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Doutor em Brasil

Postado em 16/12/2003

As idéias de Celso Furtado, lembrado para o Prêmio Nobel

MARIA HELENA PASSOS

Sempre doce e contundente em seu discurso, o economista Celso Furtado, aos 83 anos, não se poupa ao discorrer sobre o cerne de sua produção intelectual: o Brasil. Entrevista sua é oportunidade garantida de saber o país em seu conjunto e vê-lo através do tempo.
Filho de família abastada, ele nasceu no interior da Paraíba. Estudou no Recife, formou-se em direito no Rio de Janeiro e serviu na FEB, na Itália. Doutorou-se em economia na França, dissertando sobre a economia colonial, representou a ONU na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Destacou-se como teórico estruturalista e lecionou na Inglaterra. Concebeu a Sudene, presidindo-a no governo João Goulart, do qual seria ministro do Planejamento.
Cassado em 1964, Furtado exilou-se: lecionou no Chile, Estados Unidos e França. Embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Européia até 1986, volta a Brasília ministro da Cultura do governo José Sarney. É "imortal" da Academia Brasileira de Letras há seis anos. Hoje, apenas lê e escreve. Pela primeira vez, foi indicado para candidatura ao Prêmio Nobel em economia. Vive entre Paris e o Rio, onde concedeu esta entrevista. O texto "Indicadores se degradaram", na seqüência da entrevista, é um resumo da visão de Furtado sobre o Brasil atual.

Problemas Brasileiros – O senhor está convencido de que o governo brasileiro não quer a Alca?
Celso Furtado – É assunto amadurecido pelo governo. Conversei com Lula sobre isso, enviei-lhe notas por escrito. A Alca é questão que afeta a soberania. No mundo de hoje, se você a perde, é quase impossível recuperá-la. Interessante observar como este país tem a tradição de preservá-la. Conseguiu manter sua unidade com todas as forças dispersivas que havia em sua cultura. Isso deriva de uma tradição herdada dos portugueses: a noção de Estado, preservada em toda a história brasileira. Quando a soberania corre risco, parece que desperta um instinto de sobrevivência. No mundo de hoje, é difícil explicar um Brasil tão vasto, com tantos recursos, sem nenhum movimento de dissidência, tão unido...

PB – Dizem que sua obra redescobriu o Brasil como esperança de nação. Sua esperança segue vigorosa?
Furtado – Sim. Formar uma nação no Brasil foi trabalho muito grande. A população era composta de uma massa de escravos, sem acesso à cidadania. Quando a escravidão acabou, restou uma sociedade civil esbagaçada, que se reconstituiu aos poucos. Na horda imensa de imigrantes europeus que aqui chegaram, cada um olhava para o seu lado. Ainda assim, éramos 17 milhões no início do século e hoje somos 170 milhões. Uma parte da população foi compreendendo que tinha de compartilhar com a outra. Se, no passado, eu redescobri o Brasil como esperança de nação, hoje, ele é uma nação.

PB – Algo o surpreendeu quando o IBGE divulgou o perfil de cem anos de Brasil?
Furtado – Conhecia muito esses dados porque passei 50 anos estudando o Brasil. O espantoso é o contraste em um país que foi dos que mais cresceram e dos que mais acumularam miséria ao longo do século. A surpresa agradável foi ver a repercussão desse volume do IBGE. Talvez indique que uma tomada de consciência seja possível. Quando falávamos, há 40 anos, da existência desse contraste absurdo, ninguém admitia discuti-lo. Dizia-se que ele melhorava. A verdade é que a renda per capita crescia, pois parte importante da população migrava para a cidade e melhorava de vida.

PB – Uma melhora apenas aparente?
Furtado – A renda do migrante aumentava muito porque ele achava trabalho na cidade. Ao se olhar a média do país, concluía-se que a renda estava melhorando. Mas o que de fato acontecia era que essa população que se deslocava freava o crescimento da renda urbana, da renda nacional. Expliquei isso há muito tempo. Como se viu, a população pobre foi ficando cada vez mais pobre.

PB – Era um pouco como nivelar por baixo?
Furtado – De certo modo, sim.

PB – Como entender um governo Lula que cumpre à risca exigências de credibilidade externa e é moldura para recessão e desemprego tão alto?
Furtado – Não conheço as motivações por detrás das decisões do governo. Como observador, constato a situação, não posso julgar. As razões dos que tomam decisões – e eles as devem ter – não são explicitadas. É de se desejar que explicitem: aonde querem chegar?

PB – Como o governo deveria perseguir o desenvolvimento?
Furtado – Hoje, desenvolvimento já não é mais a mesma coisa. O Brasil cresceu muito em cem anos, mas não se homogeneizou. E só há desenvolvimento com homogeneização da população. Deu-se o contrário. Até há pouco, quem ia do campo para a cidade melhorava de vida. Urbanização era melhoria de vida. Hoje, nem isso. Essa população não encontra mais emprego. Acumulou-se uma massa enorme de descontentes nas cidades, provocando a criminalidade, a violência e tudo o que vai inviabilizando o país. Se a situação no passado era reprovável, hoje é insustentável. Caminha para tensões sociais maiores.

PB – Qual o grau real de fragilidade da economia brasileira, comparado com há 40 anos?
Furtado – Tudo aumentou de dimensão. Mas não é por aí que se deve observar a coisa. Mesmo agora, com a política de superávit fiscal do governo Lula, o Brasil demonstra que seu problema fundamental é social e não econômico. Não é crescimento econômico. Não é desenvolvimento só. É desenvolvimento social. E é preciso não confundir as coisas. A situação grave decorre de uma política anterior à do atual governo. O Brasil privilegiou a idéia de criar um saldo positivo no balanço de pagamentos. Isso obriga a população a se privar de muita coisa. Não creio que o país precisasse ter superávit fiscal tão grande. O que importa é reduzir o desperdício de recursos, ao se pagar o serviço da dívida externa.

PB – O senhor defendeu, há pouco, renegociar a dívida externa. Por quê? A interna também?
Furtado – Sim. Para buscarmos uma normalidade que permita ao país voltar a crescer, sem se endividar mais, e modificar o perfil de seu desenvolvimento. Para que se possa falar em desenvolvimento sem preocupação com a renda per capita. Para mudar de qualidade a natureza da política econômica. E levar o Brasil por outro caminho.

PB – Economista, o senhor já foi homem público. Há respaldo político para renegociar dívidas?
Furtado – Não havia quando a opinião pública estava convencida de que o Brasil caminhava para uma crise econômica maior. Desde que se demonstrou poder controlar a situação com política mais inteligente de exportações e uso das divisas para acumulação de reservas, como se fez ultimamente, o Brasil se fortaleceu muito. Havia um descrédito muito grande no início do governo Fernando Henrique, que mudou a política econômica de forma abrupta. Bem ou mal, até ali, o Brasil sustentara superávit na balança comercial. Começou a ter déficit. A dívida, hoje reajustada a preço de mercado, cresceu geometricamente. Ficou insustentável. A externa rondava US$ 100 bilhões, foi para mais de US$ 200 bilhões. Diante da liquidez internacional farta, o país se endividou mais. Foi quase uma década de desequilíbrio flagrante. O mercado externo passou a prever o desastre brasileiro.

PB – A bola da vez...
Furtado – Mas, nesse momento, mudou o governo. Em 2003, demonstrou-se que a situação catastrófica decorria da política anterior, pró-importação e antiexportação. Diante do patrimônio nacional, o país era uma imensa dívida. Ora, nenhum país sai disso sem mudanças drásticas. E elas têm de começar por uma moratória negociada e firme.

PB – A despeito de o Brasil ter demonstrado que pode pagar a dívida?
Furtado – Sim. Fica mais fácil renegociá-la.

PB – Que sentido faz o novo acordo com o FMI a esta altura, então?
Furtado – Não é dinheiro para usar, mas para evitar ficar a descoberto do dia para a noite.

PB – O Brasil precisa mesmo disso?
Furtado – Só quem está no governo é que sabe.

PB – Como sair da armadilha que, para garantir estabilidade, mantém os juros altos, contendo o crescimento econômico, que, freado, passa a ameaçar a própria estabilidade?
Furtado – É dilema que os fantasistas que especulam no mercado financeiro criaram. Uma ameaça virtual. O ano de 2003 mostrou que o país pode de fato recuperar seu equilíbrio.

PB – É uma armadilha falsa, então?
Furtado – Não se sabia que era falsa. Demonstrou-se que era. E sem apelar ao mais dramático, que seria a moratória não consentida. Quando propus moratória, deixei claro que ela tem de ser negociada.

PB – Falsa ou não, a armadilha subsiste?
Furtado – Quebrar um país, possa ele pagar ou não sua dívida externa, é possível.

PB – Então, como romper essa pseudo-armadilha?
Furtado – Sem pretender interpretar a política do governo, pois ela não foi explicada completamente – as atas do Banco Central não mostram quase nada, e quem se interessa pelo Brasil esperava uma explicação mais clara –, nós a aceitamos de boa-fé. O que se pensa é que vai chegar um momento em que toda a encenação de um perigo tão grande já não será necessária....

PB – O senhor acredita nisso?
Furtado – Dependendo do interlocutor no governo, tem-se a impressão de que a situação do país é muito mais frágil do que se imagina de fora. Difícil formar um juízo.

PB – Historicamente, o Brasil nunca teve dinheiro. Financiou sempre seu desenvolvimento com atitudes políticas às vezes qualificadas de corajosas – caso de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek –, e não com o equilíbrio do caixa. A coragem política é trunfo esgotado?
Furtado – Já se esgotava antes mesmo da eleição do governo Lula. No fim do século 19, pela primeira vez o Brasil discutiu amplamente com os credores sua dívida externa: tinha aliados externos no mundo bancário e pôde contar com a divisão dos credores. Para tratar com eles, já não basta coragem. Ela pode parecer insanidade.

PB – Como renegociar uma dívida externa em tal contexto?
Furtado – Parar de contar com o endividamento. Dispensar a ajuda de curto prazo. O seguro do acordo com o FMI tem um preço. Coragem política não basta, é preciso construir alianças externas. O que não é fácil: a Argentina teve de entregar os pontos. Governar o Brasil hoje é bem mais difícil do que nos tempos de Vargas ou Juscelino.

PB – É mais simples negociar primeiro a dívida interna?
Furtado – Não sei. Todos reconhecem ser a dívida externa um problema sério. Já no caso da interna, o consenso inexiste até aqui.

PB – O Brasil sempre se valeu de mão-de-obra barata para atrair capital. Que diferencial possui hoje diante do investidor internacional que arbitra juros, salários e fábricas?
Furtado – O país tem recursos enormes. Surpreendente é sua constante inclinação por optar pelo endividamento externo, como se fosse o caminho mais fácil. Dizem que a negociação que construiu nossa dívida externa encobriu muita desonestidade desde dom Pedro I. Ninguém sabia o que se negociava. O que se pagava em comissões era secreto. Hoje em dia, há uma opinião pública de olho. Temos de perseguir outro destino. É outra a composição de forças. Definido pelo consumo da grande massa da população, desenvolvimento no Brasil é bem mais simples que em outras partes do globo. É trazer os 50 milhões de carentes à condição de consumidores.

PB – O senhor sempre se mostrou admirador do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Ele tem defeitos?
Furtado – O MST expressa a massa da população expulsa do campo e sem emprego na cidade. Uma situação inédita. No passado, o crescimento empregava em larga escala e amenizava o problema do êxodo rural. Hoje, não adianta crescer simplesmente. Mas há muito o que fazer – e sem custos grandes. A construção civil: o país tem um déficit habitacional de 10 milhões de moradias. Só aí se pode gerar 1 milhão de empregos. Empregos rurais também podem solucionar parte do problema. Muitas atividades com tecnologias simples são complementares à agricultura: pequenas indústrias semicaseiras descentralizariam a indústria rumo ao campo.

PB – Uma reforma agrária no século 21 difere da defendida por Francisco Julião nos anos 60?
Furtado – Julião tinha de superar a quase-escravidão, uma chaga social no nordeste. Bem ou mal, hoje há uma certa presença do governo no setor rural. O problema atual é muito mais sério porque não se criam mais empregos. A reforma agrária do século 21 passa pela descentralização das atividades econômicas. Mas também é preciso aceitar uma política de introdução de novas tecnologias que não onerem o país em divisas. Parar de buscar tecnologia de ponta. A facilidade de crédito para mecanizar o campo só acentuou o desemprego. Endividado e tão dependente de exportação, o Brasil investiu fortemente em tecnologia de ponta, como fez na indústria automobilística durante dez anos, para ao final criar desemprego com a ajuda dos cofres públicos.

PB – A reforma agrária de hoje não envolve mais a posse da terra?
Furtado – Não se pode começar por aí. O problema do Brasil é estrutural. A terra foi sempre distribuída muito desigualmente. A política atual, que o governo quer mudar, impõe custo muito alto para a desapropriação em acordos judiciais. A posse da terra é bandeira inacessível no Brasil, e o MST luta apenas por emprego, eis a realidade.

PB – A Sudene recriada já fez alguma coisa positiva?
Furtado – O que vi foi um grande desejo de modificar o quadro. Porém o problema do nordeste é mais grave do que no resto do Brasil. Lá, a posse da terra é mais concentrada. Não vejo solução a menos que o país decida enfrentá-lo como prioridade, o que depende de enorme movimento entre a opinião pública.

PB – O Fome Zero agora fala em renda familiar. Caminha bem?
Furtado – Sim, mas ocupa espaço pequeno. Sua clientela é a população que já foi marginalizada e vive abaixo da linha de pobreza. Dá tão pouca coisa a essas pessoas que é de sentir pena. Com tão pouca ajuda, querer que essa gente se instale... É um projeto incipiente pois não se liga a um planejamento de desenvolvimento social e econômico maior. No nordeste, há regiões onde toda a população é assistida. Depende de que lhe estendam a mão para poder viver...

PB – O governo Lula está libertando o país da obsessão economicista que o senhor condena?
Furtado – Tem tentado. Se não se sai do economicismo, perdem-se os aliados. Dar de comer, tendo quem financie de fora, é muito bom. Dura algum tempo. Mas que futuro é esse? Assistencialismo é política de curto prazo. Só se legitima no longo prazo criando outra forma de aliança. Minha impressão é que a tendência será mudar o estilo de civilização.

PB – Como assim?
Furtado – Nossa civilização está marcada pelo critério de racionalidade micro. É preciso chegar a uma percepção macroeconômica e macrossocial. Na Europa, induziu-se a população a passar oito anos, e não quatro, na escola. Uma mudança enorme que minorou a pressão da oferta de mão-de-obra. No Brasil, a parcela que tem um nível de vida alto deve pagar muito mais para promover a mudança da distribuição de renda.

PB – A reforma tributária seria um instrumento?
Furtado – A que está em curso fica a anos-luz de qualquer coisa que promova redistribuição de renda. Não toma conhecimento dos enormes dividendos dos bancos. Como podem se apropriar de parte tão grande da renda nacional enquanto ela murcha?

PB – Qual o impacto da reforma previdenciária?
Furtado – A previdência no Brasil está montada sobre uma ficção: ignora que transfere a perda para a frente. Como se o futuro nos reservasse um mar de recursos, quando sabemos que pode ser pior. A reforma previdenciária ameniza um pouco esse quadro, mas é de curto prazo. No imposto de renda, não há dúvida de que há uma parcela da população que paga mais do que deve e pode pagar. Mas há uma fração de privilegiados pagando muito menos do que deveria, e não se fala disso. Alegam que tributá-la mais aumentará a evasão fiscal, como se fosse impossível coibir ladrões. Por princípio, eles são impunes porque são poderosos. É ponto pacífico que, dentro do sistema fiscal, cabem ladrões!!

PB – Intocáveis, não é? Qual o maior risco que o governo Lula corre até 2007?
Furtado – O fato de o governo, bem ou mal, ter dado ênfase à questão da fome pesa muito a seu favor, mas tudo dependerá da retomada do emprego. O governo pode se beneficiar neste primeiro trimestre de 2004 do princípio de retomada do crescimento nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. Em 2004, poderá gerar empregos a partir da construção civil. Mas precisará de coragem e decisão para aproveitar a brecha e enfrentar a vigilância do FMI na pequena contabilidade, assumindo explicitamente uma política de criação de emprego. Atrás da construção civil, vem a indústria alimentícia. Reforça-se o mercado interno, expandem-se as pequenas indústrias. E a situação da renda pode mudar.

PB – Recentemente, saíram dois livros a seu respeito. "Navegação Venturosa", do sociólogo Francisco de Oliveira, e "Celso Furtado: Um Retrato Intelectual", do sociólogo mexicano Carlos Mallorquín. O primeiro inclui críticas a posicionamentos teóricos seus. Diz, por exemplo, que na sua produção não aparecem os antagonismos sociais de que qualquer formação social é constituída. O que o senhor achou deles?
Furtado – O Francisco pensa de uma forma diferente da que eu havia concebido. Não se trata de ter razão ou não, mas de opção. É crítica construtiva. O Mallorquín é quem mais estudou minha obra no exterior até hoje. Há uma espécie de tomada de consciência de que muitos problemas foram deixados de lado no Brasil. E as pessoas descobrem que eu tratava deles lá atrás. Fico admirado com esse interesse atual, maior que no passado. É verdade que, hoje, mesmo quem não quer ver a questão social não dá dois passos sem se deparar com ela. Intriga a mim que eu tenha tido uma abertura teórica muito ampla desde o início. Não imaginei que fosse enveredar por conta própria por novos caminhos, pensando para além das linhas estabelecidas pelos mestres. Mas sempre quis mostrar que os problemas do Brasil eram diferentes. Como aceitar tanta abundância e, ao mesmo tempo, um atraso social tão grande? Falava-se em raça inferior, diziam que era o sol... Logo percebi que as classes dominantes eram incapazes de ter um projeto para o Brasil.

PB – Mudaram?
Furtado – Participei de um projeto, o da industrialização. Vencemos quem defendia um país essencialmente agrícola, e ele cresceu. Mas esse não era o projeto da elite. Foi um tiro que saiu pela culatra. Ela era contra, mas não conseguiu impedir projetos concretos, específicos. Juscelino, Jango e Jânio Quadros: todos seguiram essa política. Depois, o projeto foi abandonado. Lutamos por estabelecer um sistema industrial, que demandava apoio público a fim de evitar a fragmentação. Ao final dos anos 40, o Brasil era a quarta ou quinta indústria da América Latina, uma década depois, a primeira, tal sua vocação para a industrialização... Hoje, o que se coloca é exatamente isto: voltar a pensar o Brasil como sistema econômico.


Indicadores se degradaram

"Até os anos 80 do século passado, a elevação da renda per capita se traduzia, quase necessariamente, em homogeneização social. Hoje, isso já não ocorre. O crescimento da renda per capita pode vir acompanhado de degradação nas condições de vida de grande parte da população. Por outro lado, uma utilização mais inventiva dos recursos naturais na economia de subsistência pode traduzir-se em melhora das condições de vida do conjunto da população. Pode-se mesmo conceber a hipótese de que haja desenvolvimento com declínio da renda per capita.

O caso do Brasil é exemplar. Entre os anos 50 e 80 do século passado, a economia brasileira se desenvolveu de forma excepcional. Com efeito, a força de trabalho, formalmente incorporada às atividades produtivas, alcançou 56% do total virtual. Ora, no último quarto de século, os indicadores sociais mais significativos se degradaram. Hoje, mais de 50 milhões de brasileiros são carentes do essencial para viver, sendo que mais de 10 milhões são classificados como famintos. O déficit de moradias se aproxima de 7 milhões de unidades e o total de desempregados se acerca de 12 milhões.

As forças que operam no sentido de agravar as tendências estruturais – a globalização dos sistemas produtivos e o caráter poupador de mão-de-obra das inovações tecnológicas – exigem ação corretiva do Estado nacional. E não tenhamos dúvida: será no plano internacional que se darão as confrontações decisivas."

Celso Furtado, novembro de 2003


Louros de Estocolmo

Premiação da Academia Sueca rende fama, dinheiro e sucesso. Economistas foram incluídos apenas em 1969

"Poucas coisas na vida dão prazer tão intenso quanto o Prêmio Nobel", avaliou Paul Anthony Samuelson, anos depois de laureado pela Academia Real Sueca de Ciências, em 1970, com US$ 1 milhão em coroas, "por elevar o nível da análise da ciência econômica".

Economista cuja qualidade da produção teórica rivaliza com a de seus livros-textos, que há 57 anos ensinam três gerações com os 4,2 milhões de exemplares de Economics em 46 idiomas vendidos no mundo, Samuelson inaugurou o rol de 28 acadêmicos norte-americanos entre os 53 que, desde 1969, receberam o Nobel de economia em Estocolmo, patrocinado pelo Banco Central da Suécia.

Criado em 1969, o prêmio em economia é tardio. Surgiu 68 anos depois que Alfred Nobel o instituiu em física, química, medicina ou fisiologia, literatura e paz. Agracia o que supostamente há de melhor nesse ramo acadêmico. As escolhas, porém, espelham mais que isso, influenciadas em alguma medida pelos contornos políticos de seu tempo, refletidos na biografia dos laureados e expressos no conteúdo e utilidade do trabalho premiado.

Fora o dinheiro, o Nobel rende notoriedade que, por vezes, amplia oportunidades profissionais, detona em alguns ousadia para enveredar por novos campos de pesquisa e confere o enorme prazer citado por Samuelson. "Descobri que bastam poucos dias de uso para que uma pessoa se torne dependente de ter um chofer", resumiu o economista, que, até 2001, ainda dirigia o próprio veículo de casa para seu gabinete no Massachusetts Institute of Technology (MIT), em Cambridge, nos Estados Unidos.

Até hoje, nenhum latino-americano conquistou tal honra. Completam o rol cinco britânicos – inclusive Clive Granger, especialista em econometria premiado em 2003 –, dois suecos, dois holandeses, dois noruegueses, dois russos, dois franceses, dois canadenses, dois israelenses, um austríaco, um italiano, um húngaro, um alemão, um antilhano de Santa Lúcia, ao tempo colônia britânica, e um indiano.

Note-se que 40 dos 53 premiados trabalhavam em universidades norte-americanas quando receberam o Nobel. Duas instituições suecas, duas alemãs, duas britânicas, uma norueguesa, uma holandesa, uma russa, uma francesa empregavam os demais laureados, e Cambridge, na Inglaterra, abrigava três deles. Nenhuma supera a Universidade de Chicago, com nove premiados. Entre eles, Milton Friedman, referencial da escola monetarista.

Premiado em 1976, Friedman, hoje com 91 anos, não foi politicamente correto ao falar sobre o Nobel: "Estou mais interessado no que meus colegas economistas dirão de meu trabalho daqui a 50 anos do que naquilo que sete suecos podem dizer hoje", declarou. Mais tarde ele afirmou que falara como cidadão, não como cientista.

Os "sete suecos" são o Comitê Nobel da Academia, que acolhe indicações para o prêmio em um processo que se pretende sigiloso como o da eleição de um papa. Sobre candidatos indicados, avaliações por eles recebidas e opiniões a seu respeito emitidas, nenhum dos 350 integrantes suecos da Academia pode falar no prazo de 50 anos. "Não sei se é bom ou ruim, mas é a regra estabelecida desde 1901 pela Academia", disse a Problemas Brasileiros Torsten Persson, presidente do comitê desde 2002 e diretor do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais em Estocolmo.

Até hoje, a Academia teve 1.739 membros, 1.450 dos quais suecos. Atualmente, reúne 514 integrantes, dos quais 164 são estrangeiros. "Jamais houve um brasileiro entre eles", diz Persson. O comitê define acadêmicos e instituições de todo o mundo com direito a apresentar candidaturas até fevereiro de cada ano. Somente nobéis premiados, professores de universidades nórdicas, acadêmicos com seis anos de ensino em instituições selecionadas pela Academia, seus próprios membros e cientistas especialmente convidados podem sugerir nomes.

Pré-selecionadas a partir de avaliações encomendadas a especialistas pelo comitê em todo o mundo, as candidaturas são discutidas pela classe de ciência social e economia da Academia – um rol de 47 acadêmicos, dos quais 18 têm menos de 65 anos. Até outubro, os 350 suecos membros da Academia elegem o premiado. E todo 10 de dezembro, pompa e circunstância emolduram a entrega do prêmio em Estocolmo.

"Tratamos de premiar o que há de melhor. Se os laureados se concentram nos Estados Unidos, isso reflete a realidade da ciência econômica", resume Robert Eriksson. Sociólogo que integrou o comitê entre 1996 e 1999, ele saudou na Academia o Nobel de 1998, o indiano Amartya Sen, diretor do Trinity College da inglesa Universidade de Cambridge.

Sen é caso raro. Escapa ao espectro de laureados do mundo desenvolvido. O outro foi o do negro Sir Arthur Lewis, o antilhano co-premiado em 1979 quando lecionava na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, ao lado de Theodore W. Schultz, da Universidade de Chicago. Foram os únicos que se ocuparam de desenvolvimento econômico com ênfase nos problemas dos países em desenvolvimento.

Apenas Sen foi premiado por investigar a economia do bem-estar. "Não ganhei porque provei, no início da carreira, que a fome na Índia nada tinha a ver com a oferta de alimentos e sim com democracia. Ganhei por meu trabalho teórico", diz o indiano. Ele conta que investiu o dinheiro do prêmio em uma instituição – a Praticha. Criou-a para cuidar de educação elementar, saúde básica e igualdade de gênero na Índia e em Bangladesh.

Desde os 9 anos, Sen viu com os próprios olhos o flagelo dos milhares de pessoas que aportavam em Bengala, na Índia colonial, para morrer de inanição. "Não sei em quem ele vota, mas certamente é engajado", diz Assar Lindbeck, presidente do comitê de 1980 a 1994, quando as regras permitiam tão longevo mandato. Hoje, o limite é de nove anos.

Lindbeck identifica oito laureados em 34 anos de premiação que "participaram ativamente do debate político de seu tempo, com recomendações de políticas que refletiram compromissos ideológicos vigorosos". Além de Friedman, largamente criticado na América Latina dos anos 70 por dar consultoria a ditaduras como a chilena, figura na lista o holandês Jan Tinbergen, que dividiu a premiação em 1969 com o sueco Ragnar Frisch. Eles popularizaram a noção de que só a decisão política pode romper o círculo vicioso baixa poupança-baixo investimento-baixo crescimento-baixa poupança.

O rol inclui o austríaco Friedrich von Hayek e o sueco Gunnar Myrdal, premiados em 1974, o norte-americano James Tobin, laureado em 1981, o italiano Franco Modigliani, agraciado em 1985. Robert Solow, notório democrata colega de Samuelson e, como ele, do MIT, o qual recebeu o Nobel em 1987 por sua contribuição à teoria do crescimento econômico, bem como o canadense Robert Mundell, escolhido em 1999, também estão na lista de Lindbeck, que talvez tenha se esquecido do papa das finanças públicas, teórico do processo de decisão em economia e política, James M. Buchanan, Jr. (1986).

Pequeno, esse contingente não por acaso quase some na década de 90. Para a conservadora revista "The Economist", por exemplo, os Nobéis em economia se dividem em dois times – um de poetas, outro de bombeiros. De um lado, generalistas, de outro, especialistas. Os primeiros também enveredaram por domínios do conhecimento contíguos à economia – como política (caso de Buchanan, Jr.), psicologia social (Daniel Kahneman, 2002), sociologia e ciências sociais. O segundo time dedicou-se com gosto à econometria – os premiados de 2003, Granger e o norte-americano Robert Engle, por exemplo. Conforme a publicação, ultimamente o comitê tem dado preferência aos bombeiros.

John Kenneth Galbraith, que rivaliza com Paul Anthony Samuelson e Milton Friedman nas citações de maior economista vivo, é poeta que jamais abocanhou o Nobel. Não se sabe quantas vezes foi indicado.

Quando se observa a ótica do comitê pelos assuntos que levaram à premiação, vê-se que a macroeconomia já rendeu seis prêmios e a econometria, quatro. "Predominam os trabalhos feitos por método dedutivo, reflexo da produção acadêmica. Hoje, o conhecimento é muito sistematizado, mas o contrário talvez fosse melhor", diz Lindbeck. Apenas uma vez a Academia premiou o estudo de economias em desenvolvimento. "Economistas se preocupam sobretudo com o que ocorre ou o que preocupa os que estão ao seu redor. A premiação reflete isso. Seria bom ampliar o olhar, mas não sei se é tão fácil achar trabalhos de primeira classe sobre, por exemplo, economias em desenvolvimento", diz o ex-presidente do comitê. A indicação da candidatura de Furtado talvez lhes dê essa chance.

 

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