A 14ª edição do Festival Internacional de Arte Eletrônica - Videobrasil comemora 20 anos da mostra que se mistura com a própria história da produção de vídeo no Brasil
O ano era 1983, início da adolescência tecnológica que vivemos hoje - período em que a ousadia da invenção ganhou mais importância que o conceito de utilidade. Na época, o Brasil presenciava os estertores da ditadura militar no discurso já enfraquecido do último presidente não-civil. Falava-se em eleições diretas, presos políticos retornavam ao País e a TV assumia a forma que conhecemos hoje: poderosa em sua onipotência e influente no comportamento do telespectador. Enquanto corriam os anos que fariam a diferença na história política do País, uma invenção recente passava a se democratizar como novo brinquedo tecnológico: a câmera doméstica de vídeo. O instrumento de registro de imagens em movimento chegava do exterior no momento em que se experimentavam os primeiros passos da pós-censura, com os criadores ainda tateando os limites de uma liberdade conquistada depois de décadas de embates. E é claro que a arte se encarregaria de incorporar o novo suporte, encontrando ali outro meio de expressão. "Em 1983 o cenário da produção de arte eletrônica na verdade não existia no Brasil", explica a jornalista Solange Farkas, curadora do Festival Videobrasil e diretora da associação que o promove em parceria com o Sesc São Paulo, entre outras instituições. "Sequer havia o termo video- arte. Historicamente, o vídeo é talvez a expressão mais jovem no cenário das artes." Fato natural se for observado que ele surgiu justamente em conseqüência da própria tecnologia. "No momento em que se descobriu a maquininha, a câmera de vídeo, os artistas logo começaram a testar as suas possibilidades", conta Solange. Em países da Europa e nos EUA, a "maquininha" já havia caído nas mãos ávidas dos artistas bem antes, final dos anos de 1960, começo dos de 1970. No Brasil, essa história se deu com um atraso de cerca de 15 anos, e num contexto diferente do que costumava a acontecer. "Era um momento cultural e comportamental no Brasil no qual havia uma preocupação política muito grande principalmente por parte das pessoas mais jovens, pessoas que estavam utilizando-se do vídeo naquele momento como um suporte alternativo à televisão ou ao cinema", segue a curadora.
Olhar Eletrônico O jornalista Marcelo Tas - criador do célebre repórter televisivo Ernesto Varela e hoje apresentador do programa Vitrine, na TV Cultura - foi um desses jovens que buscou no meio uma forma de expressão e começou sua carreira nesse período. "Naquela época, vídeo era uma palavra tão nova e excitante para nós quanto internet e blog é para a molecada de hoje", conta. "Todos nós estávamos nos reunindo em grupos: eram as produtoras independentes de vídeo. Existia um entusiasmo ao experimentar como contar novas histórias com a aquela nova tecnologia." Interessada justamente em mapear a produção dos artistas que começavam, então, a experimentar o novo suporte eletrônico, a Fotoptica, empresa do ramo dos aparelhos eletrônicos, passou a realizar, em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura, o Festival Fotoptica - de onde se originou o Videobrasil. "Ainda não havia naquele tempo muita gente fazendo vídeo por aqui", se lembra o hoje celebrado cineasta Fernando Meireles, diretor de Cidade de Deus e um dos primeiros a realizar experiências no gênero por meio de sua produtora na época, a Olhar Eletrônico. "Até por causa disso que a gente acabava ganhando um monte de prêmio: não tinha muita concorrência", diverte-se. "Mas o surgimento desse festival foi fundamental para todos nós. Eu até me lembro que o Goulart de Andrade foi assistir a essa 1ª edição, viu a gente lá e na semana seguinte estávamos todos trabalhando na Gazeta. Foi assim que a gente começou na televisão, graças a essa vitrine do Festival." Meireles enxerga hoje uma maior proximidade da produção de vídeo com o que se vê na TV, ainda que, segundo ele, haja uma forte separação entre o que se faz em caráter mais experimental e o que chama de uma linguagem "mais possível" para o meio. "Era o que a Olhar Eletrônico fazia na época: a gente tinha uns vídeos meio malucões e uma produção mais com começo, meio e fim."
O vídeo morreu Realizado durante nove anos no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, o festival cumpriu o papel de vitrine durante a sua primeira década de existência. Chegou um momento, entretanto, no qual o evento parecia ter perdido o contato com vigor que marcara suas edições iniciais. "Tinha chegado um momento de definição", retoma Solange. "As pessoas começaram a comprar muito equipamento, montar aparatos técnicos, fazer produtoras - foi uma febre de produtora independente na época -, mas o que se iria fazer com esse material produzido?" A curadora conta que as opções de escoamento da produção naquele período, já início dos anos de 1990, era o vídeo institucional, a publicidade ou o vídeo educacional. Mas, em meio a todo esse processo, a curadoria do festival continuava interessada mesmo em identificar as experiências mais pessoais e autorais. "Nós não queríamos ficar brigando por espaço na televisão ou no mercado de trabalho. Não era uma briga pelo suporte e sim por uma expressão." Foi nesse contexto que houve a primeira grande reviravolta na história do festival. Percebeu-se que o formato anual não dava muito tempo aos artistas para elaborarem obras que fossem além de um momento de competição. Tornava-se necessário um cenário para abrigar um festival que, por sua vez, pudesse servir como base de lançamento a uma produção constante e evolutiva. "Não havia nada acontecendo em paralelo que alimentasse a coisa toda, não havia um circuito, não havia uma sala de exibição, ou galerias que mostrassem isso - nem a Bienal trazia vídeo naquela época", conta Solange lembrando-se de uma chamada de capa da Folha de S. Paulo que chegou a decretar em letras garrafais: O vídeo morreu. "Aquilo me deixou totalmente abalada." Foi nesse momento que a equipe percebeu que os artistas precisavam de mais tempo para elaborar projetos consistentes. E uma retrospectiva do artista coreano Nam June Paik, considerado o pai da videoarte, vista na França, detonou todo o processo. "Aquilo me deixou sem fôlego", lembra Solange. "Eu me lembro que embora o festival já fosse realizado há nove anos, a partir daquela experiência o Videobrasil passou a ser feito como o conhecemos hoje." O Sesc São Paulo, por meio de sua unidade Pompéia, entrou na história do Videobrasil nesse momento de decisiva mudança de rumo. Em 1992, o Festival deixava o MIS porque havia crescido e necessitava de um espaço que oferecesse toda a multiplicidade de ambientes que exigia a nova produção - a essa altura já começando a exercer seu lado camaleônico e flertando com outras linguagens. "O vídeo, às vezes, precisa de uma situação que não é necessariamente a sala escura", explica Solange Farkas. "Ele se expressa das formas mais variadas: às vezes em espaços públicos, noutras dentro de uma galeria." E como o Videobrasil é uma plataforma que busca apontar tendências e necessita estar antenado às novas experiências propostas pelos artistas, tornou-se necessário um espaço maior, mais aberto e maleável. "E o Sesc Pompéia foi esse lugar para nós, e continua sendo." Hoje, o Videobrasil é um dos acontecimentos mais importantes do circuito - reconhecido como tal inclusive no cenário exterior. Mas, talvez por isso, ainda não seja hora de deitar sobre os louros da glória. "As coisas continuam um desafio, que é o de transformar a mentalidade das pessoas e inserir o vídeo no contexto das artes como aconteceu lá fora há muito mais tempo e muito mais cedo", destaca Solange.
O sul do mundo - Deslocamento é o tema da edição deste ano do Videobrasil e traz um olhar sobre a produção e a cultura de países que não integram o Primeiro Mundo Este ano, a Mostra Competitiva do Sul irá expor obras de artistas residentes nos países que a curadoria chamou de circuito sul - leia-se América Latina, África, Caribe, Sudeste Asiático, Oceania e Europa do Leste. Algo soou estranho nas contas geográficas? A curadoria explica: "Quando a gente fala em sul, trata-se de um recorte totalmente geopolítico", explica Solange Farkas, curadora do festival. "Não é geografia pura porque senão as pessoas vão achar que somos totalmente ignorantes, já que nós incluímos Europa do Leste etc.", brinca. "É mais essa idéia de eixo sul mesmo. Para pararmos de falar em países em desenvolvimento ou países subdesenvolvidos." Além da mostra principal, por assim dizer, o evento é composto de atividades paralelas que recheiam a programação e ampliam o público. A exemplo de outras edições do evento, esses panoramas internacionais têm por objetivo promover, por meio de performances, mostras de vídeos e painéis, o contato do público com curadores e artistas convidados para discutir as mais expressivas articulações em torno da própria arte contemporânea. "Atualmente, a produção de imagens oscila entre a possibilidade de revelar novas formas de mostrar a realidade e a 'imagem-clichê-transmissão ao vivo'", explica Eduardo de Jesus, coordenador dos painéis de debates em membro da comissão de programação do Festival, em texto escrito para a divulgação do evento. "Nessa configuração, as propostas artísticas parecem tomar, entre esses dois pólos, múltiplos caminhos e conseguem, algumas vezes, revelar a latência dos conflitos, os jogos de poder e controle, os circuitos de negociação de espaços publicitários, as mais inusitadas estratégias globais de controle e os novos processos socioculturais provocados pela quase onipresença das imagens." Através desses panoramas, o público poderá ver obras de Moçambique, Trinidad e Tobago, Hungria, Cingapura, Egito e México. Já em Narrativas Possíveis: Práticas Artísticas do Líbano, o objetivo é romper mais uma barreira: a produção e a cultura do Oriente Médio. "Eu trabalhei a América Latina durante um tempo, depois foi o tempo da África e teve uma hora em que vieram a Ásia e o Oriente Médio", volta Solange. "E Oriente Médio é aquele tabu para todos nós, muito mais que tudo. Somos uma cultura ocidental e temos uma visão da oriental totalmente deturpada. Então, chegar lá e perceber como as coisas são foi uma experiência que me deu uma desnorteada." Solange conta que, na época em que iniciou as pesquisas, viu que não havia tradição nenhuma em vídeo naqueles países. "Eu estive lá no começo dessa história, e hoje há uma produção impressionante e poderosa." O se vê sendo feito lá - e, melhor, poderá ser visto pelo público brasileiro a partir de 22 de setembro - não é o resultado de jovens videomakers com suas câmeras na mão e uma idéia na cabeça, como mandava o velho jargão do Cinema Novo. Mas sim filósofos, escritores, poetas e demais artistas usando o vídeo para "continuar fazendo a sua filosofia, sua literatura, sua poesia e sua arte", explica Solange. "E é genial. É o movimento de apropriação do vídeo mais impressionante que eu já vi. A força dessa produção reside na conotação do engajamento político, fundamentalmente. É claro que isso é muito mais contundente para quem está ali no fogo cruzado, mas interessante é que, por exemplo, quando chegamos à conclusão do eixo curatorial deste ano, que é Deslocamento, foi tudo muito baseado nessa experiência do Líbano - que é a questão central." O 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica - Videobrasil acontece de 22 de setembro a 19 de outubro. Confira no Caderno de Programação.
Por trás do monitor - Desde 1992, a Associação Cultural Videobrasil conserva a memória das produções exibidas nos festivais "É aquela coisa típica do Brasil: processos permanentes necessitam de uma ação além do evento, até para manter o próprio evento." Assim resume Solange Farkas o trabalho da Associação que realiza o festival Videobrasil junto com Sesc São Paulo. "Não dá para fazer o Festival durante uma semana, depois viajar e voltar 15 dias antes do outro", exemplifica. O que talvez poucas pessoas saibam - ainda menos gente que conhece o próprio Festival - é que o evento mostra, na verdade, o resultado de um trabalho contínuo. O próprio acervo da Associação, com sede em São Paulo, é herança desse trabalho e desse processo. "Você precisa estar em contato permanente com as obras e com o conteúdo para poder se alimentar", segue a diretora. "Esse processo de internacionalização do festival provocou essa consciência do tamanho da complexidade que envolvia um evento dessa natureza. Ele não tinha o apelo que tem um festival de música ou de teatro, muito pela aridez aparente - você não acha patrocinador para isso. E tornando-o internacional, ele ficou mais caro, numa hora em que nada existia. O Estado nunca incentivou esse tipo de coisa e a iniciativa privada - que tinha até aquele momento bancando o festival, que era a Fotoptica - caiu fora porque deixei de atender aos pré-requisitos necessários. E entendi isso perfeitamente." Solange explica que o segredo está no que ela chama de uma relação orgânica entre a produção e o circuito que a acolhe. "Foi o que aconteceu no mundo todo. Por isso existem os centros de mídia, lugares que possuem acervos de vídeo, livros relacionados ao tema e mesmo suporte técnico para a produção ou co-produção de algumas coisas. Mas principalmente para concentrar os artistas e criar situações permanentes". Além disso, houve a descoberta de que toda essa produção, na verdade, embora fosse poderosa em termos artísticos, era extremamente frágil como suporte, do ponto de vista de conservação. "A imagem acaba, esse é o lado triste do negócio", explica Solange. "A película (suporte do cinema), com aqueles banhos milagrosos pode ser resgatada, o vídeo acaba e pronto. É claro que a tecnologia digital veio basicamente para atender a essa necessidade, mas um acervo em vídeo, se não é em suporte digital, tem de ser remasterizado a cada cinco anos". Para agravar a situação, tal "novidade" veio justo quando a equipe do Videobrasil tinha em mãos nada menos que dez anos de produção. "Veja que abacaxi: eu com um bruta acervo e um bruta problema. E isso não me cabe, isso é memória do audiovisual brasileiro." A parceria com o Sesc São Paulo e demais instituições, entre elas a holandesa Prince Claus Fund, veio nesse momento de "sufoco", como define Solange. "O Sesc entrou justamente nessa hora. E graças a Deus que houve essa visão."
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