal fundada na transparência eleitoral, do revezamento do poder e no cumprimento da lei que vale para todos e não pode ser gerenciada por interpretações vitorianas da História.

Roberto DaMatta é antropólogo e autor, entre outros, de A Casa e a Rua (Editora Rocco, 2003)

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