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Entrevista
Elza Soares

Postado em 01/09/2003

Uma das mais celebradas cantoras brasileiras fala de samba, de gravadoras e de sua constante renovação musical

Elza Soares é dessas figuras capazes de mostrar que a história pode ser construída com as próprias mãos. De família bastante simples, foi mãe antes dos 15 anos, viúva aos 18, perdeu um de seus sete filhos. Começou no coro do Teatro João Caetano, no Rio, estourou em 1959 com Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues, encantou com sua potente voz compositores como Tom Jobim e Vinicius de Moraes e teve sua carreira internacional lançada por ninguém menos que Louis Armstrong. Voltou a enfrentar período difícil quando passou a viver com Mané Garrincha, quando até Pelé deu declarações recriminando a relação. Diante de tais percalços, Elza Soares não titubeou e continuou construindo uma das discografias mais ricas da moderna música brasileira. Ano passado lançou Do Cóccix até o Pescoço, CD independente comercializado em bancas de jornais. Foi de novo outro sucesso. A seguir os principais trechos de sua entrevista exclusiva à Revista E, nos camarins do Sesc Pompéia onde se apresentou ao lado do maestro Laércio de Freitas.

Como foi a experiência desse último CD? Ele nasceu independente, longe das gravadoras, foi vendido nas bancas...
Achei ótimo. Hoje o cantor deve ser independente, porque assim temos como inspecionar, estar mais próximo ao nosso trabalho. Tenho impressão de que as grandes gravadoras estão se tornando mais distribuidoras do que qualquer outra coisa. O artista independente leva muito mais vantagem. Isso começou por um trabalho do Lobão, que foi nota mil e abriu a nossa consciência da liberdade de intérprete.

Nesse último CD, que nasceu sem pressões comerciais, como foi realizado o trabalho? Como é poder fazer o que vier à cabeça sem tantas premências de mercado?
Tive ao meu lado José Miguel Wisnik, que é um intelectual maravilhoso. Ele esteve nesse trabalho comigo e me deu toda a liberdade para cantar. É isso que quero, me sinto mal com imposições, não poder fazer o quero com a voz que Deus me deu. Estou compondo agora com meu marido para um trabalho novo, que se Deus quiser chegará o mais rápido possível e que será independente.

O CD vai para as bancas como o anterior?
Não sei se irá para as bancas, mas é um trabalho independente. Estamos aqui em São Paulo fazendo um grande trabalho de conscientização, porque acho que os artistas brasileiros sofrem muito por não serem capazes de tomar conta de si mesmo. É necessário que comecemos a cuidar de nós mesmos.

Como é montar um repertório tendo toda a liberdade? Quando se faz um trabalho para gravadora há toda uma ambientação comprometida com o grande retorno financeiro, comercial.
Não é difícil porque esse País é muito rico em termos de composição. Arnaldo Antunes, Zé Miguel Wisnik, Caetano, Jorge Ben... Acabamos fazendo um CD riquíssimo, fiquei muito apaixonada por Do Cóccix até o Pescoço. Dentro de uma estrutura comercial, o trabalho é mais podado... Atualmente a imagem de neguinha, cintura fina e bunda grande que é sambista já não faz mais parte do meu contexto. Quero liberdade para cantar, ousar e usar a minha voz.

A partir de que momento você sentiu que tinha força para ser independente?
Já comecei cantando assim. Fui roqueira no Madame Satã (casa noturna que fez muito sucesso no circuito underground dos anos de 1980 em São Paulo), usava black-power, o título do show era Vingança Será Maligna, que era uma homenagem ao personagem do Chico Anysio. Sempre tive muita disposição de me libertar daquilo que me fazia mal. Eu me pergunto por que um jogador de futebol ganha tanto dinheiro e um cantor não? A música está presente desde o nascimento até a morte. Que Deus proteja quem está ganhando bem, mas que Ele olhe também um pouco para o lado da arte, dos produtores, dos patrocinadores. Por que a Nike também não nos fornece tênis? Se eles me dessem, eu cantaria de tênis. Vamos começar a procurar os patrocinadores do futebol para ver se eles nos patrocinam também. A gente canta uniformizado, não faz mal.

Podemos dizer que está havendo uma renovação na MPB?
Está havendo uma boa renovação. Veja só Marcelo Yuca, por exemplo, é um grande compositor. Acho que a juventude de hoje tem uma cabeça muito brasileira de conquistar o País, de buscar o que é dele. A maioria das coisas que vejo dessa garotada é muito boa. Evidente que há exceções, mas é pouca coisa.

Parece que é uma geração que conseguiu fazer um trabalho brasileiro sem ficar restrito ao samba...
É isso. Chico Science já dizia que era necessário renovar. Tudo tem que mudar, evoluir.

Você costuma transformar completamente algumas canções. Como é esse processo de colocar e tirar elementos?
É como um parto. Tenho que sentir e colocar pra fora. Tenho que criar. O que é uma pessoa que não cria? Dá para fazer com uma música o que bem se quer. Fiz até tango com Luiz Melodia.

Além de uma belíssima voz, você tem a enorme capacidade de interpretar imprimindo sua personalidade à canção. Você se considera uma grande cantora?
Não sei se sou uma grande cantora ou uma louca cantora. Tenho atitude, não tenho medo do novo. Por exemplo, gravei o Criança Esperança e não podia interpretar como o Caetano faria. Fiz a minha interpretação.

Mas você tem um método? Diz que tem o seu jeito, mas como chega a esse jeito?
Juro que não sei. Vem na hora, nasce. Posso pegar um samba e fazer uma ópera e vice-versa. Pegar uma Maria Callas e fazer uma Elza Soares. Sem nenhum medo de errar.

Na hora de fazer isso, você se apóia mais na letra ou na melodia?
As duas coisas. Uma música perde muito se uma das duas partes for ruim. Teve uma época que o Brasil perdeu muita credibilidade porque as letras eram tristes, terríveis. Hoje a coisa enriqueceu, temos que falar coisas boas.

Como você enxergou na música Fadas, do Luiz Melodia, uma brecha para colocar Piazzola?
A melodia do Fadas tem muito a ver com o bandônion, que é o instrumento do tango. Tive muita felicidade de cantar ao lado do Piazzola, que era um compositor supermelódico. O Fadas tem tudo a ver com esse traço do Piazzola.

Você interpretou uma música do Mamonas Assassinas no Fantástico. Como foi que definiu aquela roupagem para a música?
Criamos uma bossa nova em cima da música do Mamonas. Adorei fazer isso.

Você mistura o trabalho de compositores jovens e de outros mais velhos nas suas canções. É proposital? Ao mesmo tempo se percebe que você está montando toda uma história.
Tem que ser assim. O Brasil ficou muito tempo sem formação nenhuma. O público precisa conhecer os artistas. Eu mostro, eles acabam vendo e absorvendo.

Você recebe muitas fitas de compositores?
Bastante.

Ouve todas?
Quando tenho tempo, ouço.

E o que tem achado?
Acho que está muito variada. É essa troca de informações que faz a paz.

Você ainda tem muita ligação com o samba? Freqüenta quadra de escola de samba? Afinal, você ao longo de sua carreira fez vários discos desse ritmo.
Nunca fui freqüentadora assídua de escola de samba. Todo o mundo sabe que sou Mocidade Independente de Padre Miguel, mas geralmente só assisto aos desfiles. Tenho um respeito enorme pelos compositores, pois o samba é minha raiz. Foi pela minha origem que pude fazer o que fiz e que faço. Não dá para esquecer o compositor de escola de samba. Mas a minha base aglomera também vários outros elementos. O negócio é ter consciência de como se traga isso. Vivo em um País que tem Zeca Pagodinho, que é fantástico e que ama Billie Holiday ao mesmo tempo. Nasci em Padre Miguel, já substituí Ella Fitzgerald e fui a primeira cantora a puxar samba na avenida. Graças a Deus, minha vida musical é muito rica. Foi um privilégio substituir Ella Fitzgerald e ter sido descoberta no exterior por Louis Armstrong. Cara, é aquela história "o que é que a baiana tem?".

Como será seu próximo disco?
As pessoas cobram de tudo. Uns querem que eu grave chorinho, outros que eu grave jazz, outros que eu grave blues. É uma loucura. Se fosse atender a todos os pedidos, teria que me dividir em dez.

Como é seu cotidiano?
Adoro malhar, mantenho até uma academia em casa. Detesto dormir, até porque vai chegar um dia em que dormiremos eternamente, então, durmo só quatro horas. Não ensaio sempre, só ensaio quando tem show. Nem sequer canto em casa. Lá esqueço que sou cantora, sou a Elza que adora cozinhar e ter uma comidinha gostosa para quando meu preto chegar. Gosto de ficar bem à vontade, de camiseta rasgada, e também de me dar ao luxo de usar meu salto 15. Sou uma criatura totalmente normal, só que quando entro no palco gosto de ser anormal.

Quem foram as cantoras que resultaram na Elza Soares?
Isso é muito difícil... Para citar alguns nomes, poderia falar de Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Silvinha Telles, que foi quem me descobriu. Grandes compositores de fora também trouxeram alguma influência, mas sobretudo foram os nossos músicos que me influenciaram.

Dos universos da música brasileira, quais você acha que têm mais a cara de Brasil?
A bossa nova, que com sua poesia atravessou fronteiras, e evidentemente as escolas de samba que são aquela loucura, que é a sociedade falando, ali não tem cor, todo mundo está junto, é igual. Ali não tem aquela história de a carne mais barata do mercado.

O que você acha do atual momento do samba?
Não quero falar do samba. O samba continua sendo o samba, só isso que tenho a dizer dele.

Quem é o compositor que você não gravou e gostaria de gravar?
Quando a gente quer cantar alguém, tem sempre um pedacinho para a gente.

A letras das músicas atualmente a deixam mais impactada do que há 30 anos?
Não faço comparações. Acho que eles estão ótimos para dizer o que pensam. Há 30 anos você podia dizer algumas coisas e outras não.

Na sua opinião a música brasileira de qualidade consegue peitar a indústria que anda nivelando a música brasileira a um estágio complicado de qualidade?
Não quer peitar nada não, o que é bom fica, o que não é vai passar.

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