por Sergio Miceli
O sociólogo Sergio Miceli esteve presente à reunião do Conselho Editorial da Revista E quando falou sobre seu novo livro, Nacional Estrangeiro, onde realiza uma inédita análise da produção pictórica do movimento modernista. A seguir, os principais trechos da conversa:
"Ao longo de minhas pesquisas concluí que era necessário enfrentar o problema do Modernismo de uma maneira mais frontal. Em vez de abordá-lo juntamente com a parte literária, era preciso examiná-lo no seu âmbito artístico. A cantilena básica em torno do Modernismo é de que o movimento foi uma expressão de brasilidade, uma expressão nativista. O livro vai numa outra direção, mostrando como o veio temático que está na atividade modernista é baseado na experiência imigratória. De acordo com essa análise, as telas ditas nativistas terminam por ser as mais fracas e menos interessantes. Ao passo que as mais inventivas são mesmo as que lidam com experiências sociais - que a pintura acadêmica não examinava e que, sobretudo, trazem para a cena cultural a experiência dos imigrantes. Lasar Segall e Anita Malfatti são usados no livro como exemplos dessa veiculação da experiência imigrante, enquanto que Tarsila do Amaral e Antonio Gomide exemplificam a experiência de aclimatação local de modelos da vanguarda européia - que é o outro tema do livro. Normalmente, tende-se a encarar a relação com a vanguarda européia como uma relação de reprocessamento e reajuste de uma linguagem a uma situação. O livro, outra vez, segue outro caminho, que inclusive pode ser explicado a partir do seu próprio título Nacional Estrangeiro. O termo 'nacional' remete à imigração, enquanto que a palavra 'estrangeiro' não aponta para a vanguarda, mas sim para a demanda do colecionador, dos mecenas e dos artistas locais em função da sua competência em relação à linguagem estética estrangeira, fazendo com que o mestre estrangeiro se aclimate a essa demanda, a qual consegue até influenciar a produção lá fora. Logo, o 'nacional' não é muito nacional, tampouco o 'estrangeiro' é muito estrangeiro. Na verdade, o segundo tem muito a ver com a demanda do primeiro.
Mestres e alunos Tarsila do Amaral, que foi aluna de Fernand Léger, em vez de trazer do mestre a sua parte mais inventiva e revolucionária, escolhe justamente telas e séries feitas para fregueses estrangeiros e que estavam mais aclimatadas ao que era possível no Brasil. A abertura do livro, que se chama Ao Gosto do Freguês, traz exatamente esse padrão, mostra que mestres como Pablo Picasso, Brancusi e Léger abriram frentes de trabalho para atender colecionadores da periferia - norte-americanos, brasileiros, argentinos etc. Ou seja, eles moldaram a sua produção em dois flancos, o mais avançado voltando-se para o mercado metropolitano, numa chave inventiva e revolucionária, de olho nos marchands e colecionadores europeus atuantes em Paris. E também criaram uma série de obras exclusivamente para atender ao gosto de colecionadores retrógrados, pessoas que não gostavam de arte moderna e que, na verdade, queriam dela uma espécie de ajuste/compromisso com aquilo que apreciavam. Com o Antonio Gomide acontece algo peculiar. Ele vem para o Brasil com um treinamento em expressionismo e simbolismo suíço e alemão, mas opta por se dedicar a uma produção decorativa para as casas da elite.
Na medida do possível O livro começa com um capítulo sobre esses mecenas, que construíram um sistema de instituições culturais que ajudaram os modernistas, mas não gostavam deles. É uma situação contraditória. Eles criaram a Pinacoteca, reformaram o Liceu de Artes e Ofícios e criaram o sistema de bolsas. Mas também iam às galerias e compravam os pintores antimodernistas que expunham em São Paulo no início do século. Ou seja, eram pessoas com forte atuação nesse mercado de arte emergente da época, que se tornava cada vez mais forte em São Paulo. Mas quando eles compravam uma tela modernista tratava-se, em geral, da mais conservadora possível. Eles nunca encomendavam um retrato a um modernista, por exemplo. E a única decoração doméstica encomendada por mecenas a um artista do movimento foi a cocheira que Dona Olívia Guedes Penteado converteu em salão modernista, por meio do projeto de reforma entregue a Lasar Segall. Dada essa situação, os artistas modernistas percebem, por sua vez, que não podem trazer ao mercado local um parâmetro produtivo - uma técnica, linguagem e estilo - completamente sintonizado com a vanguarda. Eles sabem que têm de submeter essas linguagens a uma série de reajustes que torne isso tudo palatável ao gosto local. Sendo assim, afora as dificuldades institucionais, as reações reticentes à arte modernista por parte dos mecenas configuram uma certa recusa cifrada das propostas e obras da vanguarda, estrangeira e local. Os mecenas e colecionadores não se reconhecem nas obras que estão sendo elaboradas pelos modernistas e, no limite, rechaçam tal produção. Nacional Estrangeiro mostra que essa relação só podia dar no que deu. O nosso Modernismo é uma arte que comparada com a vanguarda mais inventiva é, de fato, acanhada. Mas, vale dizer, foi o que se conseguiu fazer. E se eu não a achasse importante e se não reconhecesse o País e a sociedade nessa produção, não teria feito o livro."
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